“Acaso” e “Ela e Eu” colocam grandes atores na disputa pelos troféus Candangos
Por Maria do Rosário Caetano
Dois longas ficcionais passaram pelas telas-suporte da quinquagésima-quarta edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (o Canal Brasil e a Innsaei TV) – o candango “Acaso”, de Luis Jungmann Girafa, e o paulistano-carioca “Ela e Eu”. Foram exibidos, também, o longa documental goiano-tocantinense “De Onde Viemos, para Onde Vamos”, de Rochane Torres, e mais seis curtas. Dois deles, realizados como projeto de conclusão de curso – “Como Respirar Fora D’Agua”, de Victória Negreiros e Júlia Fávero, na ECA-USP, e “Cantareira”, de Rodrigo Ribeyro (na Academia Internacional de Cinema).
Dos outros quatro curtas, três são os ficcionais “Adão, Eva e o Fruto Proibido”, do paraibano R.B. Lima, protagonizado pela atriz trans Danny Barbosa, o sintético “N.F. Trade”, do brasiliense Thiago Foresti, com o ótimo Wellington Abreu no elenco, e o “gore” (ou splatter) “Sayonara”, da paulistana Chris Tex.
Um documentário – “Deus me Livre”, do brasileiro Carlos Henrique Oliveira, em parceria com o espanhol Luis Ansorena – completou os cinco primeiros programas do festival. Trata-se de registro da vida de dois coveiros (“sepultadores”, preferem os jornalistas-cineastas), que no auge da pandemia de coronavírus, em meados de 2020, integravam as equipes do Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. Equipes que chegavam a fazer cem enterros por dia, um a cada cinco minutos, sob proteção sanitária capaz de deixá-los semelhantes a astronautas do Terceiro Mundo.
Os troféus Candango serão entregues aos vencedores, em cerimônia on-line, na noite dessa terça-feira. Três filmes serão exibidos no sexto e último programa da competição: o longa documental “Saudade do Futuro”, da carioca Anna Azevedo, e os curtas “Era Uma Vez… Uma Princesa”, da gaúcha Lisiane Cohen, e “Da Boca da Noite à Barra do Dia”, do pernambucano Tiago Delácio.
No terreno dos filmes de curta duração, com dez títulos exibidos, não dá para arriscar previsões. A safra é de boa qualidade, mas não há um título arrebatador, daqueles capazes de somar muitos troféus Candango (como “Ilha das Flores” ou “Meow”).
Já no terreno do longa, o favoritismo de “Lavra”, de Lucas Bambozzi, segue incontornável. Os três filmes que o sucederam (o brasiliense, o paulista e o goiano) e o que o antecedeu (o infanto-juvenil baiano, “Alice dos Anjos”) não chegaram a resultado tão consistente.
O filme mineiro é inventivo em sua mise-en-scène e potente em seu diálogo com o Brasil extrativista-dilapidador-predatório, marca atroz de nossos trágicos dias bolsonaristas. Bambozzi fez muito bem em escolher a capital geopolítica do país e o Festival de Brasília como cenário da estreia brasileira de seu quarto longa-metragem.
Claro que “Saudade do Futuro” pode ser tão (ou mais) potente que “Lavra”. Aguardemos sua exibição. As três ficções já mostradas fornecerão aos jurados – caso prevaleça a máxima de que Brasília privilegia potência artística e temas político-explosivos – apenas elencos e quadros técnico-artísticos.
“Ela e Eu”, de Gustavo Rosa de Moura, conta com elenco estelar, liderado por Andrea Beltrão. Com ela contracenam Karine Teles, Mariana Lima, Eduardo Moscovis, Jéssica Ellen, Lara Tremouroux e Flávio Bauraqui.
A presença da grande atriz carioca – que interpreta mulher em estado vegetativo, por longos 20 anos, depois de parto dificílimo – é tão mobilizadora, que o público, sumido, deu as “caras” (ou melhor, as “vozes”) ao debate na manhã seguinte. A maioria para elogiá-la.
Gustavo – que participa ao mesmo tempo do Festival do Rio com “Cora”, baseado no livro “Antonio”, de Beatriz Bracher (dirigido em parceria com Matias Mariani) – realizou um filme, digamos, perfeito demais, certinho demais, politicamente correto demais.
Com serenidade e imensa gentileza, marcas de sua natureza, o cineasta contou que inspirou-se em “Fale com Ela”, de Pedro Almodóvar, e em muitos outros filmes, e que trabalhou coletivamente, aceitando as contribuições dos atores e, inclusive da canção “Ela e Eu”, de Caetano Veloso. Tanto que escreveu o roteiro com Leonardo Levis e Andrea Beltrão e aceitou colaboração de mais três dos atores-autores (de seu elenco). Estava aberto a tudo que fertilizasse o filme.
No longo debate de “Ela e Eu”, o cineasta-roteirista não externou, por um instante que fosse, qualquer sintoma de possessão autoral. Só generosidade. Talvez esteja aí o mal do filme. Tudo é divino e maravilhoso. Os conflitos são mínimos. Até a fotografia da competentíssima Barbara Alvarez (parceira de Lucrécia Martel) parece limpa demais. Falta pulsão de vida. Faltam a sujeira e os suores de nossas existências, a dor dilacerante dos filmes de Almodóvar.
Andrea Beltrão, também generosa e muito articulada (e sem nenhum chilique de estrela), evocou, no debate, outra fonte de diálogo de “Ela e Eu”: “Adeus Lênin” (Wolfgang Becker, 2004). A comédia dramática germânica – lembremos – fala de um jovem (o hoje astro internacional Daniel Brühl) que falsifica a realidade, pós-queda do Muro de Berlim, para não trazer sofrimento à mãe, comunista convicta. Afinal, o Capitalismo triunfara de forma avassaladora. A RDA (República Democrática Alemã) não existia mais. Só a poderosa Alemanha Federal.
Falta ao longa brasileiro a potência subversiva (e a subjetividade ímpar) de Almodóvar e o humor cortante e crítico de Wolfgang Becker. Mas alguns troféus Candangos devem ser encaminhados ao “generoso” filme gustaviano. Que, aliás, segue com protagonistas brancos e bem-situados na escala social, mas não se esquece de abrir espaço para uma linda namorada homoafetivo-black (Jéssica Ellen) e para um médico negro (Flávio Bauraqui).
“De Onde Viemos, para Onde Vamos?”, de Rochane Torres, é um filme de grande beleza, e sobre tema dos mais oportunos: a relação de povos indígenas com o homem branco. No caso os Iny, que por desconhecimento, chamamos, por décadas (séculos) de Carajá.
Depois de assistir ao documentário e ouvir o poderoso discurso da indígena Narúbia, formada na universidade, saberemos que “Carajá significa macaco preto” e foi o nome que o colonizador bandeirante deu aos povos originários da Ilha do Bananal. E que o nome desse grupo étnico é Iny e significa “nós mesmos”.
Rochane Torres, também, artista visual, dedica todos os cuidados à imagem de seu filme. Sendo cineasta e de mentalidade decolonizadora, ela não quer, de jeito nenhum, parecer a forasteira que chega para ensinar, mas sim aquela que deseja aprender e compartilhar. Essa postura dá o tom do filme.
“De Onde Viemos, para Onde Vamos” hibridiza documentário observacional com “depoimentos”. O de Narúbia é de potência única. Inesquecível. Mas, às vezes, o filme cai na redundância. E parece saudosista.
Os Iny estão em contato com o homem branco há séculos. Adoram futebol. Muitos deles são flamenguistas apaixonados (aliás, o filme merece integrar-se à programação do Cinefoot). Usam celular, estão em sintonia fina com o mundo tecnológico. Mas a diretora insiste em mostrar a linda arte plumária, a cerâmica e as danças Carajá (ôpa, Iny). Em momento algum, ela abre espaço para que os indígenas “boleiros” falem de sua paixão pelo futebol, pelo Flamengo, pela internet.
Só o complexo depoimento de Narúbia (sempre ela) coloca o impasse: “há muita discriminação, fui muito discriminada, pertenço metade aos Iny, metade ao mundo branco, frequentei a universidade, meu pai foi escolhido cacique”. Uma vida dividida e da qual os preconceitos não desaparecem.
Quando chegam os créditos finais do documentário de Rochane, nosso espanto se multiplica: praticamente todos os indígenas cujos nomes são registrados trazem como sobrenome a palavra “Carajá”. Quem, então, utiliza o “Iny”? Os antropólogos?
“Acaso”, o representante de Brasília na competição brasileira, é um objeto não identificado. Uma ficção que nasceu com título misterioso: “Enigma”. E que optou, em definitivo, por nome ainda mais vago “Acaso”.
Seu diretor, o artista visual, arquiteto e curtametragista Luis Jungmann Girafa, estreou tardiamente num projeto de longa duração (aos 71 anos). Mas o fez com frescor juvenil (mesmo que haja, na trama, um gosto amargo de morte, de finitude). Jogou um lance de dados. Arriscou-se.
Definir “Acaso” como uma ficção é possível. No futuro, ele será visto como um documentário, o registro de uma geração – a melhor? – de atores, cantores, poetas e encenadores brasilienses. Por enquanto, o ideal é defini-lo com um híbrido.
Um dia, Girafa – apelido que adotou carinhosamente – resolveu fazer um filme “sem dinheiro, sem pressa, filmado em apenas dez dias e finalizado ao longo de cinco anos”, na base da brodagem. Atores entraram como parceiros; técnicos cobraram preços ultracamaradas.
O cineasta convidou a fina flor do teatro brasiliense: as atrizes Bidô Galvão, Kuka Escosteguy, Carmen Moretzsohn, os atores João Antônio, Andrade Jr (1945-2019, que não viu o filme pronto), Suyan Mattos e Luciano Porto, o performer Jorge Du Pan, o inventivo encenador Hugo Rodas, os poetas Maria Lúcia Verdi e Celso Araújo, o cantor e compositor Renato Mattos, entre outros. Todos cinquentões, sessentões e até septuagenários.
De jovens, só Gaivota Naves, de 25 anos, na época das filmagens, e Emanuel Lavor, que interpreta o “boy”, que se enrosca com a desenvolta personagem de Bidô Galvão.
Quando o filme começa, vemos, em cores, a bailarina (e atriz) Eliana Carneiro, talento luminoso, presa em aquário seco, numa inusitada interação com um peixe. Imaginamos, então, que veremos um filme a la Jacques Tati. Mas tudo muda. O registro torna-se realista. Personagens interpretam cenas do cotidiano numa avenida (os brasilienses reconhecerão na hora a pichadíssima W-3, outrora poderoso centro comercial, hoje decadente e substituída por shopping centers).
A personagem de Kuka Escosteguy eestá desnorteada, pois separou-se do marido. A de Carmen Moretzsohn, deprimida ao encontrar-se com amiga expansiva e atirada (Bidô Galvão). Conversam trivialidades, a mais despachada tenta animar a amiga. Outros personagens surgem. Um iogue, um poeta que declama versos pelas ruas, uma nonagenária que já viveu muito e clama pelo direito à eutanásia, uma mulher que “vende” caixinhas de música, um louco, um homem que se sente Deus, pessoas sentadas em paradas de ônibus (com belo uso das janelinhas das mesmas, tão brasilienses) etc.
Tudo parece um jogo. Ou como bem definiu o cineasta – que deu liberdade total a seus atores no processo de criação dos personagens – “um inventário amoroso”, uma soma de afetos, palavras, gestos, movimentos, deambulações por uma avenida qualquer de uma grande metrópole.
No debate, a diretora de fotografia Ana Cristina Campos, historiadora que faz sua estreia no longa-metragem, contou que “Girafa não queria que a Brasília dos grandes céus azuis fosse enquadrada”. Nem que “a avenida fosse identificada como a W-3”. Mas “não teve jeito” — constatou o diretor – pois “como dei liberdade total a cada um dos participantes do elenco, o Celso Araújo, por exemplo, colocou Brasília em muitos dos poemas ditos no filme”.
“Acaso”, em certos momentos, parece um filme com um quê de mórbido (mesmo que personagens – como os de Hugo Rodas e, principalmente, o de Bidô Galvão – exalem energias vitais). Por sorte, a juventude de Gaivota Naves subverte a narrativa. Ela entra em cena, com os olhos cobertos de contornos negros, e bota para quebrar. Diz que gerações passadas alimentavam-se de utopia e que a dela não quer saber de política. Felizmente, ela mesma constitui saudável exceção à regra e injeta bem vindo tom social ao filme.
Bidô Galvão é o destaque de “Acaso” e forte candidata a melhor atriz coadjuvante (não chega a ser protagonista, pois trata-se de um filme-coral). Junto com Gaivota, ela ilumina a narrativa fragmentada, reduzindo seu tom mórbido (acentuado pela presença de uma mulher de negro – o Destino? A Morte?), representada por Valéria Pena-Costa.
O final, que volta a ter cores, é, também, ocupado por um ritual mortuário. Por que um filme feito com tanto amor e despreendimento, com tanta entrega e espírito coletivo, tomou esse rumo? Tomara que Girafa, que tem novos projetos, se contamine pela rebeldia madura da personagem de Bidô Galvão e pelo ímpeto juvenil de Gaivota Naves. E faça um filme com pulsão de vida.
E, por fim, registremos aqui, “Acaso” é – como diria o saudoso Nelson Pereira dos Santos – um documentário de seu tempo, um registro de rostos, vozes, pensares e caminhares de boa parte dos artistas que ajudaram a construir Brasília, ao longo dos últimos 65 anos (1956-2021). Um filme inquieto.