Festival de Vitória presta tributo a Zita Carvalhosa e exibe safra privilegiada de curtas-metragens
Foto © Sergio Cardoso/Melina Furlan
Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória (ES)
O Festival de Cinema de Vitória prestou tributo à memória de Zita Carvalhosa, produtora e criadora, 36 anos atrás, do Curta Kinoforum, o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Zita morreu nessa terça-feira, 22 de julho, vítima de câncer. Ela tinha 65 anos e deixa significativo acervo como produtora de dezenas de filmes de curta, média e longa-metragem.
Depois de formar-se em Cinema pela Universidade Paris 3, na França, a paulistana Zita Carvalhosa escolheu a produção audiovisual como primeira opção de sua vida profissional. Em 1983, criou, com parceiros, a Superfilmes. Uma produtora pequenina, que foi ganhando fôlego. Em 1987, participou da equipe de produção de “Anjos da Noite”, de Wilson Barros, e iniciou fértil (e fertilizadora) produção de curtas-metragens. Com o desmonte da Embrafilme, no Governo Collor, os filmes de curta duração transformaram-se em peça de resistência do cinema brasileiro.
No final dos anos 1980 e ao longo da década de 1990, a Superfilmes assinou a produção de curtas como “A Mulher do Atirador de Facas”, de Nilson Villas Boas, “Onde São Paulo Acaba”, de Andrea Selligmann, “Amor”, de José Roberto Torero, e um média-metragem, tipo joia rara, chamado “Criaturas que Nasciam em Segredo”, de Chico Teixeira. Estes filmes causaram sensação nos festivais nacionais (e em alguns estrangeiros) e Zita tornou-se “a” produtora da “Primavera dos Curtas”.
Em busca de vitrine para a produção de duração reduzida, Zita usou sua experiência internacional (acumulada em festivais dedicados ao formato, em especial, o de Clermont-Ferrand, na França) para criar o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, rebatizado por jovens realizadores como Curta Kinoforum. O novo nome fez jus à força das Oficinas, que ela criou para formar quadros dedicados ao fazer cinematográfico. E derivou-se da Associação Cultural Kinoforum. Esta entidade trazia, embutido em seu nome, homenagem ao soviético Dziga Vertov, criador do Kino Olho e de centenas de ‘kinofilmes’, de curta duração, que radiografaram a paisagem humana e física do país dos sovietes, a URSS. E que, a partir desses registros, realizou o longa documental “O Homem e sua Câmara” (1929), considerado o maior filme de não-ficção do mundo pelo BFI e sua revista, a Sound and Sight.
Zita, de voz calma e postura diplomática, não mantinha nenhum tipo de relação política com a União Soviética. Sua pátria era o cinema. A ele dedicou quatro décadas de trabalho. No terreno da produção de longas-metragens, ela deixou dezenas de filmes, muitos (a maioria) de diretores estreantes. Até sua última produção, o belíssimo “Antonio Candido, Anotações Finais” (2024), de Eduardo Escorel, a Superfilmes assinou ficções e documentários, alguns deles dignos de figurar em antologias de “momentos luminosos do cinema brasileiro” (ver lista no final).
Se Zita estivesse no Festival de Vitória, teria assistido, com satisfação, a dois programas de curtas-metragens muito especiais, apresentados nos dois últimos dias. Na competição brasileira, o público vibrou com trinca de filmes programados na noite de segunda-feira, que exibiu o capixaba “Waldo”, de Fabricio Fernandez e Diego Nunes; o paulista, do interior, “Arame Farpado”, de Gustavo de Carvalho, e o baiano “Na Volta Eu te Encontro”, de Urânia Munzanzu.
Já a Mostra Corsária, criada para destacar produções arriscadas (como o longa-metragem que lhes emprestou o nome — “Alma Corsária”, de Carlos Reichenbach, 1993), exibiu cinco títulos, que serão comentados abaixo.
O maior destaque da competição de curtas brasileiros foi o baiano “Na Volta Eu te Encontro”. Urânia Munzanzu, que no debate se definiu “como mulher negra, nordestina, de mais de 50 anos, oriunda de comunidade, gorda e sapatão” é de simpatia única, fala articulada, bem-humorada e muito criativa.
Seu filme mostra, com grande originalidade, a força dos festejos populares nas comemorações do Dois de Julho. Data que projeto-de-lei do presidente Lula quer transformar em feriado nacional. A justificativa vem respaldada pela nova historiografia brasileira (vide artigo do professor Sergio Carvalho Filho, da UFRB, publicado na Folha de S. Paulo, 22/07/2025). Para os novos historiadores, o 2 de Julho simboliza o “Dia Nacional da Consolidação da Independência Brasileira”. Afinal, foi nessa data, em 1823, dez meses depois do Grito do Ipiranga, que o Brasil (no caso a Bahia) expulsou o Exército Português do território nacional.
O filme de Urânia não se apega ao desfile cívico que festeja o 2 de Julho, mas sim ao fecho das festanças, que começam na histórica Cachoeira, centro das forças rebeldes e populares, e se encerram no Campo Grande, bairro soteropolitano, no dia 5 de Julho.
Nesse dia, o “Povo de Santo”, cultor da Umbanda (e dos Caboclos), se soma a populares (moradores de rua, cachaceiros, putas e quem mais chegar), para fazer a festa sem bandas militares e figurões da política.
“Na Bahia” — lembrou a cineasta —, “nossos avós nos educaram evocando o que aprenderam com seus ancestrais indígenas e africanos”. E desse aprendizado destacam-se as frases “Na volta da Cabocla, a gente se acerta”. Ou “Vá chorar aos pés do Caboclo”. Ambas evocam a entidade que guia o 2 de Julho e seus desdobramentos (a Cabocla, o Caboclo), que há de solucionar os problemas da população desassistida.
O filme exala alegria e promove a reconciliação entre dois personagens ficcionais (interpretados por Nitorê Akadã e Danilo Duarte). Ela, uma jovem de vistosa peruca lisa; ele um um homem de santo. O rapaz resolve cobrar dívida da moça. Fez um ebós para ela, que não o recompensou como combinado. E a cobrança se dá justo no dia 5 de Julho. Mas, nos festejos propriamente ditos, a paz retornará, pois a Cabocla a tudo dá um jeito. Essa é a crença popular, que o filme abraça com alto astral.

“Arame Farpado”, que participou da Mostra Generation do Festival de Berlim, vem de Paraguassu Paulista, município do interiorzão do estado. E segue causando sensação em festivais brasileiros. Por merecimento. A ficção “caipira” (ou rural) narra história encantadora: duas irmãs, uma pós-adolescente (Camila Botelho) e outra pré-adolescente (Isabella Guido), se juntam ao padrasto em situação das mais difíceis. Armadilha, com arame farpado, colocada pela menor (em parceria com um irmãozinho), trará grave dano à mulher de um pastor evangélico. O encontro se dará numa UPA (unidade de saúde pública). O desfecho, de tom redentor, mas nada piegas, impregna a tela. Elenco, mise-en-scène e senso de humor fino mostram que o jovem Gustavo Carvalho vai longe. E ele já finaliza seu oitavo curta, “Peça Única”.
O curta capixaba “Waldo” foi bem recebido por parte do público. Só não pela íntegra da plateia, que lotou o Cine Sesc Glória, porque seu personagem, o poeta Waldo Motta, de 65 anos, é um cultor do cu. Sim, o “Jean Genet capixaba”, homoafetivo, prega a liturgia do orifício erótico (e excretor).
O filme registra os versos do conhecidíssimo (no Espírito Santo) e desconhecido (no resto do país) poeta vitoriense, de força literária evidente. Mas fica o desconforto das recorrentes citações do cu. Acadêmicos da grandeza de Roberto Schwarz conhecem a obra de Waldo. E sobre ela o professor uspiano emitiu parecer dos mais estimulantes (mas, elegantemente, trocando a palavra cu por ânus): “trata-se de uma poesia que ‘toma o ânus do poeta’ como centro do universo simbólico. A partir daí mobiliza bastante leitura bíblica, disposição herética, leitura dos modernistas, capacidade de formulação, talento retórico e fúria social. O ponto de vista e a bibliografia fogem ao usual, mas o tratamento da opressão social, racial e sexual não tem nada de exótico”.
Os curtas corsários foram exibidos na tarde da terça-feira, enquanto o meio cinematográfico pranteava a perda de Zita Carvalhosa. Tudo começou com “Sombras de Macumba na Luz da Memória”, de um um enigmático diretor chamado Mysteryo, de quem sabemos ser de origem carioca e autor de mais dois curtas experimentais (“Omi” e “Caos”). E prosseguiu com o gaúcho “Lagoa Armênia”, de Leonardo da Rosa, com o capixaba “O Som do Trovão no Deserto”, de Diego Zon, o fluminense “Enxofre”, de Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes, e, por fim, com o alagoano “Cavaram uma Cova no meu Coração”, de Ulisses Arthur.
Incrível notar que o cinema experimental brasileiro está plugadíssimo na realidade social brasileira. Todos eles quebram com a gramática tradicional do cinema, recorrem a recursos inusuais, perturbam nossos sentidos com uma visualidade dissonante. Mas têm muito a dizer.
“Sombras de Macumba” é um inventivo libelo contra o racismo religioso. A partir de manchetes e textos de jornais do final do século XIX até a década de 1930, a narrativa mostra, ao longo de 15 minutos, o gigantesco preconceito contra os cultos de origem africana. Os que se dedicam a tais práticas eram definidos como feiticeiros e malfeitores, exploradores da fé alheia. A ação implacável da polícia era elogiada com entusiasmo. As palavras usadas pelos jornais traziam tamanha carga racista que basta ao filme exibi-las. Quem assistir ao poderoso “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, produção catarinense de Rodrigo Ribeiro”, encontrará nele um paradigma para a obra do misterioso Mysteryo.
“Lagoa Armênia”, de Leonardo da Rosa, radicaliza no uso da fotografia. As imagens aparecem como se fossem negativos. Vemos vultos azuis, esverdeados, brancos (e, mentalmente, os complementamos com o amarelo). Vemos um carro estacionado na beira de uma lagoa. A que dá título ao filme e situa-se em Taquari, município gaúcho onde nasceu o general Arthur da Costa e Silva (1899-1969), segundo presidente da ditadura militar implantada em 1964.
Sete anos depois da morte do general, sua cidade natal o homenageou com um busto na beira da Lagoa Armênia. Em 2014, depois das revelações da Comissão da Verdade, a estátua foi retirada do espaço público e levada para o interior de pequeno museu dedicado à memória do militar.
Todos esses fatos são evocados por irreverentes diálogos mantidos por jovens fantasmagóricos, que passeiam em torno da lagoa, principal ponto turístico do município gaúcho.
“O Som do Trovão no Deserto” é um curta de 22 minutos, assinado por Diego Zon, o cineasta mais festejado aqui em Vitória, pois tem um longa (“Margeado”, da seleção da Mostra Tiradentes) na programação-vitrine do estado-anfitrião, pois uma de suas protagonistas, Verônica Gomes, recebeu o Troféu Vitória-Trajetória. E teve esse curta, quase média, incluído na inquieta Mostra Corsária.
No mesmo ritmo sensorial de “Margeado”, o jovem realizador segue apegado às consequências das tragédias da natureza sobre vidas de pessoas humildes, dos — como diria Frantz Fanon —“condenados da Terra”. As enchentes derrubam casas, destroem estradas, soterram pessoas. A lama se impõe. Zon, um diretor que acredita na força das imagens, merece que acompanhemos com atenção seus trabalhos cinematográficos. Afinal, soma inquietação artística e temas essenciais ao nosso tempo.
“Enxofre”, de Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes, é uma produção luso-brasileira, de alma africana. Falado em crioulo, português e… romeno, esse ensaio experimental nos mostra imagens que, não saberemos precisar, parecem colhidas nos terrenos vulcânicos de Cabo Verde. A sinopse registrada no catálogo do Festival de Vitória é tão lacunar (“Eu sou a morta. Eu sou a viva”), que podemos ambientá-la em qualquer paragem. A beleza plástica do filme é imensa.
O alagoano “Cavaram uma Cova no meu Coração”, de Ulisses Arthur, é um híbrido de documentário com ficção científica e filme de ação. O ponto de partida é a tragédia que se abateu sobre grande bairro de Maceió, capital do estado nordestino, devido à ação predatória de mineradora, ávida pela extração da sal-gema.
Crianças e adolescentes encenam esforços para destruir a engrenagem que causa tremores e solapa o solo. E obriga a saída de milhares de pessoas de suas casas. Usam armas de brinquedo, na verdade, pedaços de pau. No filme alagoano, menores não carregam revólveres, muito menos fuzis. Impresso em preto-e-branco, com imagens finais em cores (mesmo assim esmaecidas), o filme não deixa de ter um trágico aspecto lúdico.
Um registro final, a título de fecho da força dos curtas e da produção da indomável Urânia no Festival de Vitória: a baiana está produzindo um longa-metragem — “Mulheres Negras na Rota da Liberdade” — em três países africanos (Senegal, Benin e Togo).
“Já filmei nessas nações com Suely Carneiro e Conceição Evaristo”, conta a realizadora, mas “só finalizarei o longa documental quando registrar a entrega de dupla cidadania, concedida pelo Benin a Suely Carneiro”. Afinal, “a entrega a ela do passaporte tem imenso significado simbólico, já que uma brasileira será reconhecida, por esse ato histórico de cidadania, por um país que nos formou. Trata-se de reparação de identidade sequestrada”.
Produções de Zita Carvalhosa (destaques)
2024 – “Antônio Candido, Anotações Finais”, de Eduardo Escorel (doc)
2022 – “Tinnitus”, de Gregório Grazziozi (ficção)
2022 – “Carvão”, de Carolina Markowicz (ficção)
2019 – “Fotografação”, de Lauro Escorel (doc)
2009 – “Um Homem de Moral”, de Ricardo Dias (doc)
2007 – “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (ficção)
2006 – “À Margem do Concreto”, de Evaldo Mocarzel (doc)
2001 – “Tônica Dominante”, de Lina Chamie (ficção)
2001 – “Vale a Penna Sonhar”, de Stela Grisotti e Rudi Böhn (doc)
1997 – “O Cineasta da Selva”, de Aurélio Michiles (doc)
1995 – “No Rio das Amazonas”, de Ricardo Dias (doc)
