Festival chinês criado por Jia Zhang-Ke premia filme de Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”

Foto © Fiorenzo De Luca

“Ainda Estou Aqui”, novo longa de Walter Salles, que fez sua estreia mundial no Festival de Veneza e é o filme brasileiro que concorrerá a uma vaga na categoria de melhor filme internacional no Oscar 2025, acaba de ser premiado no Pingyao International Film Festival (PYIFF), criado pelo cineasta chinês Jia Zhang-Ke.

Como não pode estar presente no festival para receber o prêmio, Walter Salles enviou seu agradecimento, que a Revista de CINEMA publica aqui:

Queridos amigos,

Em primeiro lugar, gostaria de estar com vocês esta noite para celebrar um prêmio tão significativo para mim, o Crouching Tiger – Hidden Dragon Esat-West Award em Pingyao. Não pude viajar por uma questão pessoal, mas meu coração está com vocês.

Receber este prêmio em Pingyao é, para mim, diferente de ganhar um prêmio semelhante em qualquer outro lugar do mundo. O cineasta que me levou ao cinema foi Michelangelo Antonioni, e me sinto eternamente em dívida com ele. Me pergunto o que teria acontecido com essa paixão se ela não tivesse sido alimentada por diretores como Roberto Rossellini, os diretores brasileiros Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, Agnès Varda, Wim Wenders ou Hou Hsiao-Hsien.

Todas as formas de paixão precisam ser renovadas, e novos filmes mantiveram meu amor pelo cinema vivo – especialmente “Xiao Wu”, “Plataforma”, “Still Life” e “A Touch of Sin”, de Jia Zhang-Ke. Além disso, eu não teria realizado meu filme mais recente, “Ainda Estou Aqui”, se não tivesse tido o privilégio de dirigir “Um Homem de Fenyang”, o documentário que filmei sobre o diretor Jia Zhang-Ke, em 2014.

Por isso, estou emocionado em receber este prêmio na mesma cidade em que filmei com Jia há oito anos. Receber um prêmio como este traz uma responsabilidade. Você tem duas opções: vê-lo como um reconhecimento pelos filmes que já dirigiu, ou como um incentivo para o que ainda poderá criar no futuro. Prefiro a segunda opção, especialmente porque estamos vivendo uma era tão crucial na história do cinema.

Faço parte de uma geração que teve o privilégio de descobrir – graças ao cinema – que o mundo era muito mais amplo do que imaginávamos. Os cineastas que mencionei, e muitos outros, permitiram que minha geração compreendesse que a realidade ao nosso redor era muito mais complexa do que pensávamos a princípio. O cinema foi, para nós, um instrumento de desvendamento do mundo.

Penso que, em sua essência, o cinema é uma extensão das pinturas rupestres encontradas em Altamira e Lascaux, ou em Cuevas de las Manos, na Argentina. Essas pinturas rupestres revelam um desejo irreprimível de expressão artística, e também refletem o desejo de definir e distinguir um grupo específico, um lugar específico. Um relato único, oferecido para todos desfrutarem. O que essas pinturas nos oferecem é a possibilidade de uma memória, ao mesmo tempo pessoal e coletiva. O cinema é a continuação desse desejo, uma “dramaturgia do real”, como diria André Bazin. Aquilo que a câmera captura é, em última instância, a realidade e seus mistérios. E memórias. Reflexos de quem fomos, de quem somos, em um determinado momento.

O crítico de arte John Berger disse que “O cinema, porque suas imagens estão em movimento, nos leva para longe de onde estamos para a cena de ação. Pinturas, ao contrário, trazem para casa. O cinema é o que nos transporta para outro lugar. No cinema, somos todos viajantes”.

Para o cinema existir, ele precisa de sombras, do não visto, do não dito. Essa percepção foi o que me levou a admirar cineastas de estilos e origens tão diferentes como Abbas Kiarostami, Eduardo Coutinho, Tomás Gutierrez Alea ou, mais recentemente, Alice Rohrwacher. Sua característica comum, talvez a única, seja a percepção de que o cinema é o invisível que complementa o visível. O espectador é convidado à prolongar a obra aberta, para levá-la ao mundo, como sempre fizemos e ainda fazemos quando nos deparamos com uma pintura que nos leva a imaginar o que está além da moldura.

No passado, ouvimos muitas vezes que os livros iam desaparecer. Que o teatro ia desaparecer. E agora estamos ouvindo que o cinema pode desaparecer. Gostaria de acreditar no oposto. Como um poeta brasileiro disse uma vez: “o cinema não é uma continuação da vida, mas também uma nova vida. Se isso acontece, é porque a vida que vivemos talvez seja insuficiente”.

Então, ao celebrar este prêmio que me é tão importante, gostaria de dizer: vida longa ao cinema independente, vida longa ao cinema independente chinês, vida longa ao Festival Internacional de Cinema de Pingyao, vida longa a todos vocês que estão aqui esta noite, porque vocês estão mantendo viva essa paixão pelo cinema. Muito obrigado!

Walter Salles

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