Festival de Cartagena debate “Deriva Cósmica”

Por Maria do Rosário Caetano

O Festival Internacional de Cinema de Cartagena de Índias, o mais antigo da América Latina, realiza, em março (de 11 a 16), sua edição de número 60. E abre espaço nobre para a produção brasileira. Dois longas documentais – “O Índio Cor-de-Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels”, de Tiago Carvalho, e “O Reflexo do Lago”, de Fernando Segtowick, estão nas mostras “La Deriva Cósmica” (o primeiro) e “Documentes” (o segundo).

No terreno da ficção ibero-americana, o Brasil se faz representar por “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, premiado ano passado na mostra Un Certain Régard, em Cannes. O cineasta goiano-brasiliense Adirley Queirós ganhará mostra de seus filmes curtos e longas (“Branco Sai, Preto Fica”, “A Cidade é uma Só?” e “Era uma Vez em Brasília”).

Três curtas-metragens brasileiros se distribuirão por duas mostras: “Baile”, da catarinense Cíntia Domit Bittar, e “Quebramar”, da paulista Cris Lyra, estarão na “Onda Corta”, e “Sangro”, dos paulistanos Tiago Minamisawa, Bruno H e Guto BR , na “Cortos e Animados”.

Karim Aïnouz poderá dar início a novo período de glória para o cinema brasileiro na festa colombiana. Afinal, seus concorrentes – “Los Sonâmbulos”, “Blanco em Blanco”, “Piedra Sola” e “Sin Señas Particulares” – não são imbatíveis. Já Fernando Segtowicht tem pela frente um concorrente peso-pesado – “A Cordilheira dos Sonhos”, de Patricio Guzmán, premiado com o Olho de Ouro de melhor documentário, em Cannes 2019. Com este filme, o chileno, radicado na França, encerra sua trilogia iniciada com “Nostalgia da Luz” (filmado no deserto) e “Botão de Pérola” (no mar).

A história do Brasil no festival colombiano é curiosa e das mais significativas. O primeiro filme a receber a láurea máxima do evento foi “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, em 1962. Quatro décadas depois (de 2000 a 2003), nossos filmes causaram sensação em Cartagena, conquistando o prêmio principal – India Catalina de melhor filme – com “Orfeu”, de Carlos Diegues (láurea dividida com “Garage Olimpo”, do ítalo-argentino Marco Bechis), “Eu Tu Eles”, de Andrucha Waddington (2001), “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho (2002) e “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, (2003). Outros filmes brasileiros foram premiados em várias edições do festival colombiano, mas não por tantos anos seguidos.

O documentário “O Índio Cor-de-Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels” encaixa-se muito bem na ênfase que Cartagena dá à temática indígena (e à preservação do meio-ambiente). Produzido pela Banda, em parceria com a Fiocruz, o documentário acompanha o sanitarista Noel Nutels (1913 -1973) Brasil a dentro, empenhado em cuidar da saúde de indígenas, ribeirinhos e sertanejos. Por sorte, ele filmou (em 16 milímetros) muitas de suas expedições, realizadas dos anos 1940 até sua morte, no início da década de 70.

Em 1968, o médico, nascido na Ucrânia e radicado no Brasil desde a infância, participou de Comissão Parlamentar de Inquérito, no Congresso Nacional. A CPI investigava os graves problemas vividos pelos povos indígenas. Como lembra o diretor Tiago Carvalho, “este é o único registro disponível da voz do sanitarista”.

“O Índio Cor-de-Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels” (nome quilométrico, mas divertido e chamativo) traz imagens (muitas inéditas) e registros da incansável luta de Nutels, empenhado em denunciar os massacres que, ao longo dos séculos, exterminaram centenas de nações indígenas.

Na mostra “A Deriva Cósmica”, que incluiu “A Peleja de Nutels”, estará o belo “Honeyland”, de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov, candidato da Macedônia do Norte a dois Oscar (melhor filme internacional e melhor documentário – perdeu para o sul-coreano “Parasita” e para o estadunidense “Indústria Americana”). Mesmo assim, o longa-metragem (sobre apicultora artesanal que vê tudo mudar com a chegada de barulhenta família nômade) entrou na lista dos documentários mais festejados do ano. Tudo começou com sua estreia (e premiação) no Sundance e prosseguiu por mais 40 mostras de cinema (em São Paulo, o ganhou prêmio do Júri Oficial e da Crítica).

O mais antigo festival audiovisual da América Latina, o de Cartagena, acontece no Caribe colombiano, em cidade que teve no jornalista (e futuro Prêmio Nobel) Gabriel García Márquez (1927-2014) um de seus mais apaixonados moradores. Nascido em Aracataca, Gabo iniciou sua vida como jornalista em Cartagena. Por isto, em bela e histórica edificação cartaginesa, foi instalada a Fundación del Nuevo Periodismo Latinoamericano, que o escritor (e incansável jornalista) fundou para apoiar (e aperfeiçoar) os novos profissionais da mídia. O Festival Internacional de Cinema homenageou o filho adotivo com ampla retrospectiva de filmes baseados em seus livros ou com roteiros escritos por ele (caso de “Erendira” e “A Bela Palomera”, ambos de Ruy Guerra, “Cartas del Parque, de Gutiérrez Alea, “Milagre em Roma”, de Lisandro Duque, “Maria de Mi Corazón”, de Jaime Hermozillo, entre muitos outros).

Este ano, a principal retrospectiva do Festival de Cartagena será dedicada ao Cinema Espanhol. Dois “Tributos” serão prestados ao germânico Werner Herzog e ao estadunidense Roger Corman. O primeiro, por ter tudo a ver com o tema do festival deste ano: “A Deriva Cósmica – A Questão Ambiental no Cinema”. Embora ainda faça filmes de ficção, Herzog, radicado nos EUA, tem corrido mundo para documentar, em especial, as agressões do homem à Natureza. Já a homenagem ao diretor e produtor Roger Corman, que fará 94 anos em abril, tem a ver com sua incansável defesa do cinema de baixo orçamento.

No núcleo histórico, o festival colombiano vai homenagear o Centenário de Federico Fellini, com mostra de seus principais filmes. Em mostra de nome curioso (“La Gente que Hace Cine y lo que El Cine Hace a la Gente), será exibido o documentário “Andrey Tarkowsky: Uma Prece ao Cinema”, dirigido por seu filho Andrey Tarkowsky Jr.

O Festival de Cartagena abre, há décadas, espaço nobre ao cinema colombiano. Este ano, prestará homenagem à memória de Luis Ospina (1949 – 2019), um de seus cineastas mais criativos e inquietos, autor de 30 filmes, entre eles o formidável documentário “Tudo Começou pelo Fim”. Junto com os colegas Carlos Mayolo, Ramiro Arbeláez e Andrés Caicedo, Ospina criou movimento cultural, que teve o cinema em sua linha de frente e foi chamado de “Caliwood” (uma espécie de Hollywood alternativa plantada numa das cidades mais violentas da Colômbia, Cali, terra natal do grupo artístico).

Um Encontro de Produtores de Expressão Ibérica debaterá a situação do cinema colombiano e analisará novos projetos. Haverá, ainda, um Encontro de Festivais (os Ibero-Americanos, em especial) e mostras de Ficções e de Documentários produzidos no país de García Márquez. Haverá, até, mostra chamada “De Índias”, com curtas (e médias-metragens), que foram filmados em Cartagena, cidade de 980 mil habitantes, famosa por seu núcleo histórico (a Cidade Amuralhada) e por seu porto, de onde saem muitas das riquezas do país.

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