Entrevista: Luiz Bolognesi
Luiz Bolognesi tem um engajamento com as histórias que escreve. Esse engajamento é um olhar crítico sobre a história do Brasil, que poderá ser visto nas telas dos cinemas, a partir do dia 5 de abril, em “Uma História de Amor e Fúria”. Um filme de animação que consumiu dez anos de trabalho, da preparação do roteiro, após uma longa pesquisa sobre os 500 anos de história do Brasil (ou 600 anos, avançando no futuro), à escolha da melhor técnica de animação para reproduzir o herói brasileiro, um guerreiro imortal.
Nesta entrevista à Revista de CINEMA, o roteirista premiado Luiz Bolognesi estreia como diretor de uma história de ficção, onde uniu o que mais gosta de fazer, estudar a antropologia brasileira, a paixão pelo universo da graphic novel e o tom engajado de sua narrativa. Bolognesi relata, através de uma história de amor, que atravessa 600 anos, a perpetuação da lógica da exclusão ao longo dos séculos no Brasil – desde a chegada do homem branco, passando pela Balaiada (revolução ocorrida no Maranhão entre 1838 e 1840) e culminando na ditadura militar. O diretor também lança projeções (sombrias) para o futuro, ao ambientar a última parte no final do século XXI.
O filme teve colaboração de antropólogos e historiadores, e foi realizado com uma técnica apuradíssima de animação 2D, no modelo antigo que tem origem no desenho no papel, e consumiu R$ 4 milhões e meio (fora os R$ 500 mil destinados à comercialização). Entre os festivais que participou, está a seleção para a competição oficial do Holland Animation Film Festival, importante festival de animação que acontece anualmente na cidade de Ultrecht, na Holanda.
Para interpretar os personagens da animação, Luiz Bolognesi reuniu um time formado pelos atores Selton Mello, Camila Pitanga e Rodrigo Santoro. O trabalho, porém, não consistiu “tão-somente” em dublagem. Bolognesi dirigiu-os em estúdio e suas vozes influenciaram diretamente na criação do filme, que perpetua a parceria com sua mulher, a cineasta Laís Bodanzky. Bolognesi, que chegou a estudar ciências sociais e antropologia, escreveu os roteiros das ficções “Bicho de Sete Cabeças” (2001), “Chega de Saudade” (2008) e “As Melhores Coisas do Mundo” (2010), e registrou com Bodanzky, no documentário “Cine Mambembe, o Cinema Descobre o Brasil” (1999), viagens pelo Brasil realizadas com o intuito de exibir curtas-metragens brasileiros em praças públicas de cidades do interior.
Revista de CINEMA – O projeto de “Uma História de Amor e Fúria” surgiu de sua ligação com os documentários (“Cine Mambembe, o Cinema Descobre o Brasil” e “A Guerra dos Paulistas”, de 2002), ambos realizados em parceria com a Laís Bodanzky?
Luiz Bolognesi – Esse projeto foi pensado na época do lançamento de “Bicho de Sete Cabeças”, um filme que superou as nossas expectativas. Sempre fui aficionado pela história do Brasil e por graphic novel. Eu procurei conectar estas duas vertentes em “Uma História de Amor e Fúria”. E há um ar engajado constante em meus trabalhos, a julgar por “Bicho…”, “As Melhores Coisas do Mundo” e “Terra Vermelha” (2008).
Revista de CINEMA – Ao mesmo tempo em que o filme se debruça sobre o Brasil, você investe numa abordagem épica, não muito presente no cinema brasileiro, não?
Luiz Bolognesi – A estrutura dramatúrgica que eu mirava tinha um pé na tragédia e outro no épico. De fato, o épico é raro no cinema brasileiro. Vemos pouco a aventura do herói fundador de uma era, que permite o avanço de uma civilização. Como roteirista, estudo muito e percebo que o drama e a comédia de Hollywood estão fundados na mitologia grega. Ao invés de mergulhar na estrutura narrativa da mitologia grega, optei por uma releitura da mitologia tupi-guarani e tupinambá.
Revista de CINEMA – Você destaca a perpetuação da lógica da exclusão ao longo dos séculos. Há o risco desta equivalência entre os períodos históricos se sobrepor às especificidades de cada época abordada?
Luiz Bolognesi – Acho que estamos justamente mostrando no filme as peculiaridades de cada época. A violência é uma constante, desde a chegada dos europeus. Os excluídos estão sempre lutando. A imagem de vitimização que normalmente se tem deles não é verdadeira. O brasileiro é inconformado – e não resignado. Esta luta, porém, é valorizada ideologicamente. A periferia das grandes cidades tem um movimento muito violento, uma espécie de guerra civil – apesar de não ser nomeada como tal. Além disso, fiquei preocupado em evitar uma abordagem maniqueísta. O cacique tupinambá, por exemplo, mata por interesse. A história não é feita de mocinhos e vilões. Existe uma complexidade maior.
Revista de CINEMA – Você precisou se cercar de uma base teórica consistente para desenvolver esse projeto, não?
Luiz Bolognesi – Eu estudei ciências sociais – basicamente, antropologia – durante cinco anos. Não cheguei a me formar. Em 2004/2005, trabalhei ao longo de sete meses num grupo de estudos que montei para o filme, formado por cinco mestrandos (três em antropologia, um em história e um em psicologia). Consultei historiadores, em especial Pedro Puntoni e John Monteiro, especialista no período colonial. Hoje tenho uma estante inteira com livros, xérox de fontes primárias. Fizemos um levantamento de quase 40 episódios históricos do Brasil e escolhemos três.
Revista de CINEMA – Quais foram os critérios utilizados na escolha dos episódios históricos?
Luiz Bolognesi – Pensamos nos episódios mais emblemáticos. O primeiro é a chegada dos brancos, sob a perspectiva dos índios que aqui estavam. Depois ficamos em dúvida entre a Balaiada, a Revolta dos Malês e a Cabanagem. Escolhemos a Balaiada porque foi nesse momento que nasceu o cangaço e o exército brasileiro. Hoje em dia, o neocangaço está nas favelas. E também ficamos em dúvida entre a Revolução de 30 e a ditadura militar, os dois fatos históricos mais importantes do século XX no Brasil. Optamos pela ditadura, até porque temos uma presidente (Dilma Rousseff) que foi guerrilheira. É fundamental desenvolvermos uma dramaturgia sobre esse período. E se trata de um acontecimento histórico ainda muito presente atualmente.
Revista de CINEMA – Você também lança um olhar sobre o futuro que não é propriamente otimista…
Luiz Bolognesi – Não é uma perspectiva muito otimista mesmo. O filme apresenta uma visão um pouco sombria de futuro. Só o que me faz ser otimista é a certeza de que temos que continuar lutando. Pelos nossos filhos, mulheres, ideais. Apesar de parecer que não vamos ganhar. No Brasil, a desigualdade extrema continua. A questão da água está mais ligada ao lucro que ao bem-estar da população. A segurança fica a cargo das milícias.
Revista de CINEMA – A parte do futuro foi diretamente inspirada em “2046”, de Wong Kar-Wai?
Luiz Bolognesi – É um filme que adoro e que inspirou plasticamente. Mas não se trata de uma referência explícita.
Revista de CINEMA – Você investe no contraste cromático entre tons luminosos e intensos e outros, sombrios e fechados. Fale sobre esta escolha.
Luiz Bolognesi – A diretora de arte Anna Caiado conceituou cada uma das etapas da jornada do herói como uma estação do ano. A primeira fase, da chegada do homem branco, é a primavera; a Balaiada, o verão; a ditadura, o outono; e o futuro, o inverno. Ela dividiu as canetas coloridas em quatro blocos. Isto fez com que cada episódio ganhasse uma personalidade própria.
Revista de CINEMA – Por que o projeto demorou a ser viabilizado?
Luiz Bolognesi – Levamos quatro anos para fechar o roteiro e levantar dinheiro. Nesse período, desenvolvemos a pesquisa. Depois ficamos mais seis anos em produção. A animação já costuma ser demorada. Além disso, não quisemos correr. Optamos pela animação clássica. Há mais filmes em animação digital.
Revista de CINEMA – Desde o início do projeto, você sempre pensou em enveredar pela animação clássica?
Luiz Bolognesi – Sim. Como é uma técnica mais cara, em dado momento fui confrontado com a necessidade de partir para a animação digital. Mas não quis. Assumi uma posição radical. Do contrário, teria um filme do qual não sentiria orgulho.
Revista de CINEMA – Como funciona a técnica de animação clássica?
Luiz Bolognesi – É uma técnica mais rara, de lápis sobre papel, antigamente conhecida como 2D. As cenas são desenhadas no papel e escaneadas para aprovação do diretor. Depois há a fase de pintura digital, feita no computador. O trabalho segue, então, para o Departamento de Composição, que casa os personagens animados com os cenários. É o instante em que as sombras dos personagens são feitas, bem como os movimentos de câmera. Além disso, vale dizer que nos filiamos à escola japonesa de animação, que faz oito desenhos por segundo. Trata-se de algo que barateia a produção. Mas a razão fundamental foi outra: o movimento dos personagens fica mais minimalista, contido, em oposição à escola americana.
Revista de CINEMA – Você montou um estúdio de animação para fazer o filme?
Luiz Bolognesi – Sim. Montamos um estúdio itinerante. Primeiro, em Águas de Lindóia, depois em Santos e finalmente em São Paulo. Tínhamos muita gente de fora de São Paulo na equipe e precisávamos reunir as pessoas. Seria muito caro mantê-las durante todo o tempo na capital.
Revista de CINEMA – Como foi o trabalho com os atores, que não “se limitaram” a um trabalho de dublagem. Você dirigiu a atuação de cada um, não?
Luiz Bolognesi – Os atores gravaram as vozes antes de a animação existir. Não partimos para uma leitura branca de mesa; eles viveram a cena. Tudo foi feito em estúdio, sem que houvesse contracena. Os animadores trabalharam com as vozes dos atores na criação da animação. Então, precisava de atores bons, dedicados e capazes de desenvolver um trabalho minimalista. Não queria um tom expressionista. Enviei o roteiro. Selton (Mello) e Camila (Pitanga) aceitaram participar. Selton, inclusive, se tornou coprodutor do filme. E temos parceria com Rodrigo (Santoro) desde “Bicho de Sete Cabeças”. Todos tinham experiência em dublagem, principalmente Selton.
Revista de CINEMA – E sua parceira Laís Bodanzky, como ela participou do projeto?
Luiz Bolognesi – Laís é produtora do filme junto com os irmãos (Caio e Fabiano) Gullane. A entrada dos Gullane salvou a produção. Laís contribuiu bastante no primeiro episódio, que estava com cenas a mais que confundiam o espectador. Laís ajudou a limpar e organizar essa parte. Além disso, gravou uma voz bem rápida.
Revista de CINEMA – Você tem vontade de seguir trilhando o terreno da animação?
Luiz Bolognesi – Sim. Tenho vontade de me dedicar a outro desenho e a Europa Filmes e a HBO querem que eu faça “Uma História de Amor e Fúria 2”. Acho difícil. O meu coração diz para investir em outro projeto, também voltado para uma abordagem histórica – agora, referente mais a São Paulo do que ao Rio de Janeiro. A história terá crianças como protagonistas. Um projeto mais voltado para a família. Quero continuar trabalhando com lápis sobre papel. Mas também partirei para o 3D. Será mais caro do que “Uma História de Amor e Fúria”.
Revista de CINEMA – Você vai continuar sua carreira de roteirista? Que projetos você está desenvolvendo com a Laís Bodanzky?
Luiz Bolognesi – Estou escrevendo um roteiro, “Como nossos Pais”, para Laís. Será sobre a nossa geração e, especificamente, as mulheres na faixa dos 40 anos. E também trabalho, nesse momento, no roteiro do filme de Daniel Rezende, chamado “Vida do Palhaço”, que trará à tona os bastidores da televisão brasileira nos anos 80.
Assista ao trailer da animação “Uma História de Amor e Fúria” e confira o vídeo do making of da produção.
Por Daniel Schenker
Esse é fera no que faz! seus trabalhos são excelentes, espero que continue sempre assim, criativo, humilde e talentoso! Grande abraço!
att, Jemes brás
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