“Apocalipse nos Trópicos” chega aos cinemas e Petra Costa prepara campanha para vaga no Oscar 2026

Por Maria do Rosário Caetano

“Apocalipse nos Trópicos”, quarto longa-metragem da mineira Petra Costa, que completa 42 anos nessa terça-feira, 8 de julho, está em cartaz no circuito de arte e ensaio brasileiro. Mas só por duas semanas. Das telonas, o filme migrará para as telinhas domésticas de todos os assinantes da Netflix.

A poderosa plataforma de streaming ajudará a cineasta a batalhar sua segunda indicação ao Oscar de melhor documentário. A primeira aconteceu em 2020, com “Democracia em Vertigem”. Com este filme, a cineasta chamou atenção para o transe que tomou conta do país com a chamada Lava-Jato, com o impeachment de Dilma Roussef e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E com a consequente eleição do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro.

Agora, com o novo filme, Petra Costa se dispõe a responder a complexa pergunta: “Quando uma democracia termina e uma teocracia começa?”

Em busca de respostas, ela ergueu narrativa de quase duas horas de duração, composta de cinco partes (“O Influenciador”, “Deus nos Tempos do Cólera”, “Gênesis” etc.) e um epílogo (“Revelação”). E acompanhou, em especial, um pastor, Silas Malafaia, espécie de ideólogo e guru de Jair Bolsonaro (outro personagem de grande destaque na trama).

Durante os três anos de filmagem, a cineasta teve acesso livre à mansão de Malafaia, deslocou-se com ele em confortável automóvel (e registrou briga verbal do pastor com outro motorista), permitiu que o evangélico defendesse, com a ênfase costumeira e desabrida, suas ideias político-religiosas. Bolsonaro aparece no filme ao lado do amigo e em outras circunstâncias. Aparece bastante.

O então ex-presidente Lula aparece menos. Petra Costa contou, em debate no Espaço Petrobras de Cinema paulistano, que o pernambucano de Garanhuns custou a receber a equipe do filme. Tiveram que insistir muito. Ele acabou, depois de muito custo, cedendo.

Em seu melhor momento, Lula conta história curiosa. Ou melhor, com seu jeito de narrador de experiências vivenciadas, reflete sobre o apego do brasileiro aos credos evangélicos. Os chamados “crentes” eram 5% da população brasileira. Depois, cresceram de forma exponencial. Hoje, são 30%. O próprio Malafaia conta que começou “como pastor de igreja de bairro, que “mobilizava 15 mil fiéis”. Hoje prega para “100 mil seguidores”.

Lula, em sua narrativa, recorre ao sindicalismo, sua base de formação: “Quando um trabalhador perde o emprego, ele vai ao Sindicato e explica sua situação difícil. O que ele escuta? Escuta a diretoria dizer que ele precisa fortalecer a instituição, participar das assembleias, mobilizar os colegas para a luta coletiva. O cara vai embora sem nada de concreto. Se dali ele for para a Igreja Católica, o que ele ouvirá do Padre é: “você vai sofrer aqui na Terra, mas será recompensado no Reino do Céu”. Já na igreja evangélica, ele será ouvido, confortado, receberá ajuda espiritual (até algum tipo de ajuda material).

Além dos três “personagens”, Petra Costa recorrerá a trechos de filmes (“Brasília, Contradições de uma Cidade Nova”, de Joaquim Pedro, “Jango”, de Silvio Tendler, “ABC da Greve”, de Leon Hirszman, entre muitos outros), às pinturas (principalmente de Bosch) e a uma consistente trilha sonora que irá de “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, à música original de Rodrigo Leão. Recorrerá, com riqueza de fontes, a arquivos (norte-americanos e brasileiros, em especial).

Os detratores de Petra Costa, até os que ainda não viram o filme (só o trailer), já estão reclamando. Mais uma vez — protestam —, ela se coloca em cena (com economia visual, registre-se) e relativa largueza no uso da voz. Para esses detratores, a voz de Petra é “chata”, meio “nhenhehém”. Mas ninguém, de boa fé, poderá acusá-la de querer aparecer. De forma alguma.

Petra confessa, com franqueza, que “pouco sabia” do tema que tanto a intrigava e que escolhera como razão de seu quarto longa-metragem a intromissão da Religião nas instituições públicas brasileiras (no Executivo, com Bolsonaro, e, no Congresso Nacional, com deputados-pastores vistos em dependências do Legislativo transformadas em “templo” de ofício de cultos). Quanto ao Judiciário, o filme acompanhará a indicação (e sua consequente aprovação pelo Senado) do ministro André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal. O “ministro terrivelmente evangélico” prometido por Bolsonaro (e cobrado sem trégua por Malafaia).

Como “conhecia pouco” o mundo evangélico, devido à sua “formação laica”, Petra decidiu estudar a Bíblia e, em especial, o Livro do Apocalipse (ou Livro da Revelação), parte final do Novo Testamento. Obra básica da escatologia cristã, povoada pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, que representam a fome, a guerra, a praga e a morte.

A cineasta, que vive entre o Brasil e os EUA, buscou consultores dos mais sólidos para sua empreitada. Ouviu Vladimir Safatle, professor da USP, estudou muito e cercou-se de profissionais e técnicos de grande competência. Na fotografia, João Atala, Pedro Urano e Murilo Salazar. Na montagem, das mais difíceis, contou com seis profissionais (Jordana Berg, Victor Miaciro, Tina Baz, David Barker, Nels Bangarter e Eduardo Gripa). No sound design, Olivier Goinard e Felipe Mussei. Mas é na produção que o filme diz a que veio.

A própria Petra, em parceria com Alessandra Orofino, cuidou do principal – as filmagens no Brasil. Mas recorreu a retaguarda peso-pesado, somando o incansável Brad Pitt (ator e, cada vez mais produtor), a Impact Partner etc. etc. Os créditos assemelham-se aos de épicos bíblicos.

É justamente essa base de apoio que, junto com a Netflix, permitirá que ela veja seu filme, numa primeira etapa (e se tudo der certo) entre os 15 semifinalistas ao Oscar de melhor longa documental. Depois, se a sorte continuar de braços abertos, “Apocalipse nos Trópicos” pretende figurar entre os cinco finalistas. E, meta principal, conquistar para uma produção brasileira a segunda estatueta da Academia de Hollywood (um ano depois de “Ainda Estou Aqui”, a ficção de Walter Salles, ganhar o primeiro Oscar realmente brasileiro, já que falado em português e aqui produzido).

“Apocalipse nos Trópicos” tem qualidades para tamanha ambição?

A resposta é das mais complexas. O tema Religião não apresenta bom retrospecto nas 97 edições que compõem a história do Oscar. A narrativa do longa brasileiro é intrincada e exige espectadores atentos. Há, o que pode ser bom, ligações profundas com o que acontece nos EUA.

Hoje, o país é governado (pela segunda vez) por um presidente de extrema-direita (como seu similar tropical) e lá (como cá) questões religiosas se misturam às atividades laicas do Estado democrático.

E mais: o documentário de Petra Costa mostra que o crescimento evangélico no Brasil tem tudo a ver com o país de Nicon-Reagan-Bush-Trump. De lá, vieram pregadores (como Billy Graham) para oficiar imensos cultos em estádios e pregar “guerra santa” contra o “fantasma do Comunismo”.

De lá vieram forças que ajudaram, inclusive, a desmontar a “Teologia da Libertação”. Religiosos e políticos norte-americanos ajudaram a reforçar a “guerra santa” liderada pelo Papa João Paulo II (de 1978 a 2005), o eleito da Polônia.

A cineasta mineira Petra Costa

No debate de “Apocalipse nos Trópicos”, o jornalista Bob Fernandes perguntou a Petra por que ela não abordara, em seu documentário, a força das Big Techs, que têm servido como poderosíssima plataforma de difusão do fundamentalismo e da consequente intromissão da religião nos assuntos do Estado. E mais: por que não dera destaque ao papel dos militares no golpe engendrado por Bolsonaro e suas famílias privada e verde-oliva (nesse caso, parte das Forças Armadas).

Petra, com serenidade, respondeu que esses dois temas, muito amplos, exigiriam uma trilogia apocalíptica. Afinal, necessitou de quase duas horas para abordar o empenho de muitos evangélicos em transformar o Brasil, um país laico, em uma teocracia.

Antes de responder sobre a questão militar, a cineasta desabafou: “eu nunca imaginei que, em pleno século XXI, assistiríamos ao crescimento da ameaça de vivermos em um Estado teocrático. Sempre pensamos no progresso, no avanço das ideias, mas nos deparamos com a ameaça de retrocesso à Idade Média”.

A realizadora abordou, então, a presença do General Braga Neto, que aparece no filme em amável conversa com manifestantes. Aqueles, que, acampados nas portas de quartéis, clamavam por intervenção militar e por um golpe de Estado.

“Apocalipse nos Trópicos” dedica bastante atenção ao 8 de Janeiro (de 2023). O dia em que milhares de brasileiros, vestidos de verde-amarelo, invadiram (e depredaram) o Palácio do Planalto, a sede do Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. O documentário trará ótimas imagens do dia seguinte, que Petra Costa e sua equipe filmaram com empenho.

Brasília ocupará espaço especial, especialíssimo, no filme. A cineasta se apegará ao sonho de Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e JK de construirem, no Planalto Central, uma cidade utópica, justa e igualitária. Lembrará que houve pressão da Igreja Católica para que, na Praça principal da Nova Capital, se erguesse uma igreja – uma catedral localizada ao lado do Palácio do Planalto, do STF e do Congresso Nacional.

Segundo pesquisa do filme, os idealizadores de Brasília se pautaram por espírito laico. A Praça dos Três Poderes ficou apenas com os “poderes terrenos” – o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. E a Catedral de Brasília (o poder celeste) foi parar no final da Esplanada dos Ministérios.

Petra Costa está tão atenta à atualidade de seu filme, que, depois de apresentá-lo em Veneza (fora de competição), em setembro de 2024, no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo (ambos em outubro), fez questão de acrescentar cartelas que registram fatos do Brasil de nossos dias. Ou seja, dos processos a que Jair Bolsonaro e alguns de seus apoiadores respondem por terem tentado um golpe de Estado.

O símbolo visual do filme, aliás, reproduz a cabeça (decepada) da estátua da Justiça, aquela de olhos vendados, fruto da criação de Alfredo Ceschiatti. A falange do “8 de Janeiro” vandalizou a obra artística com a frase “Perdeu Mané”, escrita com batom vermelho pela “cabeleireira de Paulínia”. A apoiadora de Bolsonaro entendeu que ela e seus pares sairíam dali vitoriosos e “cortariam” a cabeça dos ministros do Supremo.

Petra e seus programadores visuais usaram de liberdade poética para “cortar a cabeça” da Justiça. Mas o fizeram na criação de um símbolo cinematográfico, um alerta. Aquela cabeça de olhos vendados, separada de seu corpo, nos leva a refletir sobre o que poderia (poderá) acontecer com nossa Justiça (e nossa Democracia) se forças obscurantistas tivessem triunfado. Se vierem a triunfar.

 

Apocalipse nos Trópicos
Brasil, 2025, 115 minutos, 14 anos
Direção e roteiro: Petra Costa
Fotografia: João Atala, Pedro Urano e Murilo Salazar
Montagem: Jordana Berg, Victor Miaciro, Tina Baz, David Barker, Nels Bangarter e Eduardo Gripa
Sound design: Olivier Goinard e Felipe Mussei
Música original: Rodrigo Leão
Produção: Busca Vida Filmes, Peri Productions
Distribuição: O2 Play/Netflix

 

FILMOGRAFIA
Petra Costa nasceu em Belo Horizonte, em 8 de julho de 1983. Estudou na USP, em Londres e nos EUA.

2025 – “Apocalipse nos Trópicos”
2019 – “Democracia em Vertigem”
2015 – “O Olmo e a Gaivota” (parceria com Lea Glob)
2012 – “Elena”
2009 – “Olhos de Ressaca” (curta-metragem)

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