A estrutura invisível do roteiro de “Parasita”

Por Hermes Leal

A indicação ao Oscar de melhor roteiro original para “Parasita”, escrito por Bong Joon-ho e Han Jin-won, um filme falado em coreano e com atores desconhecidos, merece uma reflexão sobre a importância do roteiro e a sua função para o desempenho de um bom filme.

“Parasita” é uma comédia, exagera nas diferenças sociais e econômicas de duas famílias coreanas, uma pobre e outra rica, mas que explora a fundo a sensibilização dos personagens, que traçam seus destinos sobre uma trapaça, e também sobre suas paixões e sofrimento. Só há comédia, porque os personagens ricos são emocionalmente vulneráveis e fáceis de serem dominados pela família pobre.

Esse enredo, que simboliza a ganância no mundo atual, é distribuído no roteiro em uma curva dramática em três atos, que estão bem definidos e claros do ponto de vista da estrutura da história. O primeiro ato trata dos contratos da família de Ki-taek para se instalar na mansão do senhor Dong-ik, e se fecha até a inundação que os trazem de volta ao local onde viviam. O momento em que a ex-governanta volta para a mansão marca o fim do primeiro ato e o começo do segundo. Sua volta promove um ponto de virada no roteiro. Dali em diante, as relações contratuais já estão todas costuradas. Todos os eventos relacionados aos arranjos entre personagens no primeiro ato foram encerrados.

O segundo ato também tem uma estrutura bem fixa, bem blocada. Inicia exatamente quando a ex-governanta toca a campainha da mansão e surpreende a família invasora. E se encerra quando a família pobre volta para seu bairro sujo e está no abrigo cheio de pessoas que tiveram suas casas destruídas pela chuva. O fim da tempestade encerra o segundo ato.

O terceiro ato tem a mesma estrutura dos dois anteriores, com pontos de virada bem definidos, e se inicia como um novo filme, com os preparativos para o aniversário do garoto Da-song, após o fim da tempestade, que marca o fim do ato com um imenso ponto de virada, do caos da tempestade para a calmaria. O terceiro ato é dedicado ao aniversário do garoto rico, que termina em tragédia com a morte de Dong-ik, e se encerra com Ki-taek se escondendo no porão da mansão.

Cada ato tem sua estrutura dramática própria, com o primeiro direcionado à comédia, o segundo, ao drama, e o terceiro, à tragédia. Mas essas observações são apenas do discurso do filme, de sua estrutura “visível”. Os três atos servem para que o roteirista possa organizar corretamente a narrativa de sua história. Assim como para organizar a estrutura interna de cada personagem. Essa estrutura interna, ou “invisível”, também existe para cada personagem e é formada por suas passionalidades, projetadas em suas ações e diálogos.

Esta estrutura é invisível, porque está relacionada às “paixões” dos personagens, que se expressam na ação em forma de “sentir”. Os personagens de “Parasita” agem em razão de suas paixões, como medo, raiva, ódio, vingança, tédio, melancolia ou até mesmo o ressentimento e a cobiça. A estrutura dos personagens afetados por suas paixões também sofre transformações de um ato a outro. A cobiça se transforma em inveja, depois em raiva, que irá se transformar em rancor, que, por sua vez, se transformará em ódio, e do ódio nascerá a paixão da vingança.

Essa transformação ocorre com mais ênfase nos dois personagens principais do roteiro de “Parasita”, o jovem Ki-woo com sua amada Da-hye, e a jornada de seu pai, Ki-taek, como motorista, com o seu patrão Dong-ik. O arco de cada personagem está ligado ao modo como agem e como sentem.

O primeiro ato serve para estabelecer “contratos” entre personagens para uma jornada, do plano da “ação” e no plano do “sentir”. É uma lógica obrigatória desde Aristóteles. No primeiro ato, o jovem Ki-woo é contratado para dar aulas de inglês para a ingênua Da-hye, mas, neste contrato, também existe um lado passional, em que Ki-woo também faz um contrato de casamento.

Será este contrato passional que irá sensibilizar o personagem para que ele sensibilize o espectador. Os contratos são chamados de virtualizados, porque os personagens só têm um “querer”, e este existe em razão do que Ki-woo “sente” ao se apaixonar por Da-hye. Seu agir, depois deste contrato, passa a ser regido pelo seu sentir desejo de que no final de sua jornada, na “sanção”, que se dará no terceiro ato, ele possa ficar rico e se casar com ela.

Neste primeiro ato, em que todos os contratos entre os membros das duas famílias estão estabelecidos no plano da ação, o contrato de Ki-taek com o patrão Dong-ik sofre transformação. O patrão não gosta do seu cheiro, que fede a “esgoto”, e isso começa a modificar o sentir de Ki-taek, que sai de um estado de satisfação, para um estado de raiva, que, no terceiro ato, desencadeará um sentimento de fúria contra o seu patrão, matando-o de surpresa.

No segundo ato, os personagens se distanciam dos seus “contratos”, a família rica viaja para um acampamento, os infiltrados tomam conta da mansão e são surpreendidos ao descobrir que existiam pessoas vivendo em um bunker abaixo do porão. Os eventos do segundo ato são chamados de “manipulação”, de um personagem manipulando o outro em razão dos “contratos”, e servem para modificar o destino dos personagens, traçado no primeiro ato.

O arco de Ki-woo se fecha no final do terceiro ato, quando sua amada Da-hye desaparece, e seu contrato não se concretiza. Sua sanção foi a de que seu contrato com Da-hye não era verdadeiro, foi apenas um “querer” de Ki-woo. E o arco do seu pai Ki-taek se fecha quando se esconde no bunker da mansão para não ser preso por assassinato.

A curva dramática de Ki-taek fica visível, quando inicia o terceiro ato, totalmente modificado, sisudo, sem humor. Não sente mais a satisfação que tinha no primeiro ato. Quando Dong-ik mais uma vez o humilha por causa do seu cheiro de “esgoto”, Ki-taek imediatamente o mata com uma faca, durante o churrasco de aniversário.

Essas relações contratuais são movidas pelos personagens de forma “virtualizada”, no primeiro ato, quando só têm um “querer”. No segundo ato, precisam “atualizar” seus contratos e precisam adquirir “saber” para manipular os outros personagens. O terceiro ato é chamado de “sanção”, porque os personagens precisam realizar seu projeto contratual, e, para isso, precisam “poder” de fato garantir se o contrato inicial era falso ou verdadeiro.

Essa curva da ação é acompanhada da curva do sentir dos personagens, observando que o sentir rege o agir. Os personagens agem e falam em razão do que sentem, esteja este sentir visível ou não.

O arco invisível de “Roma”

Assim como “Parasita”, o roteiro de “Roma”, de Alfonso Cuarón, fala de conflitos sociais no plano da ação, e a mesma estrutura invisível existe de forma mais escondida ainda, acompanhando as personagens, a empregada Cleo, personagem principal que está fazendo um contrato com o namorado Fermín para ter um filho, e a patroa Sofia, que está se separando do marido. Existe uma estrutura visível, com luta de classes e manifestações a favor da liberdade, mas a invisível pertence somente aos personagens.

A curva invisível da personagem Cleo ocorre apenas no nível da sensação e não de suas ações. Mas, da mesma forma que “Parasita”, os três atos de “Roma” também tem seus pontos de virada bem definidos entre um ato e outro. São mais sutis que os de “Parasita”, porque a personagem Cleo praticamente não fala e não age, o seu sentir está mais no seu silêncio do que nas suas ações. Só descobrimos isso no terceiro ato, quando ela explode de surpresa e diz que não queria que seu filho tivesse nascido.

Aí, voltamos no tempo, no primeiro ato, quando Cleo, ao saber que está grávida, tem a sensação de já ter tido o filho, se espelhando na vida feliz de sua patroa e seus quatro filhos e no contrato de felicidade com Fermín. Mas, no segundo ato, ao ser rejeitada pelo namorado, Cleo sente o desejo que o seu filho morra. E isso realmente acontece. O segundo ato é dedicado à morte deste filho que ela havia desejado no primeiro ato.

E, no terceiro ato, quando o filho já nasce morto, ela tem uma nova sensação, ao salvar os filhos de Sofia no mar, de “arrependimento” e “remorso”, duas fortes paixões, por ter desejado a morte de seu próprio filho ainda em seu ventre. A curva invisível em três atos da personagem se dá apenas em forma de sensações. Ou em forma de admiração, quando está fazendo o contrato, ou em forma de percepção, quando está sendo julgada na “sanção” a verdade sobre o seu sentir.

Estrutura do roteiro de “Parasita”
 

 

 

O roteiro de “Parasita” pode ser acessado nesta página: https://screenwriteronline.com/fe079efbab/email/roteiros.

 

English version

 

Hermes Leal é escritor, jornalista e cineasta, autor do método para escrever roteiros screenwriteronline.com.

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