Festival de Havana será primeira vitrine de “Cem Anos de Solidão” e de forte seleção brasileira

Foto: Série “Cem Anos de Solidão”, da Netflix

Por Maria do Rosário Caetano

A Netflix escolheu a quadragésima-quinta edição do Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana como primeira vitrine da série “Cem Anos de Solidão”, primeira versão audiovisual do mais famoso dos romances do colombiano Gabriel García Márquez, publicado em 1967.

Quinze anos depois, o escritor receberia, na Suécia, o Prêmio Nobel de Literatura. E faria do cinema latino-americano uma de suas principais causas político-culturais. Cederia seus livros a dezenas de adaptações, de Arturo Ripstein a Ruy Guerra, passando por Tomás Gutierrez Alea e Francesco Rosi. Mas jamais venderia os direitos autorais de “Cem Anos de Solidão” a nenhum produtor. Preferiu escrever roteiros originais.

Com sua morte, em 2014, seus filhos, em particular Rodrigo Garcia, cineasta, produtor e respeitado diretor de fotografia, reavaliaram a postura do pai. E aceitaram estabelecer parceria com a Netflix, que investiu pesado em narrativa longa (18 episódios) e em língua espanhola. Com o acento do Caribe colombiano, entrecortado pelas águas do Rio Magdalena.

Os dois primeiros capítulos da adaptação, dirigida por Alex García López e Laura Mora, sob coordenação de Rodrigo García, serão exibidos para convidados e público do Festival de Havana, evento que teve em Gabo um de seus maiores incentivadores.

O colombiano foi um dos integrantes-fundadores da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano, organismo sediado na Finca Santa Bárbara, nos arredores de Havana e responsável pela criação e gestão da Escuela de Cine y TV de San Antonio de los Baños. Tornou-se um dos mais atuantes mestres da instituição, onde ministrou cursos livres de roteiro, sob o divertido título de “Como se Cuenta un Cuento”. Virou até livro. Nada mais natural, portanto, que Cuba fosse escolhida como primeira vitrine da série, gravada em locações na Colômbia e em seu idioma original.

Além do prestígio trazido pela pré-estreia mundial de “Cem Anos de Solidão”, o Festival de Havana contará com muitos outros trunfos. Serão exibidos 256 filmes de 21 países latino-americanos, em competição por gênero (ficção, animação e documentário). E também filmes de 21 países internacionais, em mostras informativas e especiais.

Duas cinematografias ganharão mostras especiais — a Palestina, criação de sofrido povo sem pátria do Oriente Médio, e o país de Gabo, a Colômbia. A Itália, parceira e simpatizante da ilha de Cuba, continua mandando seus filmes, seja sob governos de esquerda, da democracia cristã, ou da direitista Giorgia Meloni. Uma das atrações vindas da Península, esse ano, reunirá conjunto de filmes dedicados ao centenário de Marcello Mastroianni.

Cuba, por sua vez, vai prestar tributo a seu maior animador, Juan Padrón (1947-2020). Seus filmes e criações (“Elpídio Valdez” e “Vampiro en La Habana”) ficaram gravados no imaginário dos frequentadores do festival caribenho. Um livro — “La Historieta y la Animación en La Vida de Juan Padrón”, de Aramis Acosta — enriquecerá o tributo ao divertido cartunista, ilustrador e cineasta cubano.

O Brasil, que venceu o primeiro Festival de Havana, em 1979 (com “Coronel Delmiro Gouveia”, de Geraldo Sarno), e seis anos depois fez barba, cabelo e bigode com o triunfo do trio “Memórias do Cárcere”, “Cabra Marcado para Morrer” e “Jango”, perderia (ou dividiria), ao logo dos anos, a hegemonia para (com) a Argentina, México, Colômbia e Chile.

Este ano, a produção brasileira terá forte representação em Havana. Foram selecionados, para diversas mostras, filmes como “Motel Destino”, de Karim Aïnouz, “Baby”, de Marcelo Caetano, “Manas”, de Marianna Brennand, e “Malu”, de Pedro Freire, no terreno da ficção, documentários como “Apocalipse Tropical”, de Petra Costa, e “A Queda do Céu”, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, e animações (“Abá e sua Banda”, de Humberto Avellar, e “O Sonho de Clarice”, produção brasiliense, comandada por Fernando Gutiérrez e Guto Bicalho).

“A Queda do Céu”, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha

Caberá à Argentina o privilégio de exibir o filme inaugural dessa maratona habanera. Foi escolhido o longa “Los Domingos Mueren más Personas”, de Iair Said. Trata-se de uma “opera prima” (obra de estreante), de temática homoafetiva.

Outro concorrente de peso vindo do América Platina é “El Jockey”, de Luís Ortega, escolhido para representar o país (ao sul do Equador) bicampeão na disputa pelo Oscar internacional (com “A História Oficial”, de Luiz Puenzo, e “O Segredo dos seus Olhos”, de Juan José Campanella).

Quem também chega com representação peso-pesado é o México. Além do indicado asteca ao Oscar de melhor produção estrangeira, o denso “Sujo” (“Hijo de Sicário)”, de Rondero e Valadez, destacam-se o poderoso “La Cocina”, de Alonso Ruizpalácios, filmado nos EUA (em inglês e espanhol), mas mexicano até a medula, e “Lázaro de Noche”, de Nicolas Pereda.

A Bolívia, esse ano, desembarca no festival cubano com “El Ladrón de Perros”, de Vinko Tomicic Salinas, forte candidato ao Prêmio Coral Opera Prima (filme de estreia, repetimos, não obra-prima). Com o jovem Franklin Aro Huasca como protagonista e em duo com Alfredo Castro, o grande ator chileno, o filme forma espécie de trilogia involuntária com os italianos “Ladrões de Bicicletas” (De Sica, 1948) e “Ladrão de Crianças”(Gianni Amelio, 1992). O Brasil teria em “Malu”, de Pedro Freire, um forte concorrente nessa categoria, mas o filme foi selecionado para outra mostra, a “Perspectivas”.

Voltando ao candidato boliviano, há que se destacar mais um desempenho notável de Alfredo Castro, ator fetiche de Pablo Larraín (“Tony Manero”, “Post Morten”). Ele interpreta um educado alfaiate que sofre com o sequestro de seu cão e se afeiçoa por adolescente pobre e de traços indígenas.

O Brasil participará, ainda, da mostra “Perspectivas”, com “Alma Negra – Do Quilombo ao Baile”, de Flávio Frederico, “Avenida Beira-Mar”, de Bernardo Florim e Maju de Paiva, “O Deserto de Akin”, de Bernard Lessa, “Os Enforcados”, de Fernando Coimbra, e o já lembrado “Malu”, que brilhou no Festival do Rio e no do Cairo-Egito.

A Venezuela, em parceria com o Peru, México e outros países, participa com “Zacarias”, ficção de Mariana Rondon, do inesquecível “Pelo Malo”, transformado em sucesso de estima no Brasil.

O Equador se faz representar por uma de suas mais importantes diretoras, Tânia Hermida. Ela, que foi revelada pelo encantador “Que Tan Lejos“, volta ao Festival de Havana com “La Invención de las Espécies”.

No campo do documentário, o Brasil contará com a presença de três concorrentes de peso: “Apocalipse Tropical”, de Petra Costa, “A Queda do Céu”, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, e “Carta a um Velho Mestre”, da realizadora paraguaia Paz Encina, que “dialoga” com o maior dos documentaristas brasileiros, Eduardo “Jogo de Cena” Coutinho (1933-2014).

Em mostras informativas do gênero estarão, em destaque, “A Cabeça Pensa Onde os Pés Pisam – Frei Betto e a Educação Popular”, parte de tretralogia com o frei dominicano, dirigida por Américo Freire e Evanize Sydow, “Vai prá Cuba”, produção de Eduardo Moreira, do Instituto Conhecimento Liberta, e o uruguaio-brasileiro “Partido”, de Cesar Charlone, Sebastian Bednarik e Joaquim Castro, protagonizado por Fernando Haddad. O atual ministro da Fazenda é visto, nesse filme, como candidato à Presidência da República (derrotado pela extrema-direita comandada por Bolsonaro, em 2018). O Uruguai apresentará, também, “Los Sueños de Pepe”, de Pablo Tropo, parte de trilogia dedicada ao ex-presidente Pepe Mujica.

A representação brasileira no festival caribenho continua forte, mesmo desfalcada de duas ficções de grande peso — “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, candidato brasileiro a vaga no Oscar internacional, e “Retrato de um Certo Oriente”, de Marcelo Gomes. E também da animação “Arca de Noé”, de Sergio Machado e Alois de Leo. Seus distribuidores internacionais não priorizaram Havana como vitrine. Ao contrário da maleável Netflix.

A Rússia (em coprodução com Argentina), país eslavo que, em tempos de URSS, foi parceira privilegiada de Cuba, enviará ao festival, para avant-première, a série “O Russo”, de Sergey Mokritskiy.

Filmes de diversos países europeus também marcarão presença na ilha caribenha. O farão dentro da mostra “Outras Latitudes”: caso de Portugal, com o delicioso “Grand Tour”, de Miguel Gomes, a Índia (com “Tudo que Imaginamos Como Luz”, de Payal Kapadia), a China (“Levados pelas Marés”, de Jia Zhang-ke), a Itália (Vermiglio”, de Maura Delpero, indicado ao Oscar), a Alemanha (com o imperdível “Dying – A Última Sinfonia”, de Mathias Glasner) e a Espanha (com “Segundo Prêmio”, de Isaki Lacoste e Pol Rodrigues). Este filme espanhol, sobre banda de rock indie na Granada andaluza, tem poucas chances de repetir desempenhos de Pedro Almodóvar, um queridinho do Oscar (esse ano competindo com produções faladas em inglês), Fernando Trueba (“Sedução – Belle Epoque”) e J.A. Bayona (finalista ano passado com “A Sociedade da Neve”).

OS PRINCIPAIS SELECIONADOS

Longas-metragens ficcionais:

El Jockey, de Luis Ortega (Argentina)
Algo Viejo, Algo Nuevo, Algo Prestado, de Hernán Rosselli (Argentina)
El Ladrón de Perros , de Vinko Tomicic (Bolívia)
Motel Destino, de Karim Aïnouz (Brasil)
Baby, de Marcelo Caetano (Brasil)
Los Hiperbóreos, de Cristóbal León, Joaquín Cociña (Chile)
La Invención de las Especies, de Tania Hermida (Equador)
Lázaro de Noche, de Nicolás Pereda (México)
La Cocina, de Alonso Ruizpalacios (México)
Sujo (Hijo de Sicário), de Astrid Rondero e Fernanda Valadez (México)
Raíz, de Franco García Becerra (Peru, Chile)
Pepe, de Nelson Carlos de lós Santos (República Dominicana)

Longas-metragens documentais: 

Monólogo Colectivo, de Jessica Sarah Rinland (Argentina)
Reas, de Lola Arias (Argentina)
Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa (Brasil)
Carta a um Velho Mestre, de Paz Encina (Brasil, Italia, França)
A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha (Brasil)
El que Baila Pasa, de Carlos Araya Díaz (Chile)
Alma del Desierto, de Mónica Taboada-Tapia (Colômbia)
Memorias de un Cuerpo que Arde, de Antonella Sudasassi (Costa Rica)
El Bosque Intermitente, de Lázaro Lemus (Cuba)
La Línea del Ombligo, de Carla Valdés León (Cuba)
La Tierra de la Ballena, de Armando Capó Ramos (Cuba, México)
Quédate Quieto , de Joanna Lombardi  Pollarolo (Peru, Uruguai)

Curtas e longas de animação:

Argentina

Avel, de Daniel Marín Compost, Augusto
Sinay e Matías Sinay
El Tiempo de la Tierra, historias originarias, de Bea R. Blankenhorst
La Bolsita de Agua Caliente, de Yuliana Brutti Mentor  e Jorge Marinucci

Brasil

Gigantes, de Gonzalo Gutiérrez
A Menina e o Pote, de Valentina Homem e Tati Bond
Abá e sua Banda, de Humberto Avelar
CheckMates, de Ana Carolina Clermann
Dona Beatriz Ñsîmba Vita, de Leonardo Cata Preta Souza
O Sonho de Clarice, de Fernando Gutiérrez, Guto Bicalho
O Cacto, de Ricardo Kump
Tecnoeste, de Lucca Vendramel

Chile

Voz de trompeta, de Pilar Smoje Gueico, David Monarte Serna
Dos Menos, de Taroa Zúñiga Silva, Carlos Zerpa (com Venezuela)

Colômbia

Garu y Ponki, de Cristhian Jaillier
Luthier, de Carlos González Penagos

Cuba

Bombas de Arena, de Keiter Castillo

Panamá

Mariposas Negras, de David Baute Gutiérrez

México

Bem y Yo, de Leopoldo Aguilar Guerrero
Humo e Rita Basulto
La Vieja y el Cuervo, de María Lucía Bayardo Dodge

República Dominicana

Olívia & Las Nubes, de Thomas Bayardo

Longas-metragens de diretor estreante (Operas Primas):

Argentina

El Placer es Mío, de Sacha Amaral

Argentina, Chile, Uruguay

Simón de la Montaña, de Federico Luis Tachella

Argentina, Italia, España

Los Domingos Mueren más Personas, de Iair Said

Brasil

Enquanto o Céu Não me Espera, de Christiane Garcia
Manas, Marianna Brennand

Colombia

Golán, de Orlando Culzat

Colombia, Chile

La Piel en Primavera, de Yennifer Uribe Alzate

Cuba, Argentina, Francia

Fenómenos Naturales, de Marcos Díaz Sosa

México

Soy lo que Nunca Fui, de José Rodrigo Álvarez Flores

Panamá, Colombia

Querido Trópico, de Ana Endara Mislov

República Dominicana, España

Sugar Island, de Johanné Gómez Terrero

Venezuela

Los Capítulos Perdidos, de Lorena Alvarado

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