A verdade de Catherine Deneuve e Juliette Binoche segundo Koreeda

Por Maria do Rosário Caetano

O sucesso do japonês Hirokazu Koreeda, de 59 anos, na França, tornou-se tão grande que, depois de conquistar a Palma de Ouro com “Assunto de Família”, ele recebeu de Juliette Binoche convite irrecusável. A estrela francesa queria atuar num filme dele.

“Assunto de Família” vendeu quase 800 mil ingressos na França. Quem se negaria a produzir um longa dirigido por ele e estrelado pela oscarizada Binoche? E mais: o elenco contaria, também, com Catherine Deneuve.

Se duas estrelas europeias de tamanha envergadura protagonizariam o primeiro projeto internacional (no caso francês) de Koreeda, os produtores ainda lhe ofereciam um plus – a presença do ator norte-americano Ethan Hawke. O filme seria, portanto, falado em francês e em inglês. E, de brinde, duas jovens estrelas francesas brilhariam na trama: Manon Clavel e Ludivine Sagnier.

O resultado de tantos encontros – “A Verdade”, vigésimo-quinto longa do diretor nipônico – abriu o Festival de Veneza de 2019 e disputou o Leão de Ouro. Não ganhou. Ao ser lançado, “A Verdade” dividiu opiniões. Na França, 33 publicações o avaliaram. Positif, Les Inrock, Le Monde, Band à Part, L’Humanité e quase uma dezena de críticos lhe atribuíram quatro estrelas. A influente Cahiers du Cinéma e o jornal Libération, apenas duas.

Que matéria-prima o cineasta, roteirista e montador (da quase totalidade de seus filmes) usaria ao realizar um primeiro projeto fora de seu Japão natal? Suas 14 ficções anteriores, muitas delas exibidas nos cinco continentes, tiveram o Japão como cenário. Inclusive os muitos documentários que realizou para a TV, até estrear no cinema ficcional com o belíssimo e misterioso “Maborosi – A Luz da Ilusão” (1995).

Koreeda adaptou para uma Paris outonal, história que ele escrevera, anos antes, e seria protagonizada por mãe e filha, sendo a primeira uma consagrada atriz de teatro. Com Catherine Deneuve no papel de Fabienne Dangeville, célebre atriz de cinema, e Binoche como sua filha, Lumir, roteirista que trabalha nos EUA, o mundo do teatro cedeu lugar ao audiovisual.

Quando Fabienne Dangeville lança sua autobiografia (“A Verdade”), a filha decide visitá-la na companhia do marido, Hank (Ethan Hawke), pai de sua filhinha Charlotte (Clémentine Grenier), uma garota esperta e bilíngue. A veterana atriz vive em um palacete cercada de confortos e de cartazes dos filmes que protagonizou (um deles, “La Belle de Paris” resulta de citação explícita de “La Belle de Jour”).

Autocentrada, Fabienne é adulada por todos que a cercam. “A Verdade” revelada em seu livro é, em muitos casos (principalmente nos relacionados à filha), pura invenção. Descreve-se como mãe carinhosa, que sempre buscava a menina na escola. Lumir, que só lê o livro quando ele já está impresso (tiragem de 100 mil exemplares), questiona a mãe. Sem se abalar, a diva diz que ninguém conta a verdade em livro de memória.

Há, ainda, outra atriz, sempre lembrada na trama, que teria sido prejudicada por Fabienne. Para roubar o papel de protagonista conquistado pela rival, a mãe de Lumir não se fez de rogada. Foi para a cama com o diretor. Isso, claro, não está no livro de memórias. Mas reaparece nas tensas conversas entre a atriz e a roteirista.

Em Paris, filha, genro e neta de Fabienne vão ao estúdio onde se realiza um filme dentro do filme. E, na trama em produção, uma ficção científica, Deneuve interpreta a filha de uma mulher que vai ao espaço sideral, com o intuito de deter o processo de envelhecimento. Ao reencontrar a filha, a mãe apresentar-se-á infinitamente mais jovem que sua descendente.

A diva se impacienta com o processo de filmagem, acha o roteiro fraco, o diretor idem, a câmera (na mão) muito trepidante (“não conhecem o tripé?”). Tenta até fugir do set e tomar um texi para saborear um crepe. A filha exigirá que ela volte às filmagens e cumpra suas obrigações.

Os diálogos de Koreeda são inteligentes (boa parte em francês, outro tanto em inglês, pois o genro Hank não fala a língua de Truffaut e Godard). Em certo momento, Fabienne Dangeville comenta que as grandes estrelas do cinema europeu têm nome e sobrenome iniciados com a mesma letra: Danielle Darieux (DD), Simone Signoret (SS), Annouk Aimée (AA). Ao ouvir BB (Brigitte Bardot), Fabienne dá a entender que esta (“a mulher criada por Deus”, segundo Vadin) não está à altura daquelas anteriormente citadas.

O novo filme de Koreeda não arrebata como suas obras-primas japonesas (“Ninguém Pode Saber”, “Pais e Filhos”, “Nossa Irmã Mais Nova” e “Assunto de Família”, todos lançados no Brasil e disponíveis no streaming). Mas quem, amando o cinema europeu, francês em especial, deixará de assistir a um filme que une Catherine Deneuve a Juliette Binoche?

Em outubro de 2023, La Deneuve fará 80 anos. Segue belíssima e dona de fartos e sedutores cabelos. Binoche tornar-se-á sexagenária em 2024. As duas, ao contrário de BB, enfrentam o passar dos anos (e a chegada das rugas) com muitos e desafiantes trabalhos cinematográficos. Mesmo caso de outra grande atriz francesa, Isabelle Huppert, que chegará aos 70 daqui a dois anos.

Deneuve não corre atrás de papeis em filmes franceses ou internacionais. Os produtores a procuram. Já Huppert e Binoche, que são donas de temperamento diverso, não se cansam de convidar diretores de todos os cantos do mundo para dirigi-las, seja em produções francesas ou internacionais.

Foi assim com Abbas Kiarostami (“Cópia Fiel”), Michael Haneke (“Amor”), Hong Sang-Soo (“A Visitante Francesa” e “A Câmera de Claire”), Hou Hsiao-Hsien (“A Viagem do Balão Vermelho”), Brillante Mendoza (“Em Nome de Deus”), Ira Sachs (“Frankie”), Paul Verhoeven (“Elle”), entre outros.

O descolado jornal Libération (criado em 1973 por grupo encabeçado por Jean-Paul Sartre, seu primeiro editor), não se entusiasmou muito com “A Verdade”. Tanto que seu crítico atribuiu-lhe duas míseras estrelas. Mas buscou entender por que um filme estrelado por duas grandes atrizes francesas não fez sucesso similar ao de “Assunto de Família”.

Uma das razões, segundo o Libé, teria sido acidente vascular cerebral sofrido por Catherine Deneuve, em 2019, quando filmava “De son Vivant”, sob direção da atriz e cineasta Emamanuelle Bercot. Sob rigorosos cuidados médicos, a Belle de Jour não pôde participar da campanha de divulgação de “A Verdade”, tarefa que Binoche segurou sozinha. Até porque Koreeda já estava com os sentidos voltados para seu novo filme, outra produção internacional, dessa vez da Coréia do Sul (e falado em coreano): “Broker”, sobre mães que depositavam, anonimamente, bebês indesejados (ou que não podiam criar) em caixas, na esperança de que fossem adotados.

Podemos, também, conjecturar que filmes metalinguísticos não costumam fascinar multidões (ao contrário de histórias de amor, ação ou filmes protagonizados por crianças). Eles acabam fechados em pequenos guetos. Quem, entre os jovens de hoje, guarda na memória afetiva o desempenho de Catherine Deneuve no “Bela da Tarde” buñuelino, realizado há mais de 50 anos? Contam-se nos dedos os filmes metalinguísticos que fizeram história. “Crepúsculo dos Deuses” (Billy Wilder, 1950) é um desses poucos.

A carreira de Koreeda na ficção – ele tinha 33 anos, quando lançou “Maborosi” – é de causar inveja. Em duas décadas e meia, realizou 15 filmes, conquistou a Palma de Ouro (antes, já havia ganho o Grande Prêmio do Júri, em Cannes), e teve suas produções lançadas no mundo inteiro. Registre-se aqui que, no Japão (e na Coréia do Sul), um diretor só é respeitado se, além de realizar obras de grande qualidade artística, atrair bilheterias significativas. Foi assim até com transgressores da grandeza de Naghisa Oshima: “O Império dos Sentidos” resultou em êxito planetário (só no Brasil vendeu mais de 5 milhões de ingressos).

Semanas atrás, a Reserva Imovision colocou sete dos filmes de Hirokazu Koreeda em seu serviço de streaming. A começar por “Assunto de Família”, a Palma de Ouro de 2019. Até chegar ao inédito (nos cinemas brasileiros) “Boneca Inflável” (2009), a Reserva disponibiliza “O que Eu Mais Desejo”, “Pais e Filhos”, “Nossa Irmã Mais Nova”, “Depois da Tempestade” e “O Terceiro Assassinato”. Vale a pena dedicar uma semana inteira à fruição do biscoito-fino servido por esse grande diretor asiático.

 

A Verdade
França, 106 minutos, 2019
Direção: Hirozaku Koreeda
Elenco: Catherine Deneuve, Juliette Binoche, Ethan Hawke, Clémentine Grenier, Manon Clavel, Ludvine Sagnier, Jackie Berryer, Alain Libolt
Disponível apenas no streaming (iTunes e Youtube)

 

FILMOGRAFIA
Hirokazu Koreeda (Japão, 06/06/1962)

2021 – “Broker” (Coréia do Sul)
2019 – “A Verdade” (França)
2018 – “Assunto de Família” (Palma de Ouro em Cannes)
2017 – “O Terceiro Assassinato”
2016 – “Depois da Tempestade”
2014 – “Nossa Irmã Mais Nova” (Cannes)
2013 – “Pais e Filhos” (Grande Prêmio do Júri em Cannes)
2012 – “O que Eu Mais Desejo”
2009 – “Boneca Inflável”
2009 – “Seguindo em Frente”
2006 – “Hana Yori Mo Naho”
2003 – “Ninguém Pode Saber” (Cannes)
2001 – “Tão Distante” (Cannes)
1998 – “Depois da Vida”
1996 – “Without Memory”
1995 – “Maborosi – A Luz da Ilusão”

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