A boa safra do “cinema irrelevante” brasileiro

Um longo painel do cinema brasileiro desde os filmes mudos até a produção recente está sendo exposto numa mostra com cem títulos na Cinemateca francesa até 18 de maio próximo. No texto de apresentação da mostra (Brasil! Une histoire du cinéma brésilien), destaque para a emergência de nova geração a partir de 2010, que se iniciou nos curtas e começa a se projetar no plano internacional com as primeiras experiências em longas, e que inclui Kleber Mendonça, Marco Dutra, Fellipe Barbosa, Fernando Coimbra, entre outros. A seleção da mostra foi, de fato, generosa com a produção brasileira desses últimos cinco anos: cobriu o que de mais relevante tem sido feito no chamado “cinema irrelevante”, pois de circulação praticamente restrita a festivais.

Assim, por que se oferece com tão poucas oportunidades de ser visto para além da crítica especializada e do circulo de cinéfilos, louva-se a iniciativa da distribuidora Imagem Filmes de lançar o DVD de “O Lobo Atrás da Porta”, de Fernando Coimbra. Estreia de Coimbra em longas, “O Lobo…” foi um dos filmes de melhor recepção crítica do ano passado: entre outros, escolhido como melhor filme do ano pela Abraccine. De sorte que, como “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça, em 2013, e neste ano “Casa Grande”, de Fellipe Barbosa (para me circunscrever nesses três exibidos em Paris), “O Lobo…” parece ratificar a emergência e a força do “cinema irrelevante” brasileiro em âmbito internacional.

Inspirado em um caso real de sequestro de uma criança de quatro anos no início dos anos de 1960, no subúrbio do Rio, Coimbra propõe com “O Lobo…” uma narrativa em que se engendram certa pátina de thriller psicológico e dubiedade de pontos de vista do caso, como contado pelos envolvidos. Ou seja, “O Lobo…” ao mesmo tempo explora as possibilidades de seduzir o público, para que se mantenha atento à evolução da trama e seu desfecho, e a dimensão dúbia e conflituosa entre verdade e mentira numa teia que envolve o marido, sua esposa e a amante. Sob esse aspecto, Coimbra tem no horizonte o clássico “Rashomon” (1950), de Akira Kurosawa.

Ao puxar o caso real para o presente, Coimbra se atém, então, aos detalhes de ambiência e de cotidiano dos personagens principais no subúrbio. Assim, a câmara acompanha a movimentação dos personagens na estação de trem, na rua, no trabalho, tanto quanto exibe a maneira pela qual eles se interagem num espaço ao mesmo de indiferença, de opacidade diante do outro, e de promiscuidade fortuita. Essa maneira de acompanhar os personagens, com a câmara sempre próxima e em movimento, gera no espectador a sensação de inquietação e a ansiedade para que os fios da trama se amarrem. Enfim, Coimbra trabalha a evolução dos acontecimentos de modo que o final seja efetivamente aguardado, sem pontas soltas.

Para isso, ele segue com desenvoltura os clichês que assinalam elementos de tensão e incerteza em qualquer thriller psicológico bem sucedido. Visto exclusivamente por este prisma, “O Lobo…” merece atenção de quem busca no cinema emoções diante de uma narrativa que mantém o suspense até a cena final, quando tudo se revela sem qualquer ambiguidade, final aberto ou figuras de estilo. Mas “O Lobo…” mais se serve dos recursos de um thriller para seduzir o espectador do que efetivamente se oferece como obra que perturba à medida que traz a baila os múltiplos sentidos da verdade e da mentira quando se está diante do trágico.

Marido, mulher, amante e o sequestro da filha do casal. Cada um se coloca diante dos acontecimentos como se carregasse culpa por esconder algo importante e, concomitantemente, não conseguisse escapar do falseamento da verdade. Dessa forma, os sentimentos do triângulo nunca são mostrados com nitidez, mostrados de maneira a que o espectador seja afetado pelo que vê e se identifique com um ou outro. Porque trabalha a trama no extremo limite da dubiedade de comportamento humano em situação limite, “O Lobo…” de Coimbra exibe o quanto a fortuidade de encontros é assustadora, e o quanto a dissimulação esconde sinais de uma tragédia anunciada.

À medida que compõe os personagens de modo a que suas intenções não sejam totalmente reveladas, que estejam envoltas numa névoa de incerteza e incoerência, Fernando Coimbra realizou uma das grandes obras do cinema brasileiro recente. Nada em “O Lobo…” é de graça, por isso Coimbra exige que o espectador vá além da inquietação e ansiedade para saber o final, como as pontas do enredo se ligam. “O Lobo…” é uma obra marcante porque, como poucos filmes no cinema nacional, perscruta o reino das aparências, das mentiras casuais, que pode se mostrar tão fútil, banal, quanto apavorante.

 

Por Humberto Pereira da Silva

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