À luz do interior do Brasil
Antes distribuído pela Videofilmes, e fora de catálogo, volta a ser lançado, agora pela Bretz Filmes, “O Céu de Suely” (2006), de Karim Aïnouz. Embora tenha sido reprisado constantemente pelo Canal Brasil, portanto, um filme de que muitos não podem reclamar dificuldades de acesso, é um dado interessante ver seu novo lançamento em DVD. Assim, a oportunidade para dizer algo para o qual esse filme sinaliza e que, com o tempo, pode ser ponderado com mais vagar. Tendo chegado ao público em 2006, talvez reúna com “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), de Marcelo Gomes, sinais que indiquem um novo momento do cinema nacional pós-retomada.
O que se avizinha, num momento em que a produção nacional se diversifica substancialmente, é a preocupação em cineastas como Aïnouz e Gomes de voltar o olhar para o interior do Brasil. Mais precisamente, para captar os grandes espaços que não veem o mar, mas numa perspectiva que incorpore a experiência urbana ou, de outro modo, da costa. Assim, não se trata de um espaço incomunicável, perdido no meio do nada; pelo contrário, se trata sim de um lugar cuja presença palpável da “vida moderna”, ou do fetiche consumista, é explícita nos detalhes mais insignificantes.
Conquanto ambos tenham fundo narrativo em contextos históricos distintos (o filme de Gomes volta a ação para os anos de 1940), o interior para o qual as câmeras de Aïnouz e Gomes apontam é aquele marcado pela presença do indivíduo preso a uma realidade atávica. De um modo até certo ponto provocador, há um tanto de determinismo social no que propõem: as mudanças sociais são cosméticas, os indivíduos não escapam às condições cruéis e de miséria de seus ancestrais, malgrado poderem ter experiências que escapam à miséria a que estão envolvidos desde gerações ancestrais.
Sinceramente, não creio que Aïnouz e Gomes, deliberadamente, tenham tido intenção de trazer à tona questões de sociologia, como se propusessem filmes de “tese”, mas esse é um dado de fundo que suspeito não deva ser deixado de lado em seus filmes. Tanto quanto numa certa filmografia que vem a reboque no contexto pós-retomada. Tenho em mente, mas aqui na perspectiva da costa e não do interior, “Amor, Plástico e Barulho” (2013), de Renata Pinheiro. O deslocamento para a cidade no filme de Renata Pinheiro apenas faz ver que, do ponto de vista do indivíduo, não há mudança: os elementos atávicos nas condições de vida, de miserabilidade, de falta de perspectivas são os mesmos.
Bem, certo, em “O Céu de Suely”, há a volta da jovem que foi para sul, para a grande cidade, e premida pela pobreza, com um filho pequeno, tenta novamente a sorte, sem o pai da criança, em sua terra natal, Iguatu, no Ceará. A volta, contudo, revela que sua sorte é a mesma onde ela estiver: o que ela tem para oferecer a fim de garantir sua sobrevivência é o próprio corpo. Assim, como um bumerangue, num vai e vem, ela tenta conseguir dinheiro rifando o corpo para voltar para o sul. Nesse movimento cíclico, não há qualquer sinal de esperança, sua sina é voltar para a situação de origem; ou seja, ela se encontra condenada a viver entre idas e vindas sem que sua vida se altere.
Aïnouz, sob esse aspecto, capta com notável discernimento o quanto há de contraditório, ou de contrassenso, na incorporação de uma “modernidade” deslocada de quem está no interior do país, ou, implicitamente, nas periferias dos grandes centros urbanos. O céu de Suely, no título, é uma fantasia que não se realizará no contexto de modernização, ou de globalização, do mundo em que ela vive. Seu cabelo de corte estiloso, realçado por mechas descoloridas, realça o desconforto de sua situação: do fetiche consumista moderno ela retém tão somente o cosmético, fútil.
Assim, “O Céu de Suely” traz à baila um mundo em mutação no qual os indivíduos permanecem os mesmos. Como que, apenas na superfície, seriam diferentes do que foram seus pais e avós. Sintomático a esse respeito que, ao se estabelecer na casa da avó, aceite de algum modo a rígida moral ancestral e se desculpe pela vergonha que causa ao se prostituir. Mas sintomático igualmente, como acontece no nordeste desde tempos imemoriais, que a avó aceite de bom grado criar seu filho, enquanto novamente ela tenta a “sorte” no sul.
“O Céu de Suely”, assim como “Cinema, Aspirinas e Urubus”, volta o olhar para as contradições do interior do país de uma maneira que não só veio a influenciar alguns dos bons filmes nacionais deste último decênio, mas que, principalmente, permite lançar luz sobre as recentes eleições presidenciais. Ora, distante da lógica consumista e moralista burguesas do sul do país, Suely busca saída para sua condição numa rifa que lhe convém. Simplesmente condenar sua escolha, contudo, é virar as costas e não entender o que ocorre com metade do Brasil.
Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado)