O cinema registro

Primeira ficção de Eryk Rocha, “Transeunte” não nasceu de um desejo de provocar uma guinada num percurso, até então, voltado para o documental. “Partir para a ficção foi algo natural, espontâneo. Quis experimentar outra possibilidade de cinema. Não considero como um degrau acima do documentário”, afirma o diretor, que exibiu seu longa, com estreia nos cinemas prevista para o final do primeiro semestre, nas últimas edições da Mostra de Tiradentes e do Festival de Brasília, de onde saiu com os Candangos de melhor ator (para Fernando Bezerra) e som.

“Transeunte” representa um reencontro de Eryk com habilidades da infância. “Sempre gostei de desenhar histórias, criar personagens. Depois, abandonei. Esse filme me trouxe a possibilidade de retornar a um determinado imaginário”, revela o filho de Glauber Rocha e Paula Gaitán. Mas Eryk também foi movido, nesse projeto, por questões que só poderiam ser formuladas depois de certo tempo de estrada. Basta dizer que a solidão se agiganta na tela. O diretor fecha o foco em torno de um único personagem – Expedito, de idade avançada, morador de um prédio populoso do Centro do Rio de Janeiro, sem perspectivas. “Quais os rastros que uma pessoa solitária deixará? Como saberão que passou pelo mundo? O cinema é uma forma de marcar a passagem pelo mundo”, constata o cineasta dos documentários “Rocha que Voa” (2002), “Intervalo Clandestino” (2005) e “Pachamama” (2008).

Apesar de se apresentar, de certa forma, como um quase monólogo, “Transeunte” não despreza o que está fora de campo. Ao contrário. “O filme é permeado por rostos anônimos. Fechamos a câmera no corpo do ator, mas não de modo voyeurista, e sim epidérmico. Não quis apenas observar a vida alheia de maneira contemplativa”, sublinha. Eryk Rocha não se limita a retratar a jornada solitária de Expedido. Flagra sua transformação, seu renascimento para a vida. “Acho interessante que essa abertura se dê no corpo de um idoso. O personagem se abre aos poucos. Primeiro está sozinho, aposentado. Vive exilado em sua própria memória. A partir de detalhes começa a reanimar e vira uma criança em vários momentos. O tempo tem essa potência”, assinala.

Filme de ator – Não foi fácil encontrar o ator certo para interpretar Expedito. Eryk levou cerca de seis meses para selecionar Fernando Bezerra. “Queria um ator de certa idade, desconhecido do grande público. Até que meu produtor, Walter, comentou que Fernando fez participação em ‘Linha de Passe’ (2008)”, relata Eryk, referindo-se ao filme de Walter Salles. “Marquei encontro e logo ficou claro que era ele. Fernando tem alguma experiência no cinema. Participou de ‘Sargento Getúlio’ (1983), de Hermano Penna. E é dono de um currículo impressionante no teatro. Trabalhou com nomes como Ziembinski”, destaca. Nascido na Bahia, Fernando Bezerra migrou com meses de idade para o Rio de Janeiro, cidade onde morou até os 30 anos. “Ele foi criado no subúrbio. Caminhamos pelas ruas da cidade, pelo Centro, verificando quais vestígios existem da época em que viveu aqui”, diz Eryk, a respeito de Fernando, hoje radicado em São Paulo.

A cidade desponta como personagem fundamental em “Transeunte”. “Eu cresci no Centro do Rio. Um lugar onde coexistem muitos tempos arquitetônicos: um Rio modernoso e yuppie, um Rio decadente. O personagem mora perto da Praça da Cruz Vermelha, que está passando por transformações. Por quanto tempo ainda existirá a seresta? Os chineses estão tomando conta do Saara”, declara Eryk, fazendo menção à região de comércio popular conhecida pela intensa movimentação. “Percebemos no Rio cidades que estão se fundindo. Como será essa sobreposição? O filme prioriza a cidade mais velha, mítica. As sonoridades, porém, o trazem para o presente. Quis que ‘Transeunte’ fosse uma memória da cidade, um testemunho do nosso tempo”, afirma.

Novos projetos – Além de “Transeunte”, Eryk Rocha está dando vazão a outros projetos. Filmou “A Luta 2”, um dos cinco espetáculos componentes da saga “Os Sertões”, transposição do Grupo Oficina, capitaneado por José Celso Martinez Corrêa, para o teatro. “‘A Luta 2’ é uma experiência épica em que criei uma dança, uma coreografia. Um trabalho norteado pela transfiguração. O Oficina transfigurou a literatura no teatro. E eu, o teatro no cinema. Não desejei fazer um registro da peça, mas propor um olhar”, explica Eryk, que dirigiu ao lado do irmão, Pedro Paulo Rocha. “Considero ‘Os Sertões’ um musical dionisíaco, ligado à formação da cultura brasileira, ao que somos hoje. Quais são os massacres que estão em andamento agora?”, questiona.

Há ainda outras iniciativas em curso: a montagem de um documentário, filmado no Peru, que traz moto-taxistas como personagens. E um DVD, centrado em Jards Macalé, realizado em parceria com a Biscoito Fino e o Canal Brasil. “Também estou escrevendo uma nova ficção”, anuncia Eryk.

 

Por Daniel Schenker

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