Fernando Coimbra faz de “Os Enforcados” soma de duas de suas maiores paixões, o teatro de Shakespeare e o film noir

Foto © Laura Campanella

Por Maria do Rosário Caetano

Havia imensa expectativa em torno do segundo longa-metragem (brasileiro) de Fernando Coimbra, pois o primeiro – o atmosférico “O Lobo Atrás da Porta” – causara sensação. Acumulara dezenas de prêmios e projetara um realizador apaixonado pelo cinema noir e por seus atores.

Quem notou o talento de Coimbra e viabilizou a sequência de sua carreira foi a indústria do streaming, internacional pela própria natureza. Uma indústria que se consolidava, naquele momento, com força avassaladora.

O jovem cineasta paulista, nascido em Ribeirão Preto há 49 anos, de formação uspiana, foi parar em “Narcos”, uma das séries mais exitosas da Netflix. E seguiu trabalhando em outras produções internacionais. Fez até um segundo filme (de ação e guerra, no caso a do Iraque), “Sand Castle” (Castelo de Areia) com produção e elenco norte-americanos.  Que, registre-se, não aconteceu junto aos espectadores brasileiros. Passou batido.

“Os Enforcados”, estreia dessa quinta-feira, 14 de agosto, marcaria – finalmente – a aguardada volta de Fernando Coimbra aos seus elementos formadores – a paisagem brasileira, o teatro, ao qual dedicou parte de sua vida (no Oficina ze-celsiano) e, claro, o cinema noir, com suas sombras, tramas policiais e devidas doses de violência (implícita no “Lobo” e quase explícita – e voyeurista – nos “Enforcados”).

Além de tudo, o cineasta voltaria a trabalhar com sua “musa”, a atriz Leandra Leal, que causara sensação em “O Lobo Atrás da Porta” ao interpretar Rosa, recriação coimbrã da “Fera da Penha”. Leandra havia encontrado o registro perfeito na composição da amante rejeitada, que, para vingar-se, sequestraria e sacrificaria a filha do parceiro, uma criança de apenas quatro anos. Infanticídio que chocou o Brasil no alvorecer da década de 1960.

Com “Os Enforcados”, Coimbra volta ao mundo criminal brasileiro. Mas, dessa vez, o faz no seio de família de bicheiros da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ele deixa os suburbanos, de vida modesta, do “Lobo Atrás da Porta” e propõe-se a mergulhar nas entranhas dos “Homens de Bem”.

Inspirado na sanguinária “MacBeth” e com empréstimo a “Hamlet” (irmão que mata irmão para herdar sua posição na estrutura de poder), o cineasta-roteirista engendrou trama para estômagos fortes. E, como fazem as séries contemporâneas (e os filmes dos Irmãos Coen), injetou ingredientes de comédia à narrativa. Que, registre-se, contou com colaboração (no roteiro) da atriz e escritora Fernanda Torres, cultora de Shakespeare e dotada de refinada inspiração para a comédia.

Fernando Coimbra se propôs, em seu segundo filme brasileiro, a retratar o Brasil que soma Jogo do Bicho, milícias e outras contravenções, sob a sedutora alegria irradiada pela (ficcional) Escola de Samba da Pavuna. Regina (a “rainha” Leandra Leal) vive com o marido Valério (Irandhir Santos) em mansão incrustada na encosta de um morro carioca.

Os dois dedicam-se a arriscados jogos amorosos-sexuais e levam vida de abundâncias. Ele cuida de negócios escusos, enquanto ela comanda complexa reforma do casarão, com vista para as belezas da Baía da Guanabara. O marido, porém, torna-se mensageiro de uma péssima notícia: a esposa terá que interromper a reforma, pois ele está falido. Inconformada, a Lady Macbeth tropical elabora, em parceria com o esposo (capaz de fantasiar-se de assaltante mascarado para satisfazer os desejos eróticos dela), um plano capaz de salvá-los. É na execução desse plano que o filme construirá suas duas horas de narrativa banhada em sangue.

Os que cultivam o cinema noir perceberão as múltiplas referências de Coimbra. A mais evidente delas — fora a peça “Macbeth”, evocada pelo próprio diretor — é “Chinatown” (Roman Polanski, 1974). O personagem de Irandhir usa esdrúxulo curativo no nariz, semelhante ao usado pelo personagem de Jack Nicholson. Há referências, também, aos banhos de sangue de Brian De Palma e do cinema asiático. E às tiradas de humor dos Irmãos Coen.

Leandra Leal encarna uma “femme fatale” à brasileira, com seus cabelos loiros e figurino que vai do cafona ao quase-refinado, sempre em tons fortes, com muito vermelho, decotes e recortes.

Stepan Nercessian arrasa na pele do tio bicheiro-deputado de Valério. Irene Ravache, que dá vida à exótica mãe de Regina, uma cartomante capaz de colocar cartas do tarô para a própria filha, também brilha. O mais fiel dos capangas de Valério, interpretado por Thiago Thomé, consegue construir seu personagem com sutileza, longe do estereótipo dos serviçais criminosos de tantos filmes brasileiros.

O elenco de apoio de “Os Enforcados” também rende bem, seja o advogado de Augusto Madeira, seja Ernane Moraes (que lembra o bicheiro Castor de Andrade), ou Ricardo Bittencourt, ou Marcelo Mello. Até o português Pêpê Rapazote, que interpreta um delegado de nossa Polícia Federal, segura o tranco. E o faz em papel difícil. Tem que tentar, o mais que puder, neutralizar o sotaque lusitano. Afinal, está na cara que o ator entrou no elenco por tratar-se de coprodução com a lisboeta Fado Filmes de Gonçalo & Luis Galvão Telles.

Tal exigência, supõe-se, exigiu remendo no roteiro, já que o “Federal” justifica seu acento (“filho de diplomata!”) e provoca riso, uma das intenções explícitas da narrativa de Coimbra.

A trilha sonora (por sinal, ótima, seja a original, seja a escolha dos temas cantados) dá um tempero especial ao filme. A começar pelo samba carnavalesco que abre a narrativa. E pelo embalo das sequências realizadas na Escola de Samba azul-e-branco, seja na singela “Muito Estranho (Cuida de Mim)”, de Dalto e Cláudio Rabello. Karen Harley, craque da montagem, imprime tal ritmo ao filme, que nem percebemos sua duração de 123 minutos.

A fotografia de “Os Enforcados” não traz a atmosfera sombria de “O Lobo Atrás da Porta”. Nem o filme atinge a força surpreendente (e madura) da instigante estreia de Coimbra. Mas o cineasta atingiu mais um de seus intentos: mostrar o crime incrustado no tecido social brasileiro, não apenas entre os que estão na base da pirâmide, o lumpen-proletariado. Mas sim, e também, entre os endinheirados, aqueles que podem viver em casarões construídos em encostas cercadas de árvores e desfrutar de paradisíacas vistas panorâmicas. Aqueles que têm condições de contratar os melhores escritórios de advocacia e driblar a Lei.

Os chamados “Homens de Bem”, aqueles que montam esquemas financeiros (caso de dono de poderosa rede de farmácias) ou matam trabalhador por razão banal – um caminhão de lixo obstruía o caminho de seu carrão particular.

No caso de “Os Enforcados”, veremos aqueles que promovem banhos de sangue ao eliminar desafetos, enquanto posam de mecenas da cultura popular, seja de escolas de samba, ou de times de futebol.

 

Os Enforcados
Brasil-Portugal, 2025, 123 minutos
Direção e roteiro: Fernando Coimbra
Elenco: Leandra Leal, Irandhir Santos, Thiago Thomé, Irene Ravache, Stepan Nercessian, Ernane Moraes, Pepê Rapazote, Augusto Madeira, Ricardo Bittencourt
Fotografia: Júnior Malta
Montagem: Karen Harley
Som: Olivier Blanc
Direção de arte: Caio Costa e Rafael Torah
Produção: Gullane, Fado Filmes
Coprodução: Globo Filmes, TeleCine, Paris Filmes, Pavuna Pictures
Distribuição: Paris Filmes

 

FILMOGRAFIA
Fernando Coimbra (Ribeirão Preto/SP, 16 de maio de 1979)
Diretor e roteirista, formado pela ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo)

Longas-metragens:

2025 – “Os Enforcados” (Brasil-Portugal)
2017 – “Sand Castle” (Castelo de Areia, EUA)
2013 – “O Lobo Atrás da Porta” (Brasil)

Curtas-metragens:

2010 – “Magnífica Desolação”
2009 – “A Garrafa do Diabo”
2007 – “Trópico das Cabras”
2002 – “Pobres Diabos no Paraíso”
1996 – “O Retrato de Deus Quando Jovem”

Séries (streaming):

2015-2017 – “Narcos” (4 episódios)
2017 – “Outcast” (1 episódio)
2017 – “O Homem da sua Vida” (13 episódios)
2018 – Terrores Urbanos” (2 episódios)
2019 – “What/If” (1 episódio)
2023 – “Perry Mason” (2 episódios)

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