Isto é um filme

Não é novidade. Jafar Panahi está preso em casa e proibido de filmar. Aclamado internacionalmente por longas como o “Balão Branco” (1995), “O Espelho” (1997) e “O Círculo” (2000), ele foi julgado e condenado a seis anos de prisão e proibido de dirigir filmes, escrever roteiros, dar entrevistas e deixar o Irã por 20 anos – Mohsen Makhmalbaf e Abbas Kiarostami, aliás, os outros dois grandes expoentes do cinema iraniano, encontram-se exilados. Enquanto aguardava o julgamento de um recurso, Panahi arranjou forças para driblar estas restrições e fazer cinema. Como, contudo, fazê-lo sem ter os meios para isto? Sem poder sair de casa, dirigir atores, pegar em uma câmera ou contar uma história? O que vem a ser um filme? “Isto Não É um Filme” (2011), codirigido por Mojtaba Mirtahmasb, é prova da vivacidade deste cineasta e sua capacidade de encontrar caminhos alternativos, absolutamente cinematográficos, que pudessem dar conta de sua situação. Em “Cortinas Fechadas” (2013), correalizado desta vez com Kambozia Partovi, mais um exercício exploratório, outros possíveis caminhos são investigados, com a mesma criatividade.

A primeira metade de “Cortinas Fechadas” é uma obra de ficção em linha reta. Partovi interpreta um escritor que mais parece se esconder em uma casa à beira da praia. Ele traz seu cachorro e tem de mantê-lo longe da vista dos outros – os cachorros são tidos como animais sujos pelas normas islâmicas. Por isso, fecha todas as cortinas da casa. O tempo passa e a coisa se complexifica. Outros dois personagens buscam refúgio: um jovem (Hadi Saeedi) e sua irmã Melika (Maryam Moqadam). Eles fogem da polícia. Estavam em uma festa em que o álcool era consumido livremente, contrariando as leis vigentes. Ele sai atrás de ajuda. Ela fica. Melika quer abrir as cortinas e faz muitas perguntas sobre a vida do escritor, cada vez mais desconfiado a respeito da verdadeira identidade de sua hóspede inesperada. Em sua segunda metade, ela desaparece e ele e seu cachorro se escondem. O filme assume então um tom mais surreal. O próprio Panahi entra em cena. Os outros personagens não estão mais por lá. Talvez estejam na mesma realidade em que Panahi se encontra. Talvez pertençam a uma outra dimensão diegética. Talvez sejam apenas presenças puramente simbólicas. Talvez tenham simplesmente ido embora.

Talvez é, na verdade, uma palavra importante para o jogo que este filme nos propõe. Ela nos ajuda a dar conta do estado de desconexão, do descompasso entre Panahi e o que poderíamos chamar de filme. “Cortinas Fechadas”, seu segundo longa concluído em meio a prisão domiciliar, tem muito em comum com seu antecessor. “Isto Não É um Filme”, contudo, carregava uma insatisfação muito forte: a impossibilidade de fazer um filme sem recorrer aos gestos, ao rosto de uma atriz, a um sotaque específico, ao colorido de um dado espaço, em uma palavra, ao imponderável. “Cortinas Fechadas” trata de sentimentos similares, embora de maneira diferente. Este novo longa é algo como uma refração prismática de “Isto Não É um Filme”. É como se Panahi tivesse dividido o sentimento de confinamento e ansiedade em fragmentos narrativos, em camadas de sentido que por vezes se sobrepõem, se contradizem, se recusam a formarem uma alegoria coerente e legível.

Ao contrário de “Isto Não É um Filme”, “Cortinas Fechadas” tem atores e personagens, cenários e pequenas ficções. Contudo, este novo longa se faz em uma estranha espécie de pique esconde entre estes elementos. Os personagens, por exemplo: do que estão fugindo se não do próprio filme, das amarras da representação? Estamos diante de um longa que não ousa jamais se afirmar como tal. Quer dizer: Panahi parece insistir em uma distinção que servia de premissa para seu longa anterior: a diferença entre filme e cinema. “Cortinas Fechadas”, como “Isto Não É um Filme”, embora seja cinema da maior qualidade, é também uma espécie criativa de não-filme. A grandeza destas perguntas e a riqueza das alternativas que Panahi e seus parceiros nos propõem traduzem os desequilíbrios, as impossibilidades e os furos da realidade contemporânea no Irã.

Cortinas Fechadas | Pardé
(Irã, 106 min., 2013)
Direção: Jafar Panahi e Kambuzia Partovi
Distribuição: Esfera Filmes

 

Por Julio Bezerra

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