“Um Animal Amarelo” e “Dias de Inverno” somam-se a dois curtas políticos nas competições do Festival de Gramado

Por Maria do Rosário Caetano

A terceira noite da quadragésima-oitava edição do Festival de Gramado, em cartaz nas telinhas do Canal Brasil e do Canal Brasil Play – até o próximo sábado, 26 –, colocou o longa brasileiro “Um Animal Amarelo”, de Felipe Bragança, e o mexicano “Díaz de Invierno”, de Jaiziel Hernández, nas competições nacional (o primeiro) e latino-americana (o segundo).

Dois curtas-metragens – os cariocas “Atordoado, Eu Permaneço Atento”, de Henrique Amud e Lucas H. Rossi, e “Blackout”, de Rossandra Leone – ambos de recorte político, completaram a programação em categoria (Curta Brasileiro) composta por 14 produções.

Quem esperava que “Um Animal Amarelo”, filmado em três continentes (África, Europa e América), se construísse como épico introduzido por cortante análise darcy-ribeiriana do Brasil, percebeu, já na primeira parte, que o tom adotado seria a farsa metalinguística.

O cineasta carioca define seu longa-metragem, cuja première aconteceu no Festival de Roterdã, na Holanda, como uma “fábula melancólica e tragicômica”, uma “rapsódia”.

O filme começa em passado recente, em 1984. Um brasileiro, de nome Sebastião (Herson Capri), vive sua condição de “velha carcaça” aventureira ao lado de parceiro homoafetivo, Juliano, o Rouxinol, jovem guitarrista e cantor black. Ao saber do nascimento do neto, ele decide ir conhecê-lo. Ao regressar, depara-se com sangue e destruição.

Na segunda parte do filme (“O Herdeiro”), que se passa em 2017, conheceremos Fernando, o cineasta interpretado pelo ator Higor Campagnaro, que lembra, fisicamente, o próprio Felipe Bragança, em amálgama com o ator estadunidense Adam Driver.

Fernando, neto de Sebastião, de quem herdou bengala-osso de supostos poderes mágicos, conta com um “animal-amarelo” como companheiro sobrenatural. E deseja realizar um filme. O momento vivido pelo Brasil é, porém, dos mais desanimadores. A busca de financiamento se revela complicadíssima. E há, para atormentar o rapaz, herança maldita a carregar (“cinco milhões de africanos escravizados e dez milhões de indígenas que tiveram suas almas arrancadas do corpo”).

Os filmes (o de Filipe, embora não se trate de obra autobiográfica, e o de Fernando) prosseguirão pelo continente africano (com sequências realizadas em Moçambique – Manica, Chimoio e Beira) e, depois, em Lisboa (lembrando, com irreverência, “As Merdas Eternas de Portugal”). As partes 3 (“Fábula do Pirata Pálido”), 4 (“Tristeza Tropical”) e 5 (o desfecho) desenharão farsa fragmentada sobre o Portugal colonial e nós, os colonizados africanos e brasileiros. O cineasta Fernando será definido pela narradora (voz da afro-lusitana Isabel Zuaa) como “um brasileiro cagão”. Ele tem algo do “Macunaíma”, de Mário de Andrade, salpicado por características e procedimentos de personagens de filmes underground.

Felipe Bragança, no debate on-line de “Um Animal Amarelo”, se fez acompanhar de seu protagonista (o ator teatral Higor Campagnaro), da portuguesa Isabel Zuaa (de “Boas Maneiras” e “Tiradentes”) e de Sophie Charlotte, que faz participação pequena, mas significativa, no filme.

O diretor e roteirista carioca, de 39 anos, contou que, durante os últimos anos, escreveu centenas de páginas sobre os muitos temas que estão na narrativa fragmentada de “Um Animal Amarelo”. Parecia um romance, mas ele concluiu que a literatura não era seu meio ideal de expressão e resolveu fazer um filme. Convocou um cineasta português, João Nicolau, que é também montador, para ajudá-lo a formatar o roteiro.

Ao ser premiado com 2,2 milhões de reais em Edital do (finado) MinC e conseguir aporte de 150 mil dólares de parceiros portugueses, Bragança colocou o pé na estrada. Com menos, portanto, de R$3 milhões, realizou longa-metragem rodado em três continentes, com elenco internacional (destaque para Diogo Dória, o “Barão”, um dos atores-fetiche de Manoel Oliveira).

Os brasileiros Thiago Lacerda, Herson Capri, Márcio Vito, Tainá Medina e Sophie Charlotte somaram-se ao moçambicano Matamba Joaquim e à portuguesa Catarina Wallenstein, em elenco bem numeroso.

O longa mexicano “Díaz de Invierno” é um daqueles filmes que não nos impactam num primeiro momento, mas depois, permanecem em nossa memória e vão revelando suas qualidades, aos poucos, suavemente. O diretor Jaiziel Hernández Maynes nasceu em pequeno município do estado de Coahuila de Zaragoza. Numa “cidade sem atrativos turísticos”, sem histórias épicas de maias ou astecas para contar. Por isso, ele sabe o que é viver num lugar qualquer, sem mercado de trabalho significativo, sem grandes desafios a enfrentar.

No debate on-line do filme, Jaiziel se fez acompanhar de seus protagonistas: o jovem Miguel Narro (Nestor) e sua “mãe” na ficção, a ótima atriz Letícia Huijara. O cineasta contou que escreveu o roteiro em parceria com Oriana Giménez e que, embora não se trate de obra autobiográfica, há sim, na narrativa, alguns elementos de sua experiência pessoal.

“Díaz de Invierno” soma diversos personagens que vivem em uma cidade anônima, um “não-lugar”. Nestor e a mãe estão sem-rumo. Ele tem uma irmã que vive nos EUA e pretende mudar-se para o grande vizinho do Norte. A irmã o desencoraja. A mãe, ao enviuvar-se, decide vender bela casa de campo, situada nas cercanias de Guanajuato, esta sim, uma cidade de grandes belezas, mas também pequena (140 mil habitantes) e pouco desafiadora.

Nestor tem um irmão mais descolado, que joga beisebol. Tem também uma namorada, que pensa em ir com ele para os EUA. Troca beijos ela e juntos vão ao boliche., mas a vida segue modorrenta e ele não sabe bem o que quer. Nem as conversas com um estadunidense, que frequenta o bar onde Nestor faz “bico” noturno, animam o jovem.

A mãe, que perdeu o emprego e já está passando dos 50 anos, tem uma amiga querida e brincalhona. As duas se metem em programas de risco, como jogar num cassino. Até uma paquera, que não vai prosperar, se apresentará em meio às máquinas caça-níquel.

Na melhor sequência de “Díaz de Invierno”, o rapaz e sua mãe vão à zona rural mostrar a casa de campo, que descortina um magnífico vale, a possíveis compradores. Tudo dá errado. Para complicar, a camioneta que usam como meio de transporte atola em enlamaçada estrada de terra. Com diálogos secos, nunca retóricos, Jiziel constrói um filme delicado e sensível.

O longa mexicano, que vem fazendo o circuito de festivais, deve estrear ano que vem. Letícia Huijara, que pode ser vista em série da Netflix (“Obscuro Desejo”) é forte candidata ao Kikito de melhor atriz latino-americana. Além da sequência na lama, ela a todos encanta nas cenas divididas com a amiga bem-humorada. Uma atriz para quem “menos é mais”, sutil e fascinante.

Os dois curtas da terceira noite do Festival de Gramado chamaram atenção por suas propostas estéticas e pelos tema políticos.

“Atordoado, Eu Permaneço Atento”, título que os diretores Henrique Amud e Lucas H. Rossi pediram emprestado a Chico Buarque e Gilberto Gil (“Cálice”, 1973), é um belo filme. Cinema de alta carga política, sem nenhum panfletarismo ou didatismo.

Os dois realizadores cariocas buscaram em imagens de arquivo, vindas das mais diversas fontes (inclusive de filmes de João Batista de Andrade), a matéria-prima desse ensaio visual em branco-e-preto (com intervenções em vermelho). No centro da narrativa, está o jornalista e cientista político Dermi Azevedo, que depois de carreira jornalística (inclusive na Folha de S. Paulo) e na função de professor universitário, convive com o Mal de Parkinson. Se o corpo sofre as consequências da doença, a cabeça segue a mil.

Em 2018, quando Jair Bolsonaro elegeu-se presidente da República, a dupla de cineastas gravou seis horas de depoimento de Dermi. Defensor dos Direitos Humanos, ele, que foi militante político dos mais ativos e enfrentou duas prisões na época da ditadura militar, constata que “práticas terríveis daquele tempo” voltaram para assombrar o país.

Henrique Amud e Lucas H. Rossi preparam novos curtas ainda na seara do documentário (ou ensaio poético) construído com materiais de arquivo. E Lucas, incansável, vem, “há sete anos”, construindo uma mais que necessária, obrigatória, cinebiografia de Grande Otelo (1915-1993), um dos maiores atores de nossa história cinematográfica.

Com “Blackout”, a carioca Rossandra Leone dá seu recado sobre problema incontornável de nossa tragédia social: o racismo. Seu curta-metragem, que navega pelas águas do afrofuturismo, se passa em 2048. Uma jovem hacker, Luana (a atriz Adrielle Vieira, que participou da coletiva on-line, direto da Baixada Fluminense), é detida por forças policiais. Um investigador a interroga com perguntas que contêm, já, sua condenação, e revelam os procedimentos do racismo à brasileira. Ela o enfrenta.

A jornalista gaúcha Carol Zatz viu no premiadíssimo “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda” (Jorge Furtado e José Pedro Goulart, 1996) uma das fontes de diálogo de “Blackout”. A jovem Rossandra concordou, estabelecendo, porém, a principal diferença: “Gosto muito de ‘Dorival’ e algumas falas do meu roteiro referenciam falas do filme gaúcho, mas, no meu curta, a personagem negra acaba bem”. E acrescentou: “Dorival se dá mal no enfrentamento que faz aos militares que o interrogam. Nós, realizadores negros, entendemos que é hora de abandonar os clichês dos corpos pretos submetidos ao sofrimento, à tortura. Minha protagonista é uma mulher preta, inteligente, criativa, assertiva e capaz de derrotar o investigador branco e autoritário”.

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