Em noite politizada, Gramado consagra “Pacarrete”

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

Na edição mais politizada de sua história, o Festival de Cinema de Gramado consagrou “Pacarrete”, filme cearense dirigido pelo estreante Allan Deberton e protagonizado por elenco 100% nordestino (as paraibanas Marcélia Cartaxo, eleita a melhor atriz, Soia Lira, melhor coadjuvante, e Zezita Mattos, o baiano João Miguel, melhor ator coadjuvante, e os cearenses Samya de Lavor, Débora Ingrid e Rodger Rogério).

“Pacarrete” conta a história de uma bailarina sexagenária e tida como “a louca da cidade de Russas”, interior do Ceará. Nos festejos dos 200 anos do município, ela sonha em participar do calendário comemorativo com um número de ballet clássico. Mas sua ideia é repudiada. Inspirada em uma personagem real, Pacarrete (corruptela de pâquerette, um pequena margarida francesa) ganha vida em interpretação arrebatadora de Marcélia Cartaxo, iluminada como a Macabéia, de “A Hora da Estrela”, personagem que a consagrou com um Urso de Prata em Berlim, há 33 anos.

O filme conquistou oito Kikitos, incluindo melhor direção, Júri Popular e melhor roteiro. Sobraram poucos prêmios para os outros seis concorrentes. Um deles foi totalmente ignorado (o paulista “Eu Vou Nadar Até Você”, protagonizado por Bruna Marquezini).

“Raia 4” foi o eleito da Crítica e escolhido como o melhor filme gaúcho e pela melhor fotografia. O brasiliense “O Homem Cordial”, de Iberê Carvalho, teve seu protagonista (o titã Paulo Miklos) reconhecido como o melhor ator e premiada sua trilha sonora. Duas produções com grandes astros televisivos em seus elencos — “Veneza”, de Miguel Falabella, e “Hebe, Estrela do Brasil”— receberam prêmios secundários.

Na categoria latino-americana, o vencedor foi o costarriquenho “O Despertar das Formigas”, sobre uma mulher pressionada pela família (marido, sogra, cunhada) a ter mais um filho (ela é mãe de duas meninas). Mas este não é seu desejo. O júri oficial elegeu Juan Cáceres, do vibrante “Perro Bomba” (bucha de canhão ou bode expiatório na gíria criminal chilena), como melhor diretor e o filme conquistou o Júri Popular. Os melhores atores foram o boliviano-brasileiro Fernando Arce, por “Muralha” (um ex-goleiro que acaba envolvido com o mundo do crime), e a argentina Julieta Díaz, por “La Forma de las Horas”.

Cada artista que subia ao palco do Palácio dos Festivais proferia contundentes discursos contra o Governo Bolsonaro por “seu desprezo pela cultura, por suas ameaças à Ancine, pelos filtros (sinônimo de Censura, para diretores, atores e técnicos), pela perseguição às temáticas LGBTQI, pelas queimadas na Floresta Amazônia. Até os realizadores hispano-americanos somaram-se aos protestos, dando ênfase especial à campanha planetária em defesa da Amazônia.

O clima político esteve tenso durante todo o festival. Na apresentação dos filmes de curta ou longa-metragem, nos debates, nos seminários, no Gramado Film Market, e, também, nas reuniões a portas fechadas de artistas com autoridades (o secretário de Cultura do Ministério das Cidades esteve aqui para encontro com o meio cinematográfico e acabou pedindo demissão dois dias depois; Christian Castro, diretor-presidente da Ancine foi acusado pela produtora Mariza Leão, da Morena Filmes, de não defender os interesses do audiovisual brasileiro). Mas um fato acirrou, ainda mais, os ânimos dos cineastas, atores e técnicos.

Por volta das 20h30 de ontem, sábado, portanto na Noite dos Kikitos, o segmento cultural agendou manifestação na porta do Palácio dos Festivais, término do badalado Tapete Vermelho. Às 21h, estariam dentro do cinema para a cerimônia de premiação. Enquanto se manifestavam e cantavam sua principal palavra de ordem — “Pela cultura, todos contra a censura”— os manifestantes foram alvo de pedras de gelo e até de batatas retiradas de pratos servidos pelos restaurantes que circundam os dois lados do Tapete Vermelho.

Cineastas que levaram filhos-bebês à Noite dos Kikitos e participaram da manifestação contaram que “os agressores não pouparam nem aqueles que estavam com os filhos pequenos”. Preferiram “cometer ato de bárbarie contra quem se manifestava pacificamente”. Quando o cineasta Emiliano Cunha subiu ao palco com sua equipe para receber o Kikito de melhor longa gaúcho (por “Raia 4″), ele lamentou “a intolerância que tomou conta do país” e passou a palavra a Daniella Strack, sua assistente de direção. Ela leu, então, documento que sintetiza as principais reivindicações do setor audiovisual neste momento conturbado: “defesa intransigente da Ancine, preservação dos fundos de fomento à produção, repúdio a qualquer forma de Censura e pela imediata retomada do Edital das TVs Públicas”.

Perto do que se ouviu no palco do Palácio dos Festivais, em Gramado, a Noite dos Otelos (Grande Prêmio do Cinema Brasileiro), ocorrida no Teatro Municipal de São Paulo, dez dias atrás, pode ser classificada como evento marcado por relativa calmaria.

Marcélia Cartaxo levou o prêmio de melhor atriz por "Pacarrete", de Allan Deberton, que conquistou os principais Kikitos da noite © Edison Vara

Confira os premiados:

LONGA BRASILEIRO

. “Pacarrete”(Ceará) – melhor filme, direção (Allan Deberton), atriz (Marcélia Cartaxo), roteiro (Allan Deberton, André Araujo, Natália Maia e Samuel Brasileiro), atriz coadjuvante (Soia Lira, ex-aqueo), ator coadjuvante (João Miguel), Júri Popular, desenho de som (Rodrigo Ferrente e Cauê Custódio)

. “Raia 4” (RS) – melhor filme gaúcho, Prêmio da Crítica, fotografia (Edu Rabin)

. “Um Homem Cordial” (Brasília) – melhor ator (Paulo Miklos), trilha sonora (Sascha Kratzer)

. “Veneza” (RJ) – melhor atriz coadjuvante (Carol Castro, ex-aqueo), direção de arte (Tulé Peack)

. “30 Anos Blues” – Prêmio Especial do Júri

. “Hebe, a Estrela do Brasil” – melhor montagem (Joana Colier e Fernanda Franke Krumel)

LONGA LATINO-AMERICANO

. “O Despertar das Formigas” (Costa Rica) – melhor filme, Prêmio da Crítica, menção honrosa para a crianças (Isabela Moscoso e Avril Alpizar)

. “Perro Bomba” (Chile) – melhor diretor (Juan Cáceres), Juri Popular

. “La Forma de las Horas” (Argentina) – melhor atriz (Julieta Díaz)

. “Muralha” (Bolívia) – melhor ator (Fernando Arce)

. “No Poço” (Uruguai) – melhor roteiro (Rafael e Bernardo Antonaccio), fotografia (Rafael Antonaccio)

. “Dos Fridas” (México e Costa Rica) – Menção honrosa de melhor direção de arte

CURTA BRASILEIRO

. “Apneia” (Paraná) – melhor filme

. “Marie”(Pernambuco) – Prêmio da Crítica, Prêmio Canal Brasil, melhor ator (Rômulo Braga), Prêmio Especial para as atrizes trans Divina Valéria e Wallie Ruy

. “Menino Pássaro”(São Paulo) – melhor diretor (Diego Leite)

. “A Mulher que Eu Sou” (Paraná) – melhor atriz (Cássia Damasceno)

. “Teoria sobre um Planeta Estranho” (MG) – Júri Popular, melhor trilha sonora (Carlos Gomes)

. “Invasão Espacial” (Brasília) – montagem (Daniel Sena e Thiago Foresti)

. “Véu de Amani” (Brasília) – melhor roteiro (Renata Diniz)

. “A Ética das Hienas” (Paraíba) – melhor fotografia (Sebastián Cantillo)

. “Sangro” (São Paulo) – melhor direção de arte (Guto BR)

. “Um Tempo Só” (São Paulo) – melhor desenho de som (Gustavo Soesi)

. “A Pedra”(RS) – menção honrosa para a atriz mirim Ester Schafer

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