“Querido Mundo”, de Miguel Falabella, divide público e crítica, e curta “Cabeça de Boi” coloca Uberaba na tela do Festival de Gramado
Foto: Equipe de “Querido Mundo” © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
Miguel Falabella e seu terceiro longa-metragem, “Querido Mundo”, foram recebidos com significativos aplausos do público da quinquagésima-terceira edição do Festival de Cinema de Gramado. E com severas restrições de parte significativa da Crítica. Para seus detratores, o filme, que o dramaturgo-cineasta define como “fábula popular”, nem merecia estar na principal competição gaúcha.
Falabella subiu ao palco do Palácio dos Festivais com seus protagonistas, Malu Galli e Eduardo Moscovis, com a atriz coadjuvante Danielle Winits e com sua equipe de apoio, formada pelo eufórico produtor Júlio Uchôa, o festejado trilheiro Plínio Profeta e a montadora Maria Moraes. A apresentação de “Querido Mundo” se deu após a entrega do Troféu Eduardo Abelin a Mariza Leão, reconhecida por 50 anos de trabalho como produtora.
Eduardo Moscovis entregou o “Abelin” a Mariza e saudou a imensa contribuição da família Leão Rezende ao audiovisual brasileiro. Quando Falabella subiu ao palco com sua equipe, ele fez questão de evocar o filme “O Sonho Não Acabou”, no qual interpretou seu primeiro protagonista cinematográfico (junto com Chico Diaz). Realizado em Brasília, em 1979, o filme teve produção de Mariza Leão e direção de Sergio Rezende, um dos integrantes do júri de longas ficcionais.
Ao afinal da exibição de “Querido Mundo”, muitos se perguntavam: o filme de Falabella fez por merecer vaga na lista dos seis longas ficcionais que disputam o Troféu Kikito?
Sim e não. Sim, se levarmos em conta que a curadoria de Gramado costuma somar filmes mais ousados (como “O Som ao Redor”, “Noites Alienígenas” e “Oeste Outra Vez”) a produções mais comerciais, estas que mobilizam elencos famosos e são concebidas para dialogar com o grande público. Por isso, correm menos riscos no terreno da criação artística.
A resposta será “não”, se analisarmos os problemas narrativos de “Querido Mundo”. Comparado ao longa anterior do próprio Falabella (“Veneza”, de 2018), o novo filme constitui-se como um retrocesso. Sua construção se faz sobre roteiro pouco crível (mesmo que se proponha como “obra fabular”), com diálogos sofríveis e personagens caricatos (caso de Odila, esposa-perua representada por Daniela Winits, e de marido grosseirão vivido por Marcelo Novaes). Falha, até, no humor, peça de resistência dos melhores projetos de Falabella, seja como ator ou dramaturgo. Em “Querido Mundo”, o cineasta-roteirista recorre a apelos cômicos nada sutis. A cena mais constrangedora faz exalar cheiro de bacalhau do rosto da protagonista, pois ela fora espancada pelo marido com enorme posta do valorizado peixe. Heim?
“Querido Mundo” recria peça teatral escrita 32 anos atrás por Miguel Falabella e Maria Carmen Barbosa (1947-2023). O texto foi montado no Rio, por ele, e, em São Paulo, por Rubens Ewald Filho. Não alcançou o sucesso da resistente “A Partilha”, encenada em 16 países e transformada em filme por Daniel Filho. Mesmo assim, Falabella e Carmen planejaram ver “Querido Mundo” nas telas.
Para chegar ao cinema, “Querido Mundo” passou, claro, por grandes transformações. O texto teatral começa com a explosão de um botijão de gás num apartamento, onde a protagonista Elsa se instala com o marido. Para a versão cinematográfica, Falabella sentiu necessidade de construir longo prólogo capaz de mostrar a vida pregressa de Elsa (Malu Galli) e seu marido abusador (Marcelo Novaes). Como cenário, escolheu sítio de município interiorano, marcado por comportamentos, figurinos e músicas do chamado “agronejo” (sertanejo formatado para o agronegócio).
Um temporal de dimensões bíblicas e uma nova surra, agravados pela queda de uma ponte, levarão o casal Elsa-Gilberto para o Rio de Janeiro. Os espera residência desconhecida. Um apartamento trocado pelo único bem de que dispunham: o sítio.
Ao chegar ao novo lar, Gilberto descobre que comprou gato por lebre. O apartamento se situa em prédio abandonado devido a falcatruas de sua incorporadora. Elsa, atônita com a precariedade da nova residência, descobrirá, junto com o marido, que lá vive um único ser humano — o engenheiro Oswaldo (Eduardo Moscovis), um tolo enredado pela mulher perua (Winits). Enxotado de casa, ele irá morar no apartamento do prédio-esqueleto, sem energia elétrica, água, esgoto etc. etc. Difícil acreditar na ingenuidade de Oswaldo, afinal engenheiro formado numa universidade. E, igualmente, do dono de sítio, homem despachado, que tem carro e amantes. Comprou um apartamento sem nenhuma visita prévia?
A partir desse início inverossímil, a trama irá concentrar-se num único cenário (o prédio em ruínas) e em seus dois protagonistas — os sofridos Elsa e Oswaldo. Uma história de amor se construirá, aos trancos e barrancos.
Falabella, diretor-e-roteirista, recorrerá a um final feliz, cômico e colorido. E mais: de efeito catártico. No final de debate do filme, uma veterana e assídua frequentadora do festival registrou — para Revista de CINEMA — seu “encanto com aquele final redentor, que nos faz esquecer as mazelas do mundo contemporâneo”. Definiu-se como “leiga em cinema” e reafirmou seu prazer de ter assistido a “uma bela história de amor”.
Falabella, ao longo do mesmo debate, reafirmou seu projeto estético-narrativo: fazer filmes para o público. E, convicto, rejeitou as restrições ao cheiro deixado pela agressão à base de avantajada (e inusitada) posta de bacalhau.
“Com esta cena, eu prestei minha homenagem ao Chacrinha, nosso grande comunicador”. Admitiu que fez alguns trabalhos “popularescos” na TV. Já, no teatro, só fez “trabalhos populares”. Mesmo procedimento que teria adotado em seus três filmes. E garantiu que “Querido Mundo” traz seus riscos. “Fiz um filme em preto-e-branco, quando todos querem filmes coloridos”. Para reafirmar: “para mim, essa história, que nada tem de popularesco, não poderia ser contada em cores”.
O terceiro longa de Falabella deve chegar aos cinemas em março de 2026, com lançamento da O2 Play. Se depender do entusiasmo de sua equipe, em especial do produtor Júlio Uchoa, alcançará imenso sucesso de público. A conferir.

CURTAS-METRAGENS
Depois do longa-metragem de Falabella, foi exibida a primeira sessão de curtas-metragens brasileiros, composta com seis títulos.
Grandes equipes chegaram à Serra Gaúcha, vindas de vários estados, para mostrar suas narrativas curtas. Do Pará, chegaram dez profissionais, liderados pela diretora de “Boiuna”, Adriana de Faria. Ela contou que haviam feito “uma vaquinha” para que todos pudessem apresentar o curta que evoca a “cobra preta”, tão presente no imaginário amazônico. E definiu sua narrativa como cultora do “Realismo Encantado”, diferente tanto do Realismo Mágico, quanto do Realismo Fantástico.
De Recife vieram a cineasta Rosa Fernan e sua equipe, responsáveis por “As Musas”. Rosa, realizadora trans, graduada (com mestrado) em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal de Pernambuco, revelou sua paixão pelo brega, tema de seu segunda curta-metragem.
A pernambucana contou, no debate, que inspirou-se, para criar sua protagonista (a jovem doméstica Kelly), em filmes de Kleber Mendonça, como “Eletrodoméstica” e “O Som ao Redor”, e no paulistano “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert. E que valorizou, na trilha sonora, “a era de ouro dos discípulos de Reginaldo Rossi” (destaque para a Banda Carícia e a canção narrativa “Vendedora de Amor”).
Do Paraná chegaram o cineasta Mano Cappu, seus atores Cássia Nepomuceno e o menino Miguel Basílio, o produtor Gil Baroni e integrantes da equipe técnica. Juntos, eles mostraram, no Palácio dos Festivais, o filme “Quando Eu For Grande”, parte de “Trilogia do Cárcere”, iniciada com o curta “Bença” e que será encerrada com o longa-metragem “Barrabás”, em fase de preparação.
O Rio de Janeiro se fez representar por “Jacaré”, de Victor Quintanilha e equipe. O filme narra a história de Pedro, um adolescente que ajuda a mãe vendendo refrigerantes e água em movimentada estrada, rumo ao litoral. Milhares de veranistas se dirigem à região de Saquarema. Pedro sonha com uma vida melhor. Para ele e para a mãe. Rebuliço no engarrafamento o levará a viver inesperada aventura. Ele acabará por descobrir o prazer do surfe. A onda do “Jacaré”.
De Minas Gerais veio o filme que mais chamou atenção da imprensa e do público no debate — o documentário “Cabeça de Boi”, de Lucas Zacarias. Oriundo de Uberaba, o cineasta resolveu contar parte da história de sua cidade, evocando fato do passado — a morte de família inteira que habitava rico casarão — e o tempo presente. Um tempo em que Uberaba é vista pela soma de três símbolos — o gado Zebu, o espiritismo, pois tornou-se o lar do médium Chico Xavier, e fósseis de priscas eras. No município foi encontrado “o maior esqueleto de dinossauro localizado em nosso país”.
Zacarias, que subiu ao palco do Palácio dos Festivais acompanhado de bailarinos e “cabeças de boi” cenográficas, escreveu o roteiro de seu filme a partir da leitura de reportagem publicada na revista Revelação, assinada por André Azevedo da Fonseca. Em seu texto, o hoje professor universitário mostrou que a “tragédia do casarão” marcou a história do município e incutiu no imaginário popular crença de que a “cabeça de boi” enterrada em determinado lugar é sinônimo de má sorte. Atraso de vida. Ao mesmo tempo — mostrará o filme —, o Gado Zebu tornou-se base econômica e fonte de poder da elite de Uberaba.
O filme, o único produzido (entre os seis primeiros concorrentes) em cidade interiorana, é narrado em francês altissonante (captado por Inteligência Artificial). Um forasteiro relembra o que se passou no casarão e começa a desvendar os mistérios da cidade. O som da voz narradora remete a “Alphaville”, de Godard. Mas o diretor mineiro garantiu ter sido influenciado por outra fonte de inspiração: “o narrador de ‘Las Hurdes’, de Luís Buñuel”.
Zacarias contou que “a produção de cinema em Uberaba é incipiente”. Que realizou “Cabeça de Boi” com recursos da Lei Paulo Gustavo e espera, agora — com a repercussão da vitrine oferecida pelo Festival de Gramado —, sensibilizar as autoridades culturais do município para o fomento de novas produções audiovisuais. “Nossa seleção para a competição brasileira de Gramado” — arrematou — “causou sensação e ‘Cabeça de Boi’ foi tema de muitas reportagens e está repercutindo bastante na internet”.
O sexto curta da noite — a animação “Jaguatá Xirê”, de Alves-Brito, Ana Moura e Marcelo Freire — é uma produção do estado anfitrião do festival, o Rio Grande do Sul. A trinca de realizadores subiu ao palco do Palácio dos Festivais com sua numerosa equipe técnica e artística para apresentar e valorizar esse filme de menos de oito minutos. Tempo suficiente para celebrar a cultura e cantos ancestrais de povos afro-ameríndios.
“Jaguatá Xirê” não nasceu de editais cinematográficos, mas sim de projeto científico-universitário e de apoio do CNPq. Hoje, está disponibilizado aos frequentadores do Planetário do Rio de Janeiro. Tudo a ver, pois o filme mostra que “o céu é um arquivo de múltiplas narrativas”.
HOMENAGEM A MARIZA LEÃO
A produtora, gestora (primeiro na RioFilme, depois no Sindicato da Indústria Audiovisual do Rio) e diretora bissexta Mariza Leão, de 72 anos, recebeu, emocionada, o Troféu Eduardo Abelin por sua longa trajetória no cinema. Para dar mais peso à homenagem, foram lembrados os 50 anos de sua produtora, a Morena Filmes.
Tudo começou em 1975, quando a jovem carioca realizou, com o companheiro de vida e profissão, Sérgio Rezende, o curta “Leila para Sempre Diniz”. Dali em diante, ela abandonaria a direção e se tornaria, por cinco décadas a fio, produtora de dezenas de longas-metragens ficcionais e documentais. Só se aventuraria, uma única vez, a dirigir um novo filme — o documentário “Regatão”, sobre comerciantes que exercem seu ofício nas águas da Amazônia.
“Como diretora sou um desastre”, brinca Mariza. “Tenho certeza que nasci para produzir. Sou uma produtora-autora, daquelas que participam intensamente da formatação de cada projeto”.
O primeiro longa da Morena Filmes — o documental “Até a Última Gota”, direção solo de Sérgio Rezende — seria realizado no final da década de 1970. E, dali em diante, muitos e muitos títulos se somariam à cartela da produtora: “O Homem da Capa Preta”, vencedor de Gramado, “Lamarca”, “Guerra de Canudos”, “Quase Nada”, “O Paciente”, “O Jardim Secreto de Mariana”, todos do companheiro Sergio Rezende. Vieram também os filmes da filha Júlia Rezende (“Meu Passado me Condena”) e a trilogia “De Pernas pro Ar”, protagonizada pela atriz Ingrid Guimarães (de grande sucesso comercial).
Fora do âmbito familiar, Mariza produziria o belo “Nunca Fomos Tão Felizes”, de Murilo Salles, o blockbuster “Meu Nome não é Johnny”, de Mauro Lima, “Apenas o Fim”, estreia de Matheus Souza no longa-metragem, e “Eike Batista: Tudo ou Nada”, de Andradina Azevedo e Dida Andrade.
Em breve (9 de outubro) chega aos cinemas sua mais recente parceria com Ingrid Guimarães (“Perrengue Fashion”). A comediante será vista, chiquérrima, em peripécias na Amazônia, em busca do filho (o belo Filipe Bragança) dedicado à militância ecológica. Claro que ela trocará, durante o perrengue amazônico, os figurinos bem-cortados, por vida menos fútil, até porque encontrará pelo caminho outro estímulo, um personagem interpretado pelo argentino Michel Noher.
Em conversa com a imprensa, em Gramado, Mariza Leão contou que vive às turras com Ingrid Guimarães. “Cada vez brigamos mais”, contou, em tom divertido. Afinal, duas bicudas não se beijam. Donas, ambas, de vontades fortes e cultoras do perfeccionismo, elas querem o melhor para cada filme.
No terreno das séries para streaming, Mariza vem ampliando seu arco de produções. A mais recente — “Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente”, comandada por Marcelo Gomes e Carol Minêm, estreia na HBO Max, no próximo dia 31 de agosto.

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