Gramado mostra “Nó”, filme feminino vindo do Paraná, e transforma-se em vitrine de série sobre comissários de bordo que contrabandearam AZT para salvar vidas
Foto: Equipe de “Nó”, de Laís Melo © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
A primeira noite da mostra competitiva do Festival de Gramado dividiu-se entre o cinema feminino made in Paraná e série de pegada queer, produzida para o streaming.
“Nó”, longa de estreia da paranaense Laís Melo, abriu a competição de longas ficcionais. Depois, foi exibido episódio especial da série “Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente”, de Marcelo Gomes e Carol Minêm. Com estreia prevista para o próximo dia 31, na HBO Max, “Máscaras de Oxigênio” situa sua trama na década de 1980, período em que o mundo enfrentou grande desafio sanitário — a epidemia da Aids.
O longa paranaense, que traz maioria de nomes femininos em seus créditos técnicos, dá protagonismo absoluto às mulheres. A começar pela atriz Patrícia Saravy, que interpreta Glória, força central da narrativa. Ela trabalha numa fábrica de alimentos industriais (no caso, os chamados “salgadinhos”), tem 34 anos e três filhas. Toma coragem e decide livrar-se do ciclo de violência doméstica, divorciando-se do marido. Será obrigada, para iniciar a nova vida, a alugar modesto apartamento no centro de Curitiba, onde viverá com as filhas. Isto, enquanto enfrenta o processo de separação legal e a vontade do ex-marido, que exige a guarda integral das filhas.
A vida cotidiana, sobrecarregada pelo trabalho e pelo risco de perder a guarda das meninas, faz brotar no corpo de Glória volumoso caroço. Um nódulo, um nó.
A cineasta contou no debate gramadense, que o filme foi concebido, escrito e, em parte, filmado com o nome de “Histeria”. Até que uma das filhas da personagem Glória comentou que “o umbigo é nosso primeiro nó”. Decidiu-se, a partir dali, que haviam encontrado um nome forte, sintético e potente. “Nó” e ponto final.
Na mesa de debate sentaram-se, além da diretora Laís Mello e de sua protagonista, Patrícia Saravy (também co-roteirista), a diretora de fotografia Renata Corrêa, a diretora de arte Bea Gerolin e as atrizes Sali Cimi e Fernanda Silva. O “bendito fruto entre as mulheres” era Antônio Gonçalves Júnior, da Grafo, empresa responsável pela produção do filme. Ele lembrou que “Nó” nasceu ao longo da última década, período em que sua produtora se empenhou na viabilização de filmes autorais. E revelou o orçamento do longa paranaense selecionado por Gramado: apenas 1,2 milhão.
A equipe de “Nó” lembrou que “as filmagens se deram em 20 diárias”, ou seja, em menos de três semanas. E mais: cenas essenciais à narrativa, realizadas na fábrica onde Glória trabalha, foram captadas em pouco mais de duas horas. Tempo por demais exíguo, mas possível quando se trata de produção de baixo orçamento. Com as máquinas em pleno funcionamento, cada instante foi muito bem aproveitado pela diretora de fotografia. E pelo elenco operário.
Laís, que dirigiu os curtas “Tentei”, premiado no Festival de Brasília, e “Me Deixei Ali”, formou-se em Comunicação e passou a dedicar-se a trabalhos junto aos movimentos sociais (e operários). Em “Nó”, ela elabora o que denominou de “Cinema do Acolhimento”. Filmes sobre, com e para, primordialmente, mulheres. Os homens são “presenças ausentes” (nunca veremos o rosto do ex-marido de Glória) e nada saberemos sobre os operários que disputam, com ela, promoção (e consequente melhoria de salário) na fábrica.
A equipe entende que personagens masculinos são, historicamente, a força hegemônica do cinema e que é hora de se dar atenção aos corpos femininos.
A diretora de fotografia Renata Corrêa citou as fontes de diálogo que fertilizaram o filme — o mineiro (de Contagem) “Temporada”, de André Novais Oliveira, o argentino “O Pântano” e “A Mulher sem Cabeça”, ambos de Lucrécia Martel, e o italiano “As Maravilhas”, de Alice Rohrvacher.

No debate de “Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente”, Marcelo Gomes citou suas referências (“Paris is Burning”, 1990, documentário de Jennie Livingston, e o francês “120 Batimentos por Minuto”, de Robin Campillo).
O debate seguiu, animado, com a participação dos atores Bruna Linzmeyer, Johnny Massaro, Ícaro Silva e Igor Fernandez; dos produtores (a cinquentenária Morena Filmes, de Mariza Leão, homenageada de Gramado 2025 com o Troféu Eduardo Abelin) e, principalmente, com o emocionado (e falante) Thiago Pimentel, idealizador da série.
Composta em cinco episódios, que serão disponibilizados, um por semana, a partir de 31 de agosto, “Máscaras de Oxigênio…” reúne, na década de 1980 (quando a Aids assumiu caráter epidêmico), um grupo de comissários de bordo cariocas. Eles curtem a vida na noite febril do Rio de Janeiro, até que um deles, o chefe de cabine Nando (Johnny Massaro), descobre-se portador do vírus HIV. Como o medicamento AZT não era disponibilizado no Brasil, eles resolvem bolar plano para trazê-lo, dos EUA, como contrabando. O AZT, vale lembrar, é um fármaco antirretroviral vital para o tratamento de pacientes com HIV/AIDS.
Marcelo Gomes, diretor do cultuado “Cinema, Aspirinas e Urubus”, contou que ele e sua equipe criativa recorreram (e incorporaram) registros documentais, impressos em velhos VHSs, em busca da textura e clima das festas gays da efervescente década de 80. Cujo epicentro estava na Galeria Alaska, em Copacabana. E tinham o grupo Os Leopardos como referência máxima.
O primeiro episódio da série mostrará, como se fosse um musical efervescente, o hedonismo então dominante. Para realizar sua proposta — construir narrativa ficcional, mas com pegada documental —, a equipe de “Mascaras de Oxigênio…” recorreu à consultoria da Dra. Márcia Rachid. Junto com Betinho, o irmão do Henfil, e Hebert Daniel, ela teve papel fundamental na luta pelo pleno atendimento às pessoas portadoras de HIV. De certa forma, a médica, dona de mente aberta e grande coragem, interpretada por Hermila Guedes, presta homenagem à cientista.
A equipe de “Máscaras de Oxigênio…”, que sequencia, em Gramado, o uso do Palácio dos Festivais como vitrine de lançamentos de streaming (depois de “Cangaço Novo” e de “Cidade de Deus – A Luta Não Para”) agradeceu “o espaço e horários nobres”. A ela destinados. E lembrou o conceito, formulado por Mariza Leão, dessa produção bancada pela HBO: “não fizemos uma série para o público gay, mas, sim, uma série para todos os públicos, pois o enfrentamento de uma epidemia, seja do HIV ou do coronavírus, é uma luta de todos. Uma questão de saúde pública coletiva”.
FLASHES
. CINEMA PERNAMBUCANO EM LIVRO — O cinema de Pernambuco, que esse ano somou um Urso de Prata em Berlim (com “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro, filme inaugural do Fest Gramado) e duas Palmas em Cannes (melhor direção e melhor ator), com “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça, foi festejado aqui na Serra Gaúcha com o lançamento do livro “A Potência do Cinema Pernambucano”, de Diego Medeiros. No subtítulo, evidencia-se o orgulho de Pernambuco, que costuma definir-se como o Leão do Norte — “E Como Ele se Tornou um Marco no Brasil e no Mundo”. Nunca é demais lembrar que o estado nordestino contava (conta ainda?) com emissora de rádio que anunciava “De Pernambuco para o mundo”. Contam até, em tom de blague orgulhosa, que a mãe de Gilberto Freyre, quando ele estava pronto para visitar Paris, recomendou ao filho: “não conte que você é pernambucano, para não humilhar os parisienses”. Brincadeiras à parte, o livro, de 384 páginas, fartamente ilustrado, relembra o Ciclo do Recife na era silenciosa, registra “Modelos de Negócios no Cinema em Pernambuco” e “Desafios e Oportunidades: o Futuro do Cinema Pernambucano”. E, por fim, traz 13 entrevistas com cineastas e produtores. Entre eles, Marcelo Gomes, Renata Pinheiro, Cláudio Assis, Hilton Lacerda e Gabriel Mascaro.
. CINEMA FRANCÊS NA SERRA — O comando do Festival de Gramado divulgou os quatro longas-metragens que integrarão a mostra “Cinema Francês” e serão exibidos para a comunidade gramadense, a partir dessa quarta-feira, 20: ‘Suprêmes’, de Audrey Estrougo; ‘Cão Danado’, de Jean-Baptiste Durant; ‘Os Piores’, de Lise Akoka e Romane Gueret; e ‘O Último Moicano’, de Frédérici Farrucci. A curadoria da mostra é de Katia Adler, diretora da Jangada e realizadora do Festival de Cinema Brasileiro de Paris. Os filmes serão apresentados em duas sessões diárias, no Teatro Elisabeth Rosenfeld, com entrada gratuita: quarta-feira – 14h -“Suprimes”; 15h40 – “Cão Danado” (‘Chien de la Casse’); quinta-feira, dia 21, às 14h, ‘Os Piores’ (‘Les Pires’), e às 15h40, ‘O Último Moicano’ (‘Le Mohican’).
. EDITAL SAv-MinC — O secretário-executivo do MinC, Márcio Tavares, e a secretária do Audiovisual, Joelma Gonzaga, lançaram, na abertura do Gramado Film Market, novo Edital para Comercialização em Cinema com investimentos de R$ 60 milhões. A dupla lembrou que “o Brasil vive momento de fortalecimento de sua produção audiovisual” e faz-se necessário, por isso, “garantir que essas obras cheguem de forma ampla e diversa às telas do país”. Para atingir tal meta, “o edital selecionará projetos de comercialização de obras cinematográficas brasileiras independentes de longa-metragem – de ficção, documentário ou animação – para distribuição no mercado doméstico de salas de cinema. Poderão participar distribuidoras brasileiras independentes registradas na Agência Nacional do Cinema (Ancine), e as inscrições estarão abertas de 25 deste mês de agosto até 13 de outubro, pelo Sistema Mapa da Cultura. A chamada prevê cinco módulos de apoio, variando de R$250 mil a R$2 milhões por projeto, conforme o alcance de exibição. Também estabelece cotas de indução regional de, no mínimo, 40% dos recursos para projetos apresentados por empresas proponentes sediadas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste; e 20% dos recursos para projetos apresentados por empresas proponentes

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