“The Walking Dead”: faroeste apocalíptico moderno

Há quem pense que “The Walking Dead” é sobre zumbis. Isso é o de menos. Se fosse só uma série sobre matar zumbis, não atingiria tamanho sucesso. Lembro que demorei para assistir uma temporada inteira. Eu via trechos na TV. Mas a vibração era baixa. Imagens de horror na tela e muita morte a la videogame. Nada me interessava. Pensei que era coisa de público sádico. Mas o sucesso aumentava. E sei que o público sádico existe, mas não garante um grande sucesso. WD deve ter algo mais. Só entendi ao ver a temporada completa.

“The Walking Dead”, na verdade, é um grande faroeste. Dramaticamente falando, a série que mais lembra “The Walking Dead” é “Bonanza”, um faroeste dos anos 50. Cada episódio é uma genial peça de teatro sobre grandes conflitos éticos em um espaço alegórico. O mítico passado, em “Bonanza”. O trágico futuro, em WD.

Pois é claro que WD também tem o horror e segue o subgênero zumbi. Gêneros também são inventados por criadores geniais, e o filme de zumbi contemporâneo foi uma invenção de Romero, com a “Noite dos Mortos Vivos”, de 1968. Antes, existia filme de zumbi. Mas ninguém falava de Apocalipse Zumbi. Até porque, pensando bem, é meio estranho acontecer um apocalipse por zumbis. Pensem com calma: a epidemia zumbi, a priori, é facilmente controlável. E eles só têm força porque são maioria e atuam em bandos. Mas como viraram maioria? O primeiro que surgir a gente mata e ponto final. A genialidade de Romero foi se libertar dessa pergunta e criar um mundo aonde há poucos humanos e muitos zumbis. O zumbi cumpriu o papel que o índio cumpria. A conquista dos direitos humanos nos impede de matar índios, mesmo em filmes. Matar zumbis é permitido. Matar zumbis é um hobbie que preenche a demanda humana de matar imaginariamente seres que consideramos semi-humanizados. Essa invenção conquistou o público. Romero joga com isso com grande ironia, mostrando a mediocridade e as pequenezas do mundo humano e, em filmes posteriores, construindo os zumbis quase como uma massa revolucionária.

O apocalipse também é uma sensação comum a vivência do homem de hoje. Contaminados pelo jornalismo maluco e pela realidade violenta, o homem contemporâneo curte um universo onde personagens tentam se manter humanos no inferno, em meio a um mundo de zumbis viciados e violentos. Sobreviver em meio ao horror é o heroísmo moderno.

O apocalipse é o faroeste sem esperança. Tal como no faroeste, eles têm que viver num mundo inóspito. Mas, se no faroeste o mundo inóspito tem um grande futuro pela frente, em WD (e Apocalipse, em geral) a sobrevivência é sem esperança.

WD tem tudo isso, mas tem ainda mais. E esse mais é que faz a inovação da série. Dentro da tradição do faroeste, WD – em especial em suas primeiras temporadas – dialoga com o faroeste moderno.

Falando de John Ford, WD está mais para “Rastros do Ódio” do que para “No Tempo das Diligências”. A diferença é na forma como retrata o índio. Em “No Tempo das Diligências”, o índio é eminentemente não-humano e pode ser morto sem dó. Em “Rastros do Ódio”, o debate se complexifica. O “herói” é ambíguo. Ele quer resgatar a sobrinha “pura” que foi sequestrada por índios. Mas ela já virou meio índio. O que ele faz? A mata? Ao virar índio (zumbi), a sobrinha deixou de ser humana? Essa é a questão central de “Rastros de Ódio” e a questão central de WD.

Basta ver a primeira cena da série, logo na abertura. O policial chega num cenário inóspito. Vê um movimento. Olha por baixo de um carro e vê lindas sandalinhas de criança pegando um ursinho de pelúcia. Ele vai resgatar a criança. Mas vê que ela já é zumbi. Chocado, ele tem que matá-la. A tragédia é ter que matá-la. Afinal ,algo de humano tem naquela zumbi que ainda pega um ursinho de pelúcia. Algum carinho ela ainda busca. A série toda tem esse tema, por fundo. São os grandes momentos, onde a violência é debatida com profundidade. Logo a seguir, nos créditos, vemos uma fechadura que tenta abrir a porta. Quem viu a série, sabe do que se trata. É uma zumbi que toda noite tenta entrar em casa, no horário em que jantava com o marido e o filho. Alguma memória tem naquela zumbi. Um dos grandes momentos da série é o final da segunda temporada. Eles ficam numa fazenda. Descobrem que o fazendeiro mantém os parentes presos no estábulo. São zumbis. Mas ele ainda acha que pode ter algo de humano neles. Ainda tem fé. Procura a cura. Em paralelo, nosso grupo procura por toda a temporada uma criança perdida. Ainda tem fé que ela vive.

Na cena final da temporada, Rick (o protagonista com chapéu de cowboy) discute com os outros sobreviventes e decide exterminar os zumbis parentes do dono da fazenda. Abre o estábulo e mata todos. Mas a última que sai é a criança que ele procurou por toda a temporada. Foi fácil matar os zumbis parentes do outro. Mas e a zumbi que ele ama? Essa, ele hesita. Aí é que Ricky – que foi contra matar os zumbis parentes do fazendeiro – chega e mata a criança-zumbi que ele também amava. Quem viu a série, sabe a força da cena. Todos os episódios anteriores foram construídos para esse momento. Isso é fazer seriado moderno. Conseguir construir uma curva longa dessas é um dos talentos de WD. É onde entra a humanidade. Só quem é fã entende isso. Quem assiste um episódio, pensa que WD é só sobre matar zumbi. Quem assiste a todos, entende as bases da humana tragédia que WD retrata. Uma obra-prima.

 

Por Newton Cannito, roteirista, atualmente, contratado da Rede Globo.

One thought on ““The Walking Dead”: faroeste apocalíptico moderno

  • 6 de maio de 2015 em 13:59
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    Gostei bastante do que você escreveu, acho que quem presta atenção na serie consegue chegar nesse seu ponto de vista. Quanto mais assisto essa serie menos acho que é sobre zumbie. Vlw… ;D

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