O impacto do VOD na programação televisiva: TV everywhere
O mercado de programação televisiva transmite uma quantidade de conteúdos escassa (limitada a uma grade de programação de 24 horas diárias), com altos custos relativos para distribuição desses conteúdos (custos de emissão/transmissão ou broadcasting), tendo de selecionar (entre um universo de conteúdos audiovisuais existentes) apenas conteúdos que interessem ao “grande público” para preencher sua grade.
Esse mercado, na modalidade “TV aberta”, transmite conteúdos para a “massa” e viabiliza-se basicamente pela venda de publicidade em intervalos comerciais; e, na modalidade “TV por assinatura” (ou “serviço de acesso condicionado” – SeAC), transmite conteúdos para uma “massa segmentada” e viabiliza-se pelo pagamento de valores referenciados no montante pago pela base de assinantes de pacotes que incluem o canal em questão, bem como pela venda de publicidade em intervalos comerciais (se tal canal tiver intervalos).
Tal mercado, posteriormente, passou a oferecer funcionalidades que dessem opções de horário para assistir a determinado conteúdo transmitido em sua grade, a exemplo de dispositivos para gravação de vídeo (DVRs) e de canais que transmitem o mesmo conteúdo em horários sucessivos (“pay-per-view”, “de conteúdo programado” ou NVOD: quase – near – VOD). Essas funcionalidades buscam contornar a ausência de controle do espectador televisivo sobre o horário em que assistirá ao que deseja.
Surgimento do streaming e do VOD
O desenvolvimento tecnológico do streaming, e sua aplicação à disponibilização de conteúdos (fonográficos e audiovisuais), tornou possível transmitir conteúdos em período determinado pelo próprio usuário (VOD), que os seleciona sem ou (geralmente) com o auxílio de filtros. Mais: a depender do tipo de rede fechada ou aberta (Internet) e das condições de infraestrutura disponíveis para tal transmissão, ela ocorrerá quase instantaneamente. É o caso da transmissão por meio de Internet banda larga.
Plataformas de VOD tornaram possível transmitir conteúdos em quantidade abundante (não limitada a uma grade de programação), com custos de distribuição comparativamente menores que os necessários para broadcasting e, por isso, sem necessidade de atingirem o “grande público” para serem viáveis. Com o VOD, passa a ser viável distribuir mais conteúdos para “públicos de nicho”.
Surgem os primeiros (e principais) modelos de negócio para consumo de VOD: o FVOD (VOD gratuito ou free, em que o usuário não precisa pagar para assistir aos conteúdos que lhe são disponibilizados); o SVOD (VOD por assinatura ou subscription, em que o usuário faz um pagamento periódico para ter acesso a catálogos de conteúdos); e o TVOD (VOD por transação ou transactional, em que o usuário faz um pagamento por conteúdo a que deseja assistir, independentemente de esse conteúdo poder ser assistido por ele por número limitado – como num aluguel ou rental – ou ilimitado de vezes – como numa venda ou eletronic sell through ou download to own).
Esses modelos de negócio de VOD são potencializados à medida que mais e mais dispositivos móveis passam a permitir a exibição de conteúdos por demanda.
Reação do mercado de programação televisiva ao VOD
Conteúdos originalmente transmitidos como parte da grade de programação de canais de TV passam a também ser disponibilizados por catch-up (ou replay TV), modelo em que o assinante de canais de TV por assinatura – ou o espectador em TV aberta – pode, por certo período, assistir a conteúdos originalmente transmitidos dentro da grade desses canais quando quiser, sem pagamento de valor adicional (ao valor da assinatura que já paga para assistir a tais canais) – ou gratuitamente, no caso de TV aberta.
O mercado de programação televisiva, além disso, vem adotando o modelo da TV everywhere, que consiste no acesso à programação de canais de TV (e aos respectivos serviços de catch-up) por meio de aplicativos ou de sites, a partir de qualquer dispositivo, em qualquer lugar (“everywhere”), conectado à Internet. Tal acesso pode ser oferecido (i) a assinantes de TV por assinatura previamente autenticados, sem a cobrança de valor adicional (ao valor da assinatura paga para assistir a tais canais, quando distribuídos por SeAC); ou (ii) gratuitamente a espectadores de TV aberta.
Emissoras de TV, sobretudo de TV por assinatura, valem-se do número crescente de dispositivos móveis aptos à visualização de conteúdos programados ou por demanda para, por meio da TV everywhere, manter (e expandir) sua base de espectadores.
As aplicações criadas para viabilização da TV everywhere, quando aptas à exibição de conteúdos por demanda, também podem ser utilizadas para outros modelos de negócio, entre os quais modelos de FVOD, VOD freemium (em que o acesso temporário ou parcial a canais de TV por assinatura é utilizado como estratégia para captação de novos assinantes), SVOD, TVOD/EST. Uma mesma aplicação, em suma, pode servir a diferentes modelos de negócio, cujo enquadramento jurídico varia de caso para caso.
Enquadramento regulatório da TV everywhere
Em 5 de agosto de 2015, durante o Congresso da ABTA, o Presidente da ANCINE, Manoel Rangel, declarou considerar que serviços de TV everywhere e de catch-up são extensões do serviço de TV por assinatura (SeAC). Essa declaração, bem-recebida por operadoras e programadoras de TV por assinatura, permite inferir que a ANCINE, competente para registrar conteúdos audiovisuais comunicados em qualquer janela de exibição definida por ela e para cobrar a correspondente CONDECINE Título, sempre que aplicável, não pretende cobrar nova CONDECINE para comunicação em catch-up ou em TV everywhere de um título que já tenha pago CONDECINE em TV por assinatura.
A regulação de outros aspectos do serviço de TV everywhere permanece um desafio, na medida em que é crescentemente ofertada pelas próprias programadoras de canais de TV por assinatura, por meio de Internet (rede aberta), sem distribuição por operadoras de serviços de acesso condicionado (SeAC), o que comporta entendimento de que TV everywhere não está propriamente regulamentada pela Lei 12.485/11 (não sujeita a cotas etc.). A regulamentação dessa matéria (e dos serviços de VOD em geral), por isso, depende da aprovação de lei específica, a ser proposta conforme art. 61 da Constituição Federal.
Por Gilberto Toscano, advogado do escritório Cesnik, Quintino & Salinas Advogados | www.cqs.adv.com.br