Uma nova tendência no cinema brasileiro?
O crítico Tiago Mata Machado é mais um nome do cinema brasileiro recente que passa do texto à direção. “Os Residentes” (2010), que sai agora em DVD pela Lume Filmes, assinala sua aventura no outro lado da linha. Exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, gerou controvérsia porque Tiago assumiu a posição messiânica de salvar o cinema brasileiro da letargia realista. Luiz Zanin, do Estadão, o considerou pretensioso, mas Marcelo Miranda, da Filmes Polvo, ressaltou que se trata de um filme necessário no momento atual do cinema brasileiro. Após a controvérsia em Brasília, “Os Residentes” foi exibido, em seguida, na Mostra de Tiradentes (2011), onde acabou escolhido como melhor filme, e teve recepção calorosa de seguimento expressivo da crítica. O crivo então seria a Berlinale, mas aí o filme de Tiago mal foi percebido.
De caráter fortemente experimental, com o propósito explícito de diluir esquemas narrativos, “Os Residentes” se pauta em algumas questões básicas: jogar com diálogos aparentemente coloquiais com a ideia de traduzir ansiedades contemporâneas, utilizar a simbologia das cores para traduzir conceitos implícitos, forjar situações de performances que trazem o pressuposto de estreitamento entre encenação e improviso, girar em torno de situações enigmáticas que sugerem, mas que permanecem abertas a uma multiplicidade de sentidos. Ou seja, um filme que se pode ver sem qualquer preocupação com uma ordem dada. Fica para o espectador o desafio de, como um quebra-cabeça, montar um sentido possível, uma mensagem subliminar.
Trata-se, portanto, de um filme difícil, voltado para um público restrito, que esteja disposto a acompanhar e tentar decifrar seus enigmas. Nessa perspectiva, Tiago joga com a questão que opõe prazer e compreensão. No caso, o aprazível, deliberadamente, fica para segundo plano. O horizonte explícito é o da intelecção, sem o qual o filme é um quebra-cabeça desmontado. Em consequência, as imagens de “Os Residentes” deixam no ar uma trava que intimida a aproximação do espectador, que gera certa frieza com relação à sequência de situações. Ou seja, não é um filme que comova, mas sim que se abre a possibilidades de sentidos subliminares.
Visto assim, “Os Residentes” se apresenta como uma obra aberta, com todos os riscos que uma obra dessa natureza possa oferecer. Por isso, um dado inequívoco é o que se refere aos paralelos. Na pretensão, “Os Residentes” tem atrás de si a obra de J. L. Godard e, entre nós, Rogério Sganzerla e Julio Bressane. Sendo este o caso, as intenções de Tiago não são pequenas. A questão de fundo mais relevante diz respeito à possibilidade de tomar o cinema para pensar, tanto sobre suas próprias possibilidades de expressão artística, quanto de crítica da sociedade em que é concebido. Ora, “Matou a Família e Foi ao Cinema” (1969), de Bressane, quando se nota o ano em que foi realizado, se percebe muito mais que uma imagem explicite. Pode-se esperar algo similar em “Os Residentes”?
Não, o filme de Tiago Mata acaba padecendo em suas pretensões. Em grande parte porque preso a maneirismos que não se descolam da ideia de “filme cabeça”. É o tipo de filme que parte do pressuposto de que rupturas narrativas geram uma obra que cabe ao espectador tentar decodificar. E assim estaria reconhecido seu valor como obra de arte. Ocorre que para isso Tiago teria de apresentar credenciais e suporte na hora do debate. Mas não foi o que aconteceu, pois inclusive ele chegou a demonstrar imaturidade com respeito aos caminhos que tomou. Não se parte de Godard, ou Bressane, impunemente. E Tiago não parece ter entendido isso ao tergiversar sobre o filme em Brasília. Com isso, deixou a impressão de ficar aquém da potencialidade que seu filme sugere.
Com isso, na contramão de Marcelo Miranda, se quer sugerir que se trata de um filme “desnecessário”? A resposta também é negativa. Trata-se de um filme necessário, pois reflete anseios, expectativas de uma geração que busca saídas, que vê o cinema como canal para expressar como ela sente e percebe o mundo ao redor. Nesse sentido, os riscos corridos por Tiago não devem ser desprezados; não vale jogar a criança e a água suja da banheira. A questão é que, com “Os Residentes”, Tiago apostou alto, e quem aposta nas alturas se expõe em demasia. Resta então aguardar seu próximo trabalho. Aí se poderá dizer se “Os Residentes” é o germe de uma nova tendência no cinema brasileiro atual, portanto, se justificaria como necessário, ou não passou de balão de ensaio.
Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado).