“Estômago 2” tira protagonismo do “Poderoso Chef” de cuisine interpretado por João Miguel

Foto: Equipe de “Estômago 2 – O Poderoso Chef” © Ticiane da Silva/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

A esperada continuação do cult “Estômago”, primeiro longa ficcional do paranaense Marcos Jorge, deixou o público do Festival de Gramado sem chão. E, em certa medida, decepcionado, pois o cozinheiro Raimundo Nonato, o “Nonato Canivete” ou “Alecrim” (magistralmente interpretado pelo baiano João Miguel), perdeu o protagonismo para o ítalo-brasileiro Nicola Siri, encarnado no mafioso Benedetto Caroglio.

“Estômago 2 – O Poderoso Chef”, segundo longa da competição do Festival de Gramado, deve ser definido mais como um “filme de mafiosos”, que um “culinária movie”, temperado com ingredientes grotescos. Ou pantagruélicos.

Além da perda de protagonismo do carismático personagem de João Miguel (ausente de Gramado por “razões de força maior”), o longa paranaense ganhou feitio de superprodução internacional. Foi construído com sólida participação de quatro fundos europeus (três deles italianos), que se somaram a parceiros brasileiros. Estes, sob o comando de Cláudia Natividade (da produtora curitibana Zencrane).

No movimentado debate de “Estômago 2”, o articulado Marcos Jorge, também roteirista do filme (junto com o italiano Bernardo Rennó e o brasileiro Lusa Silvestre) ponderou que o “Estômago” original somava “sexo, poder e culinária”. E que o novo continua firme em pelo menos duas dessas paixões humanas: “a culinária e o poder”.

O cozinheiro Nonato começa sua trajetória no novo filme (estreia do próximo dia 29 de agosto) encarcerado em presídio brasileiro, já que fora judicialmente condenado por matar e, grotescamente, retirar um bife das nádegas de sua amada, a prostituta Íria (Fabiula Nascimento).

O diretor do presídio de “O Poderoso Chef” é fã dos pratos que Nonato prepara a cada novo dia. O que acontece também com o “dono da cadeia”, o criminoso Etecétera (Paulo Miklos). Que, em troca das iguarias, dá regalias ao protegido. Essa é a parte brasileira do filme. Mas o que ocupará a tela, com imenso destaque, é a trama italiana. Aquela protagonizada por Roberto, um ator, que acabará mergulhando nas entranhas da máfia siciliana até transformar-se no ambicioso Benedetto Caroglio. Depois de muitos assassinatos e cenas calientes de sexo, o mafioso chegará a uma prisão brasileira. A mesma onde reina o Etecétera e cozinha o Chef Nonato.

A reação do público de Gramado, comedido nos risos e aplausos, não tirou a calma, nem o controle de Marcos Jorge, que portou-se como um gentleman no debate do filme.

Ele fez questão de lembrar que o primeiro “’Estômago’ não nasceu como um cult espontâneo”. Percorreu árduo caminho até ser vendido para 26 países, virar livro (com suas receitas) na Holanda, e conquistar novas plateias no streaming”. Historiou a passagem do filme original pelos festivais do Rio, Berlim (em segmento de “filmes culinários”) e Roterdã. Citou as primeiras críticas, algumas entusiásticas, outras nem tanto.

O sucesso foi se construindo com o passar dos anos. Brilhou na cerimônia de premiação da Academia Brasileira de Cinema e Artes Visuais. Ganhou, inclusive, estudo acadêmico intitulado “Variações Fílmicas sobre a Arte Culinária entre o Sublime e o Grotesco”, de Denise Azevedo Duarte Guimarães (Universidade Tuiuti do Paraná). Já se passaram quase duas décadas (exatos 16 anos) do modesto lançamento do filme (“com apenas dez cópias”, precisou a produtora Cláudia Natividade).

Quando estreou em 2008, “Estômago” vendeu exatos 90.464 ingressos (segundo o Boletim Filme B). “Graças ao boca-a-boca” — lembrou Marcos Jorge — “permanecemos em cartaz, no Rio, por seis longos meses”. E o filme original foi crescendo no imaginário do público. Com a chegada do streaming, foi revisto ou descoberto por nova geração de espectadores. “Estômago” está disponível na Globoplay.

O diretor de “O Poderoso Chef” — já no título uma citação aos “Poderoso Chefão 1, 2 e 3” — garantiu que a sequência de seu único sucesso comercial é “um filme de gângsters, que foge do realismo”. E provocou: “por que Fellini pode realizar um desfile de moda eclesiástica no seu ‘Roma’ e eu não posso criar uma fantasia mafiosa?” E mais: “por que (Yorgos) Lanthimos pode realizar seus filmes sem estar aprisionado ao realismo e eu não posso?”.

Marcos Jorge citou uma de suas sofisticadas influências: “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante” (1989), de Peter Greenaway. E, claro, os filmes de Coppola e Scorsese. O cineasta e sua companheira, a produtora Cláudia Natividade, moraram e estudaram na Itália, nos anos 1990. No Centro Experimental de Cinematografia, em Roma, ele foi aluno do russo Nikita Mikhalkov, de “Olhos Negros” e vencedor do Oscar de filme estrangeiro com “O Sol Enganador”.

Por isso, detalhou o brasileiro, não usa preparador de atores em seus filmes. “Recorro à escola russa de interpretação e acrescento, claro, temperos da escola norte-americana. Trabalho o roteiro com os atores e recebo todas as contribuições que eles têm a dar”.

A diminuição do papel do cozinheiro Nonato (Alecrim ou Rosmarino, em italiano) foi questionada no debate do filme. E se fez notar ainda mais pela ausência do ator João Miguel no palco do Palácio dos Festivais. Representaram o longa paranaense, na noite nobre do domingo dedicado aos Pais, quase 20 integrantes de suas equipes técnica e artística, entre eles, o agora protagonista Nicola Siri e o rapper Projota, o “Presida”, um encarcerado com algum estudo que se expressa com frases empoladas.

Estaria João Miguel aborrecido com o resultado do filme? Insatisfeito com a condição de coadjuvante, depois de brilhar em praticamente todas as sequências de “Estômago 1”?

O longo processo de feitura do filme e a parceria com os grupos italianos teriam mudado o curso do roteiro original?

Quem ler a sinopse de “O Poderoso Chef” no catálogo do Festival de Gramado será induzido a acreditar que Nonato continua no centro da ação.

Confiram: “Quinze anos após o primeiro filme, Raimundo Nonato é o chef dos chefs na prisão, encantando com sua comida e sua lábia tanto o diretor do presídio, quanto o veterano líder dos detentos. Até que um mafioso italiano chega para disputar o controle da penitenciária e os pratos do carismático cozinheiro”.

Maior exatidão deverá trazer a sinopse italiana do filme, que deverá centrar-se na figura do ator Roberto (Nicola Siri), que ao apaixonar-se por Valentina (Violante Plácido) — filha de um capo siciliano em disputa de poder com o irmão Salvatore (Giulio Beranek) — transformar-se-á no brutal Benedetto Caroglio. Encarcerado em presídio brasileiro, o siciliano vai disputar espaço com o líder dos detentos (o  Etecétera de Paulo Miklos) e saborear os pratos preparados por Nonato Alecrim.

A trama do “Estômago” original dura 113 minutos. A de “Estômago 2”, 17 minutos a mais (2h10). Dessa vez, a longa narrativa conjuga tantos personagens e elementos (assassinatos, explosões etc.), que o espectador será obrigado a prestar redobrada atenção em cada detalhe. Mesmo assim, dados fundamentais poderão lhe escapar.

No debate, Nicola Siri fez questão de lembrar e relembrar que seu personagem é, em sua origem, um ator. Marco Jorge, por sua vez, lembrou que o sucesso avassalador dos filmes e séries norte-americanos (especialmente da Trilogia Poderoso Chefão) levou os novos mafiosos a assistirem a tais filmes e séries para saber como se comportar.

O cineasta paranaense citou o escritor Roberto Saviano, autor do livro “Gomorra” (matriz do filme de Matteo Garrone) como o defensor da ideia de que a produção audiovisual hollywoodiana vem, realmente, alterando os procedimentos dos gângsters contemporâneos.

“Os mafiosos da Sicília” — reforçou Marco Jorge, depois de muito estudar o assunto — “eram camponeses rudes, discretos, que pouco apareciam”. Portanto, “em tudo opostos a estes que assistem a filmes e séries de grande sucesso”, para mimetizá-los em seus gestos e atitudes.

O personagem interpretado por Nicola Siri, sendo ator em sua origem, integra a turma dos forjados pelo audiovisual e pela sociedade do espetáculo. São, portanto,  filhos do imaginário de Mario Puzzo e Francis Ford Coppola.

Durante o debate, Marcos Jorge justificou a ausência do ator (e músico) Paulo Miklos entre a volumosa representação que subiu ao palco do Palácio dos Festivais. Ele, que deu vida a Etecétera na trama do “Poderoso Chef”, tinha show em Brasília nas vésperas da sessão de gala do filme em Gramado. Devido à complexidade dos deslocamentos aeroportuários no Rio Grande do Sul (devidos às enchentes de maio último), não disporia de tempo hábil para chegar à Serra Gaúcha.

Já as razões da ausência de João Miguel seguem um mistério. O grande intérprete de “Cinema, Aspirinas e Urubus” e de espetáculo dedicado a Artur Bispo do Rosário não gravou nem um sintético vídeo para a plateia gramadense de “Estômago 2 – O Poderoso Chef”.

Com a ausência de João “Nonato” Miguel e Miklos, a mesa de debate resumiu-se ao diretor, sua produtora e dois atores (Siri e Projota). Número bem mais produtivo, convenhamos, que o mobilizado pelo debate de “O Clube das Mulheres de Negócios”. Anna Muylaert se fez acompanhar de mais de uma dezena de atrizes e atores, além da representante da produtora Glaz.

Bem que Anna concentrou-se em respostas inteligentes, claras e sintéticas. Mas o que se viu, no conjunto, foi um barulhento frege, de pouca substância no campo das ideias. Algo poucas vezes visto no Festival de Gramado. E olhe que o filme de Anna Muylaert traz em sua estrutura uma fértil série de temas capazes de provocar importantes reflexões sobre nosso tempo.

 

FILMOGRAFIA
Marcos Jorge (Curitiba-PR, 28 de novembro de 1964)

2004 – “O Ateliê de Luzia – A Arte Rupestre no Brasil” (doc)
2008 – “Estômago” (fic)
2011 – “Corpos Celestes”, em parceria com Fernando Severo (fic)
2016 – “O Duelo” (fic)
2016 – “Mundo Cão” (fic)
2016 – “Abestalhados” (fic)
2024 – “Estômago 2 – O Poderoso Chef” (fic)

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