Balada cinematográfica
Com narrativas que obedecem a certos modelos consagrados sem abrir mão de temáticas pouco usuais e de uma estética tributária tanto da contracultura americana quanto do cinema experimental e das artes plásticas, Gus Van Sant vem nos desafiando há algum tempo. É um cineasta de múltiplas facetas, que conquistou prestígio tanto em Hollywood quanto no cinema independente – ao ponto de ter obtido reconhecimento tanto para os holofotes do Oscar, quanto para o tradicional Festival de Cannes. De “Encontrando Forrester” (2002) a “Os Últimos Dias” (2005), de “Mala Noche” (1985) a “Gênio Indomável” (2000), há algo que fica e muito que se transforma, como se Van Sant estivesse sempre em uma espécie de transição. Em “Inquietos” isso é mais uma vez evidente. Talvez, para dizer logo de cara, não haja nele o brilho de “Gerry” (2002) a “Paranoid Park” (2007), mas este é sem dúvida nenhuma um Van Sant, e, como tal, é capaz de nos arrebatar vez ou outra.
“Inquietos” é um projeto da atriz e agora produtora Bryce Dallas Howard (“Manderlay”), que o desenvolveu com o roteirista Jason Lee. O filme conta a história de Annabel Cotton (vivida pela magistral Mia Wasikowska, a Alice de Tim Burton), uma bela e encantadora paciente com câncer terminal profundamente apaixonada pela vida e pela natureza, e Enoch Brae (Henry Hopper, filho de Dennis Hopper), um jovem diferente e um tanto antissocial que perdeu os pais em um acidente. O melhor amigo dele é um fantasma de um piloto Kamikaze. Ela admira Charles Darwin. Os dois se encontraram em um funeral e ao saber que Annabel está prestes a morrer, Enoch se propõe ajudá-la a enfrentar os seus últimos dias.
A princípio, “Inquietos” estaria mais para “Gênio Indomável” do que para “Elefante” (2003). Mas é preciso cuidado. O jovem como mito nunca esteve muito longe do cinema de Van Sant. Em “Inquietos”, ele se aproxima mais uma vez desse universo, com muito carinho e uma certa dose de fetichismo. Como ocorre em muitos de seus filmes, o figurino patenteia os personagens (Annabel é uma curiosa citação-homenagem a Jean Seberg e à nouvelle vague), sempre em relação dissonante com as regras que a sociedade nos impõe. “Inquietos” é uma espécie de balada cinematográfica. Van Sant caminha entre o romance teen e o filme de doença terminal, gêneros com os quais já possui uma certa afinidade, aposta em um ambiente encantador e cria pequenos momentos de excentricidade mágica – com o auxílio da fotografia de Harris Savides, um dos maiores da atualidade, com quem Van Sant já trabalhou seis vezes.
Se em “Encontrando Forrester” e “Gênio indomável” havia um enredo de autossuperação sob a orientação de um adulto, e em “Elefante”, entrava em cena uma espécie de rito de passagem, mas uma passagem de energias, corpos e nuvens, “Inquietos” fica no meio do caminho. O que une os trabalhos mais radicais de Van Sant (de “Gerry” a “Paranoid Park”) é uma mise-en-scène imersiva que se abre para um fluxo sensório temporal e que se sobrepõem à narrativa. São filmes que caminham entre o absolutamente abstrato e um fiapo de história. “Inquietos”, ao contrário, parece muitas vezes se ressentir da necessidade de contar uma história. Os personagens ganham psicologia e suas motivações nos são reveladas, camada por camada, em cenas por demais funcionais (como quando descobrimos o que aconteceu com os pais de Enoch) que tornam o roteiro visível.
Ainda assim, Van Sant parece por vezes querer expressar seus personagens por meio da estilização e do desenho de som, nos oferece momentos dilatados e absolutamente contemplativos, procurando passar o sentimento de angústia, descoberta e desespero, através de uma linguagem que beira o poético, sem muito preciosismo. Talvez a grande chave deste filme, como bem sublinhou Eduardo Valente lá na Cinética, seja mesmo Hiroshi (Ryo Kase), o fantasma camarada de Enoch. Van Sant dá a esse personagem um tempo e uma importância que por vezes o torna ridículo, enquanto noutras confere uma força, um desejo comovente de se aproximar e compreender o universo retratado.
Assista ao trailer do filme aqui.
Inquietos | Restless
Diretor: Gus Van Sant
Elenco: Mia Wasikowska, Jane Adams, Schuyler Fisk, Henry Hopper, Ryo Kase, Lusia Strus, Jane Adams, Paul Parson, Thomas Lauderdale, Christopher D. Harder, Morgan Lee
Duração: 91 min.
Ano: 2011
País: EUA
Distribuidora: Sony Pictures
Por Julio Bezerra