Cinema globalizado sem sair do Brasil

O último Festival de Cannes comprovou a importância do cinema de Karim Aïnouz para o cinema independente mundial quando teve seu novo filme “Abismo Prateado” exibido na famosa Quinzena dos Realizadores, uma espécie de Meca do cinema de autor. Cineasta cearense que desembarcou anônimo no Festival do Rio de 2002 com um projeto de longa acerca de uma das figuras mais controversas do imaginário carioca (“Madame Satã”) e em seguida viu seu filme brilhar em Cannes, em pouco menos de uma década e três filmes se tornou um de nossos realizadores mais importantes no contexto internacional.

“Acompanhar Cannes é sempre uma mistura de prazer – ver filmes de manhã, de tarde e de noite, filmes apetitosos em sua maioria – e de aflição – estar no meio de uma grande feira de negócios, de uma convenção de empresa. E eu acho que estamos hoje num momento crítico com relação ao cinema como um todo. Vivemos de maneira não linear, e o cinema, o cinema hegemônico, tem sido linear por excelência. É como se ele estivesse fora de compasso com o seu tempo. Acho que dentro deste contexto o cinema deve se renovar, ser mais irreverente, surpreendente, abusado. Acho que há uma necessidade quase urgente de repensarmos a vocação narrativa do cinema”.

Processo criativo

Na verdade, quando olhamos para a filmografia de Karim, ele não fez outra coisa. De “Madame Satã” (2002) a “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (codirigido com Marcelo Gomes, 2010), passando por “O céu de Suely” (2006), seu cinema é protagonizado por personagens presos a situações íntimas insustentáveis, e está mais interessado em documentar suas experiências do que propriamente contar suas histórias. E isto virou uma marca pessoal que tem agradado plateias do mundo inteiro, assim como fez Abbas Kiarostami, por exemplo, que colocou todo o peso de seus filmes em seus personagens.

Sua fonte de criação é múltipla e seu objetivo final tem um foco bem definido no que ele pretende como resultado. “O ponto de partida é geralmente uma imagem, às vezes um tema, a necessidade de falar de alguma coisa. Daí vem a sensação, que seria quase o recorte sobre o tema ou sobre a imagem fundadora. O ‘Céu de Suely’, por exemplo: eu imanava sempre uma mulher carregando uma mala. Não sei de onde tirei essa imagem, talvez de uma memória pessoal, talvez de um filme. No ‘Madame Satã’ acho que vinha a sensação de explosão, de big bang, de rasgo. Essa sensação e a imagem de explosão vieram orientar o olhar sobre o personagem. A sensação se torna então a bússola do processo. A sensação que a gente gostaria que emanasse do filme, a sensação que a gente imagina que o espectador vai ter ao sair da sala”.

Uma canção como ponto de partida

Nada então mais coerente do que ter uma canção como ponto de partida. É justamente o caso de “Abismo Prateado”, cuja semente era nada mais, nada menos do que a música “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque. O longa é na verdade uma encomenda, braço cinematográfico do projeto “Chico Para Todos”, desenvolvido pelo produtor Rodrigo Teixeira, com patrocínio da Caixa Econômica, que já rendeu um livro, “Esta Canção Está Diferente”, e uma série de TV, “Amor em Quatro Atos”, exibida pela Globo. Com roteiro de Karim e Beatriz Bracher, fotografia de Mauro Pinheiro Jr. (“Cinema, Aspirinas e Urubus”), e um orçamento de R$ 3,5 milhões, “Abismo Prateado” foi filmado em cerca de dois meses em Copacabana, em 2010, com locações também no aeroporto Santos Dumont, e traz a história de Violeta (Alessandra Negrini), uma mulher que, como Suely, se vê às voltas com o sentimento de abandono.

“É um filme que se passa em 24 horas, sobre uma mulher que levou um inesperado pé na bunda do marido, e a gente a acompanha por uma hora e meia. O filme não conta história nenhuma, ele é o retrato de uma experiência extrema e comum a todos nós – ser deixado para trás, sem aviso prévio, sem claquete. Pow! Acho que em pelo menos 50% do filme a protagonista, Violeta, está sozinha. E o filme é o retrato dela em movimento. O filme é quase como se fosse uma polaróide de uma mulher abandonada. Você nunca sabe exatamente o que vai acontecer com ela – se ela vai se jogar de um precipício ou se ela vai dançar até o sol raiar. Há algo de tão cinético nisso que apostei nessa possibilidade”.

“Abismo Prateado” é mais um elogio de Karim à ação. A protagonista, Violeta, estará sempre em movimento, procurando compreender algo que talvez não tenha explicação. Em determinado momento, como em todos os filmes do cineasta, “Abismo Prateado” propõe um recomeço a sua protagonista. E Violeta aceita o desafio. É deste tipo de personagem que Karim gosta, “cinéticos, danados, que não se abatem com facilidade, teimosos”. O cineasta se empolga quando o assunto é este seu novo filme, talvez seu projeto mais livre, aquele em que pôde experimentar coisas que queria tentar no cinema havia tempo. O leitor precisa pôr essa empolgação em perspectiva. Karim esteve por um bom tempo envolvido com a série de TV “Alice”, cuja direção geral dividia com o amigo Sérgio Machado (“Cidade Baixa”).  E, se por um lado essa experiência híbrida entre o cinema e a TV lhe deu mais horas de set e o deixou mais confiante e à vontade no momento de, como ele mesmo diz, “coreografar uma cena”, por outro, estamos falando de um veículo menos aberto aos seus desejos mais experimentais.

“Era uma necessidade absoluta revisitar o espaço da experimentação, de não saber exatamente que filme estava fazendo e ir descobrindo isso no processo. O ‘Viajo’ a gente fez ao contrário: filmamos e depois escrevemos um roteiro. O ‘Abismo Prateado’ foi uma aventura musical: a partir de uma canção, do tom, da harmonia, da narrativa, chegamos a uma história. E a recepção de ambos os filmes também prova que, dentro da escala de cada um deles, há uma curiosidade e uma necessidade muito grande por algo que surpreenda, que saia da dinâmica de contarmos histórias de maneira clássica, mas que, em última instancia, consiga emocionar, engajar o espectador de forma contundente”.

Karim, um globetrotter

Surpresa e processo. São palavras importantes para o dicionário de Karim, um cineasta que gosta de encontrar seus filmes pelo meio do caminho, como quem descobre aos poucos uma cidade nova. E disso, Karim entende como poucos. Afinal, ele é um verdadeiro globetrotter. Foi concebido no Colorado, nasceu em Fortaleza e já morou em Berlim, Paris, Nova York, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília… É filho de pai argelino e mãe brasileira, neto de um dos fundadores da Frente de Libertação Nacional, grupo que comandou o processo de independência argelino. Formou-se arquiteto no Brasil, estudou pintura na França e se tornou mestre em teoria e história do cinema nos EUA, numa trajetória rara entre diretores brasileiros, entrando no cinema pelo caminho da teoria. Em Nova York, trabalhou como assistente de montagem e direção de longas como “Poison” (1990), de Todd Haynes, “Swoon” (1991), de Tom Kalin, e “Arizona Dream” (1993), de Emir Kusturica. Em 1992, filmou seu primeiro curta, “O Preso”, logo seguido por outros dois trabalhos (“Seams” e “Paixão Nacional”), e acabou sendo adotado pela produtora carioca Videofilmes.

“A ideia de morar num lugar não me apetece muito. Há algo de confortável demais, de previsível demais nessa premissa. Divido meu tempo entre Berlim, São Paulo e Fortaleza. Mas viajo bastante. Viajar, me sentir estrangeiro, não pertencer a um lugar em particular, é sempre uma inspiração. Gosto muito de aeroportos, de perder vôos, de fazer conexões longas. São nesses momentos que as ideias aparecem com mais vigor”, diz ele.

As mulheres de Karim

Criado por cinco mulheres fortes, Karim cresceu vendo telenovelas. Todas as noites seguiam um roteiro bem preciso: jantar, “Jornal Nacional” e Janete Clair. Tempos depois, em uma decisão classificada por ele como política, Karim resolveu parar de ver novelas. E assim o fez por mais de 20 anos. O melodrama, no entanto, permaneceu vivo na paixão por cineastas como Douglas Sirk e R. W. Fassbinder, e no gosto pela música. Karim diz ser um leigo, jamais entendeu exatamente o que é uma nota musical, mas sempre que começa um filme pensa logo em uma ou duas músicas que o guiam pelo processo inteiro. No “Céu de Suely” foi a canção de Brad na versão da Diana, “Tudo que Eu Tenho”. Em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” foi o Peninha de “Sonhos” e o Lairton de “Dois”. E no “Madame Satã” foi uma bateria de escola de samba.

“‘Abismo Prateado’ foi uma experiência ainda mais radical. Quando penso nele, lembro da definição de melodrama – melos, do grego, que significa música, e drama, também do grego, que significa ação. A combinação de musica e ação me interessa enormemente. Dança me interessa enormemente. Acho que seria impossível eu fazer um filme onde não haja uma cena de dança. No ‘Abismo Prateado’ uso algumas convenções do melodrama, mas de maneira estratégica, e não como uma tônica dominante – mas sempre com o cuidado de fugir do psicológico, da narrativa psicológica, e centrar forças na narrativa física, da ação, e não da fala”.

E nesse sentido, a expressão “cineasta do corpo” ainda faz sentido quando falamos de seu cinema. Karim diz ter se assustado quando o classificaram como tal no lançamento de “Madame Satã”, mas se deu conta de que a experiência física, o estar no mundo de maneira concreta, através da respiração, dos batimentos cardíacos, era mesmo algo que o fascinava.

“É o corpo que nos permite ter prazer, dor, alegria, interagir com o outro, foder. Não acredito em fantasmas, nem reencarnação, nem vida após a morte, nem em espírito. Infelizmente. Acredito na nossa capacidade biológica de estarmos vivos. Nada mais natural então do que ter fé no corpo. Mas não penso em nada disso quando começo a fazer um filme. Penso em espaço, em paisagem, em uma imagem, em uma imagem que me persegue, que não me larga. E penso que cada filme tem que ser necessário, seja pra mim ou para o mundo, ou pra mim e para o mundo. Não dá pra fazer por fazer, porque é ‘bacana fazer cinema’. Ou você tem algo muito importante a dizer como autor ou então é melhor fazer outra coisa. Fazer cinema é caro, leva tempo. Então, é preciso querer muito, senão o filme fica flácido, evapora, não resiste ao tempo. E o espectador vê isso, sente o cheiro”.

Próximas aventuras têm inspirações musicais

Pois Karim ainda tem muitas coisas para dizer a 24 quadros por segundo. “Praia do Futuro”, “um projeto muito próximo do meu coração”, tem como bússola as músicas “Heroes”, de David Bowie, e “Beira Mar”, de Ednardo, e se passa entre dois lugares pelos quais Karim se diz apaixonado: Berlim e o bairro de Fortaleza que dá nome ao longa. “É um filme sobre aventura, de personagens que viajam, que nadam ferozmente, que atravessam oceanos. É um filme cuja metade se passa no verão e a outra no inverno, na neve. É um filme sobre reunificação, sobre o reencontro de dois irmãos que passaram anos separados. Estamos agora polindo o roteiro para iniciarmos a pré-produção em outubro deste ano”, revela Karim, que voltou de Cannes com um projeto internacional na manga, “The Beauty of Sharks”. “Prefiro não falar deste e de outros projetos. É como falar de um filho que a gente quer ter, mas que ainda não nasceu. Quando chegar a gravidez, a gente fala. Mas só depois dos três meses”, brinca.

 

Por Julio Bezerra

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.