Festival de Vitória festeja 34 filmes capixabas e presta homenagem à atriz e ativista Verônica Gomes
Foto: Verônica Gomes © Andie Freitas/Acervo Galpão-IBCA
Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória (ES)
Os capixabas estão orgulhosos com o número de filmes que representam o estado na trigésima-segunda edição do Festival de Cinema de Vitória. São 34 títulos, sendo cinco de longa-metragem (“Margeado”, “O Deserto de Akin”, “Meu Pai e Eu”, “Game Girl” e “Prédio Vazio”), um média-metragem (“Mercúrio Cromo – A Vida e Obra de Aprígio Lyrio”) e 24 curtas. Na mostra de videoclipes, com quinze produções, cinco são prata-da-casa.
O primeiro dia do festival foi dedicado por inteiro ao cinema local. A maratona começou às duas da tarde com exibição de “Margeado”, longa de Diego Zon, que tem em seu elenco principal a atriz Verônica Gomes. Por sua dedicação à vida cultural capixaba, Verônica, de 64 anos, foi homenageada com o Troféu Vitória-Trajetória.
Ao longo de quase 40 anos, a atriz se dividiu entre o teatro e o ativismo cultural. Participou da fundação do Sindicato de Atores e Técnicos do Espírito Santo e o presidiu por duas vezes. No começo dos anos 1990, aproximou-se do cinema, ajudando na produção de “Lamarca”, longa de Sergio Rezende protagonizado por Paulo Betti, parte do esforço de implantação do Polo Capixaba. Depois, atuaria em diversos curtas-metragens, até interpretar a enfermeira Norma em “Os Primeiros Soldados”, de Rodrigo Oliveira. O papel de maior destaque chegaria com “Margeado”, no qual dá vida a Yara, mulher inserida numa vila de pescadores, que passa a sofrer com os transtornos (em especial, a lama tóxica) trazidos pelo rompimento de uma barragem.
“Para interpretar Yara” — contou a atriz em concorrida conversa com jornalistas e representantes do meio cultural — “tive que me despir de todas as vaidades e enfrentar situações muito complexas, para mim, como mergulhar no mar e subir, por frágil escada, ao teto de casa modesta, para consertá-lo. A sequência foi repetida cinco vezes até chegar ao resultado desejado pelo diretor”.
Verônica tinha 61 anos, quando o filme foi realizado. Mesmo assim, ela fez questão de dedicar-se a ele como se fosse uma estreante. “Para mim era essencial viver a situação vivida por aquelas mulheres, vítimas da lama, de forma que eu pudesse carregar todas as dores delas”.
Verônica Gomes vê o bom momento vivido pelo cinema capixaba como “consequência de políticas públicas”. Durante anos, ela integrou o Conselho Estadual de Cultura do Espírito Santo e ajudou a buscar soluções para as reivindicações dos vários núcleos artísticos.
O segmento audiovisual, que, na década de 1990, vira o estado sediar o (descontinuado) Polo Capixaba, começou a colher novos frutos nos últimos três anos. Primeiro, com a vitória do curta “Remendo”, de Roger Ghil (GG Fákolàdé), em Gramado. Com o curso de Cinema da Universidade Federal do Espírito Santo na retaguarda, o movimento audiovisual foi ganhando corpo. “Sem esquecer o trabalho incansável de Rodrigo Aragão” — lembrou a atriz — “com seus filmes de gênero (terror). Ele agora apresenta ‘Prédio Vazio’, rodado em Guarapari”.
Verônica recebeu seu Troféu Vitória no palco do Cine-Teatro Sesc Glória e, em seguida, assistiu a quatro curtas e a um longa-metragem capixaba. Estava radiante de alegria com o reconhecimento do Festival de Cinema, o mais importante do estado.
“O Deserto de Akin”, ficção de Bernard Lessa, é o representante do Espírito Santo na competição de longas-metragens. Com estreia comercial agendada para o próximo dia 31, o filme se passa numa pequena cidade capixaba, que recebe um médico cubano, contratado pelo programa Mais Médicos, implementado durante o Governo Dilma Rousseff.
Akin atenderá a pacientes os mais diversos e dedicará atenção especial a uma criança indígena, que necessita de transplante de córnea.
O “Mais Médicos” e seus problemas — já que o filme se passa no ano eleitoral de 2018, quando do triunfo de Jair Bolsonaro e consequente desmantelamento do programa — será o pano de fundo de trama centrada em relacionamento a três. Akin, interpretado pelo ator cubano Reynier Morales, namora Erika (Ana Flávia Cavalcanti) e acabará se envolvendo com o chef du cuisine Sérgio, interpretado pelo pernambucano Guga Patriota.
A vida na comunidade sofrerá as consequências da polarização política, exarcebada naquele momento (vésperas das eleições de outubro de 2018). Com a vitória da extrema-direita, Akin terá que decidir se regressa a Cuba ou se encontra solução para continuar morando e trabalhando no Brasil.
Bernard Lessa e sua equipe debateram o filme com o público e ele fez questão de deixar claro que fugiu de simplificações. Sua intenção, desde a escritura do roteiro (além de diretor e roterista, ele assina a montagem), era apostar “na complexidade” dos personagens, de seus sentimentos e relações.
Além de mostrar a vida profissional e amorosa de Akin, em registro realista, o filme estabelece camada metafórica construída com a presença de uma serpente, símbolo de um tempo convulsivo, e com a areia fina que invade as casas, em especial, a do médico.
Os mais velhos hão lembrar-se do soterramento da antiga vila capixaba de Itaúnas, gradualmente engolida por dunas de areia, entre as décadas de 1950 e 1970. O desmatamento da restinga foi a causa principal do fenômeno e da consequente transferência dos moradores para uma nova vila. Mas, em “O Deserto de Akin”, não haverá digressões político-ecológicas sobre as razões da invasão arenosa das moradias.
O que interessa ao filme são as experiências sensoriais do protagonista, sua relação com os parceiros e com as danças (o forró dita o ritmo de muitas sequências). Sem esquecer seus pacientes. Ele, afinal, é um médico dos mais dedicados.
Embora o filme se encerre com poderosas imagens captadas pelo fotógrafo Araquém Alcântara, o “Mais Médicos” acaba em segundo plano. A metáfora da travessia do deserto se dá no plano pessoal. Ou seja, mais nos problemas afetivos que nos políticos, que o indeciso Akin terá que superar, caso queira continuar no Brasil. Nesse sentido, o filme buscará solução em tudo divergente das brutais ideias que triunfariam nas urnas brasileiras naquele fatídico ano de 2018.
Para Bernard Lessa, o Espírito Santo só conseguiu reunir cinco longas-metragens capixabas — o que acontece pela primeira vez em 32 anos de história do festival —, porque “políticas públicas construídas no últimos anos florescem agora”.
O realizador faz questão de lembrar que o próximo ano (2026), palco de eleições presidenciais, para governadores e deputados, poderá interromper esse momento virtuoso. “Aqui no Espírito Santo, o nome mais cotado para o governo estadual não tem nenhum interesse pelo fomento ao nosso audiovisual”. Deixando de lado, por alguns instantes, o futuro, Lessa enumera as razões do sucesso atual:
— Nós, produtores e realizadores capixabas, estamos desfrutando de oito anos de políticas públicas empreendidas pelo Governo Estadual, os últimos deles em parceria com o Governo Federal. Houve, também, o estímulo das Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, e os Arranjos Regionais da Ancine (Agência Nacional de Cinema). O nosso Arranjo Regional data de 2021, mas os recursos só foram liberados durante o Governo Lula”.
Dos quatro curtas exibidos na mostra Foco Capixaba — “Nosso Tempo a Sós”, de Júlio Costa, “Castelos de Areia”, de Giuliana Zamprogno, “Os Cravos”, de Renan Amaral, e “A Última Sala”, de Gabriela Busato e Júlio César —, este último foi o que mais chamou atenção no debate. Mesmo que tenha frustrado parte da plateia.
Como diz o próprio título, “A Última Sala” refere-se ao derradeiro cinema de rua de Vitória que não foi transformado em igreja evangélica, agência financeira ou estacionamento. Hoje, a sala intitula-se Cine Erótico e funciona como vitrine de filmes pornográficos e “espaço de pegação”. Sua clientela é “majoritariamente gay”.
O filme, realizado por alunos da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), baseia-se em estudo de professor da instituição que promoveu amplo levantamento do parque exibidor (antes, claro, da substituição dos cinemas de rua por multiplexes localizados em shopping centers).
O filme começa com fotos históricas dos anos de ouro dos grandes cinemas de rua de Vitória, mas depois dedica a maior parte de seus 20 minutos ao seu novo destino — ser espaço de encontros sexuais, mais que de exibição de filmes eróticos.
Um detalhe chamará atenção na fachada do cinema, já que uma bandeira do Brasil faz parte dos objetos decorativos. O dono, bolsonarista, não quis aparecer no filme nem falar da “Última Sala”.
UM URSO E UM OSCARITO
Como o Festival de Vitória abre espaço nobre para o curta-metragem, ele dispõe de uma dezena de competições temáticas — curtas ambientais, curtas de realizadores afro-brasileiros, de mulheres etc. E conta com vários júris para avaliar tal produção. Estão aqui, nessa função, o cineasta gaúcho Victor Di Marco (de “Zagêro”), que será homenageado pelo Iecine-Gramado, o ator Higor Campagnaro, os documentaristas Margarita Hernández, Gabriela Gastal e Bertrand Lira e duas estrelas capixabas, a atriz (homenageada) Verônica Gomes e a cineasta e performer GG Fákolàdé. Mas a estrela que concentra maiores atenções é a paraibana Marcélia Cartaxo. Ela integra o júri de longa-metragem com o ator baiano Heraldo de Deus (de premiadíssimo “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”) e com a diretora de arte Joyce Castello.
Marcélia Cartaxo, que em breve colocará um Troféu Oscarito em sua estante ao lado de seu Urso de Prata, conquistado em Berlim 1986, está muito feliz com o prêmio que receberá, em breve, no Festival de Cinema de Gramado (de 15 a 24 de agosto).
A atriz está, também, empolgada com o novo desafio que a espera — o filme “Sobre Dora e Dores”, de Kaká Nogueira e Bell Gama, produção tocantinense, que ela protagonizará. Além do mais, tem convite para atuar em nova realização do cineasta baiano Sérgio Machado. E, claro, aguarda o momento em que verá sua história de vida contada num longa ficcional cujo roteiro já está pronto. Foi escrito por Allan Deberton, que a dirigiu no premiadíssimo “Pacarrete”.
Marcélia está entusiasmada com seu trabalho na novela “Guerreiros do Sol” (40 capítulos), disponível na Globoplay. “Faço a mãe dos irmãos cangaceiros, incluindo o protagonista, interpretado pelo pernambucano Thomás Aquino (Josué Alencar). E o meu marido, na trama, é interpretado pelo ator capixaba Markus Konká”.
O vindouro mês de agosto de Marcélia será, mesmo, dos mais agitados. Primeiro, ela receberá o Troféu Oscarito, na Serra Gaúcha. Em seguida, irá para Tocantins, protagonizar o longa de Kaká e Bell. No dia 22, data do aniversário de sua cidade natal, Cajazeiras, no sertão paraibano, ela verá seu nome estampado na fachada do cinema do município (de 64 mil habitantes).
“Estarei em pleno processo de filmagens em Tocantins”. Se não for possível estar nos festejos de Cajazeiras, Marcélia garante que tudo fará, quando terminarem as filmagens de ‘Sobre Dora e Dores’, para estar na sua cidade natal, curtindo o cinema batizado, em vida, com seu nome.
Seu papel no longa tocantinense é o de uma benzedeira. A trama se desenvolve na região Norte do Brasil (onde hoje está o estado de Tocantins), nas décadas de 1970 e 1980. A narrativa acompanha Dona Cota, benzedeira e carpideira, que adota a órfã Dora e repassa a ela seus conhecimentos. Ela o faz motivada pelo desejo de que suas práticas (benzer corpos vivos e de rezar por boa passagem para os mortos) não seja extinta. Os diretores, relembra Marcélia, pretendem explorar temas como a ancestralidade feminina e as raízes culturais da região Norte do Brasil.
O roteiro de “Sobre Dora e Dores”, que foi contemplado pelo Edital Audiovisual Tocantins 2023, baseia-se em romance da escritora Lita Maria, integrante da Academia de Letras de Palmas-Tocantins.
