Da clausura dos espaços

Uma das principais atrizes do cinema nórdico, musa de Ingmar Bergman, Liv Ullmann, chega ao seu quarto longa para cinema com “Miss Julie”, adaptado da peça “Fröken Julie”, de August Strindberg. Ullmann, mesmo conseguindo boa projeção com seus filmes, tem espaçado cada vez mais as produções de sua carreira. Entre seu penúltimo longa, lançado em Cannes, “Infiel” (2000), com roteiro de Bergman, e “Miss Julie”, lançado em Toronto, passou-se 14 anos. Nesse ínterim, trabalhou no último filme do mentor e parceiro, “Sarabanda” (2003), feito diretamente para a televisão, entre outras poucas coisas. Ullmann não parece abrir mão do estilo dos filmes de Bergman que a promoveram enquanto atriz. “Miss Julie” é um drama claustrofóbico, centrado em três personagens, que se alternam entre diálogos intensos, em poucos espaços de uma casa da nobreza. No longa, durante o solstício de verão, Miss Julie (Jessica Chastain), filha de um barão irlandês, provoca e é provocada pelo mordomo John (Colin Farrell), amante da criada Kathleen (Samantha Morton).

A peça de Strindberg foi escrita em 1888, dentro da escola naturalista escandinava, e trazia uma forte discussão sobre o darwinismo social e a ascensão da classe trabalhadora. Situada na Suécia, o embate entre Miss Julie e Jean – no filme, John – metaforizava a decadência da nobreza aristocrata e sua suplantação pelo proletariado, mais maleável às condições sociais. Ullmann se preocupa menos com essa questão, deixando-a de pano de fundo, ainda que os eventos que compõem as obras sejam muito similares. Para a cineasta, a peça de Strindberg faz um retrato da mulher um tanto problemático. Sua ideia era modernizar esse viés, ao trabalhar um drama intimista de encontro entre um homem e uma mulher.

Nesse sentido, Ullmann tem como principal trunfo suas personagens, todas riquíssimas e com várias facetas, que, com a clausura, vão se revelando e transformando a história de simples provocação. Miss Julie passa de patroa mesquinha e ignóbil, que sente prazer em pisar nos outros, para vítima da opressão machista e patriarcal, que não sabe o que fazer frente ao que lhe acontece. Já John sai da posição de homem íntegro assediado pela patroa para a de oportunista e manipulador. A questão é que a provocação entre ambos é um jogo, que mede quem é mais forte, em que a classe é apenas mais uma das ferramentas. Se Miss Julie dá uma enorme abertura para que John a corteje, é porque se coloca acima dele, que deve inclusive lhe lamber as botas. Ele inverte a situação, mas a um custo muito alto. Sua inversão permite vislumbrar sua ausência de caráter, sua obsessão em subir de posição. Nesse cenário, é Kathleen, que apenas testemunha os ensejos entre ambos, quem aparece mais leal a seus princípios, ainda que sua passividade esteja em nível de igualdade com a de Miss Julie.

Assim como em boa parte dos filmes de Bergman, a clausura do espaço faz com que os personagens precisem lidar com os problemas, com que não encontrem um fácil escapismo. O duelo tem caráter verborrágico e aponta para as diversas possibilidades de resolver as situações, mas, como nenhuma delas é ideal, a tensão aumenta, despertando acessos de loucura. Os poucos momentos fora da casa, em contrapartida, justamente as cenas melhores filmadas, com uma mise-en-scène mais apurada, funcionam como libelos libertários. O passeio pelo jardim é livre, solto, sem a repressão do espaço fechado.

Talvez seja justamente essa dificuldade de Liv Ullmann em filmar nos espaços internos, utilizando longos planos fechados centralizados nos atores, que atrapalhe “Miss Julie”. É inegável que a força do filme são os atores, todos em ótimas interpretações, e que a diretora saiba o que está fazendo nessa seara, em especial, na construção da atmosfera densa através dos embates entre os personagens. Porém, pouco consegue se desvencilhar do aspecto teatral, engessando os atores nesses espaços – e, por conseguinte, os enquadramentos. Falta, por conta disso, fluência narrativa em diversos momentos, o que prejudica o andamento do longa. Não, evidentemente, que “Miss Julie” não seja uma interessante incursão nos abismos íntimos das pessoas.

Miss Julie
(Noruega, RU, Canadá, EUA, França, Irlanda, 130 min., 2014)
Direção: Liv Ullmann
Distribuição: Imovision
Estreia: 21 de maio

 

Por Gabriel Carneiro

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