Entrevista: Sérgio Machado

O cineasta Sérgio Machado não lançava um filme desde 2010, quando chegou aos cinemas seu terceiro longa-metragem como diretor, “Quincas Berro D’Água”, realizado a partir da obra de Jorge Amado. A espera fez com que vários de seus projetos se acumulassem e ganhassem as telas entre o final de 2015 e o começo de 2016 e, como novidade, seu viés documental e uma forte temática social em seus filmes atuais. Previsto para 3 de dezembro, “Tudo que Aprendemos Juntos”, seu maior filme até o momento, estreia com distribuição da Fox, após passagem bem sucedida ao encerrar o 68º Festival de Locarno, na Suíça, já tendo sido vendido para boa parte da Europa, Turquia e Japão. O filme traz Lázaro Ramos como Laerte, um talentoso violinista que se vê obrigado a dar aulas de música em Heliópolis, em São Paulo, depois de tentativas fracassadas de integrar a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). O longa, que custou R$ 10 milhões, é baseado na peça “Acorda Brasil”, de Antônio Ermírio de Moraes, a partir da experiência do Instituto Baccarelli, projeto social que oferece formação musical e artística para jovens de Heliópolis.

Machado mostra seu olhar documental sobre a realidade brasileira em seu aspecto social ocorrido no Brasil nos últimos 10 anos, no documentário “Aqui deste Lugar”, escrito e dirigido com Fernando Coimbra, que estreou em São Paulo em outubro e deve chegar a outras praças do Brasil até o final do ano. O cineasta explica, nesta entrevista exclusiva, a polêmica em torno do filme, que acompanha três famílias de diferentes partes do Brasil que recebem o Bolsa Família. Outro documentário em fase de montagem é “A Luta do Século”, sobre a rivalidade entre os lutadores de boxe Luciano Todo Duro e Reginaldo Holyfield. E, há quatro anos, produz a animação “Arca de Noé”, em parceria com Walter Salles e a produtora Gullane, em que os bichos não são aves ou mamíferos, mas lombriga, verme, piolho, bicho do pé, lesmas, baratas, com dois ratos protagonistas.

Entre outros temas, como o processo de criação de seus filmes, Machado afirma que há algo em comum na realização de seus projetos, a obsessão. “Tem uma coisa que sempre faço, chamado livrão, que tem 500 páginas, sobre tudo. Tem uma página, sei lá, sobre a cor da cueca. Tenho uma qualidade meio doentia de obsessão. Meu grande pânico é que alguém me pergunte alguma coisa num set e eu não saiba responder. É a única maneira que consigo ficar livre para improvisar. Se eu não for tão preparado, começo a ficar nervoso, travado. Minha maneira de ficar calmo no set é inventar”, comenta.

Em 2015, Sérgio Machado completa 22 anos de carreira no cinema, iniciado em 1993, quando lançou seu curta-metragem “Troca de Cabeça”, feito em vídeo como trabalho de conclusão de curso de jornalismo, na Universidade Federal da Bahia. Parceiro dos cineastas Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, sua carreira como diretor e roteirista deslanchou quando foi convidado por Walter Salles a integrar a equipe de “Central do Brasil” (1998) atraído pela qualidade de seu curta. Desde então, são quatro longas de ficção como diretor, entre eles “Onde a Terra Acaba” (2002) e o premiado “Cidade Baixa” (2005).

 

Revista de CINEMA – Como surgiu “Tudo que Aprendemos Juntos”?

Sérgio Machado – A ideia para o filme surgiu há bastante tempo. Estava terminando de rodar uns projetos com o Fabiano e o Caio [Gullane]. A relação com eles foi incrível, adorei trabalhar com eles. Disseram que estavam com um projeto incrível e queriam que eu dirigisse e escrevesse, mas não sabiam se era muito a minha cara. Não foi amor à primeira vista. Pedi uns quinze dias. Fui para uma praia na Bahia refletir se tinha a ver comigo. Depois, passei ainda um ano na dúvida. Foi o primeiro projeto que não nasceu de mim. Comecei a brigar com o projeto e comecei a me sentir como o personagem se sente no começo, meio travado. Pensei: ‘e se travasse agora e não conseguisse filmar?’ Filmar é a coisa que mais gosto. Nunca tive crise vocacional. Com 12 anos, queria ser jogador de futebol, e a partir dos 13 queria ser diretor. O que faço desde então é ver filme pra caramba, ler sobre cinema. Em vez de fugir desse processo, resolvi mergulhar nele e escrever sobre esse medo de um dia não poder mais fazer a única coisa que sei fazer. Passamos um tempão vivendo em Heliópolis, até tentei aprender o violoncelo para frequentar as aulas. Ouvimos histórias dos meninos, dos professores, fiquei muito amigo de uma violinista da orquestra de Heliópolis, Graziela, conversávamos muito.

Lázaro Ramos, em “Tudo que Aprendemos Juntos”, no papel de um persistente músico, atuando na periferia de São Paulo. © Bia Lefèvre

Revista de CINEMA – O que o atraiu para o projeto?

Sérgio Machado – Duas coisas, acho, me pegaram. A primeira foi o fato de ser filho de músico. Meus pais eram músicos e eram duros. Minha mãe, Ieda, tocava fagote; meu pai, Antonino, trompa e estudava piano. Fui criado numa sinfônica. Estavam na universidade quando nasci, não tinham babá, então, até os seis anos, eu ficava brincando na Orquestra Sinfônica da Bahia. Nessa época, a faculdade de música da Bahia era a melhor do país. Meu pai era mineiro e foi para lá estudar. Pensei que podia ser uma coisa bacana de reencontro com a infância, com meus pais. Quando era criança, estudei todos os instrumentos, mas não tinha o menor jeito, queria ser jogador de futebol. O talento pulou uma geração e, durante as filmagens, meu filho Jorge aprendeu a tocar violino e deve entrar na Orquestra Sinfônica de Heliópolis agora. Tem três anos que está estudando, está tocando super bem. Até os 18, 20 anos, fui criado ouvindo música clássica, quase não sabia que existia outro tipo de música, mesmo música popular fui descobrir na faculdade. Foi bacana esse reencontro com a música. A outra coisa que me incomodava um pouco foi que os principais filmes brasileiros que viajam lá fora apontam para uma ideia de inexorabilidade; o Brasil como um país fadado ao fracasso. Queria fazer um filme grande e dizer que tem sim um monte de problemas e que demoramos para sair do buraco, mas, na mesma proporção que crescem os problemas, tem uma porrada de gente lutando para resolvê-los. Isso para mim é a raiz. Acho que o filme ter sido vendido tão rápido para o mundo inteiro, depois de Locarno, tem um pouco disso.

Revista de CINEMA – O filme tem quatro roteiristas. Como funcionou essa etapa?

Sérgio Machado – No começo, a Maria Adelaide [Amaral] e a Marta [Nehring] escreveram a base narrativa. A Marta foi morar lá, alugou em apartamento em Heliópolis. Então, tem muito dessa vivência dela. No processo, descobri que não sei fazer nada de encomenda. Se não for muito meu, não consigo entrar no projeto. Comecei a ficar angustiado com isso. Aí entrou esse meu medo no filme. O filme é menos sobre esse cara que vai na favela ensinar e mais sobre ele aprender e reaprender. Sou esse cara. Com treze anos de idade, filmava todos os tios, parentes. Todos esperavam o dia em que me tornaria cineasta. E se me tirassem isso? Para falar dessa coisa minha, chamei o Marcelo Gomes. Para falar sobre uma coisa muito pessoal, precisa-se de alguém para te ajudar a tirar o que está lá e para te tirar de uma zona de conforto.

Revista de CINEMA – Como foi filmar música?

Sérgio Machado – Era muito importante para mim não criar uma hierarquia: a música clássica chega na periferia e ensina os caras do hip hop, do rap. Quando fui criado, só ouvia música clássica, então, esse repertório conhecia bem. Foi muito legal entrar no universo dos grandes rappers, dos grandes músicos de São Paulo. Sempre quis que elas estivessem no mesmo patamar, por isso, buscamos Criolo, Emicida, Sabotage, Rappin’ Hood, grandes poetas populares e músicos. Nisso, descobrimos uma preciosidade, uma música inédita composta pelo Sabotage, que tinha a base sonora dele cantando, e resolvemos fazer um arranjo sinfônico, com a Orquestra de Heliópolis tocando a música. Depois, descobrimos, por gravações, que o grande sonho dele era ter uma de suas músicas tocada por uma orquestra sinfônica. A ideia era fundir esses dois mundos. Teve um crítico que falou que o filme é sobre destruir muros e construir pontes. Tem favela e cidade, música clássica e rap. A ideia era implodir esses muros e criar pontos de ligação entre esses dois universos.

Sérgio Machado, no set de filmagem, durante o ensaio de “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia em dezembro e já foi vendido para o mercado europeu. © Bia Lefèvre

Revista de CINEMA – O filme me parece, justamente, trabalhar bastante esses contrapontos: Heliópolis e o centro, a música clássica e o rap, e formalmente muitos planos abertos e muitos planos detalhes.

Sérgio Machado – Justamente. Tem uma coisa que acho que tem em todos os meus filmes, uma sensação que tenho desde criança. Quando você vê uma pessoa de longe, um cara que entrega folheto de política, uma puta do cais do porto, aqueles personagens do “Aqui deste Lugar”, ou os meninos de Heliópolis, a primeira coisa que você vê é como são diferentes de você. Você não quer nem que ela se aproxime, porque é um encontro que pode não dar certo. Acho que por isso a coisa dos planos abertos com os planos fechados, que tem muito no “Cidade Baixa” também. Quando você chega muito perto, você começa a perceber que não tem essas diferenças, que elas são totalmente superficiais. Todo mundo é igual. Todo mundo tem medo de ficar sozinho, tem medo de morrer, de não fazer sucesso, de envergonhar as pessoas que ama; todo mundo caga, todo mundo quer fazer sexo. Se tem uma coisa que acho que tem em todos os meus filmes é que se mostrar as pessoas de perto, aquela diferença tão grande do cara de longe não é tão grande assim; fazer cinema para aproximar, acho.

Revista de CINEMA – O filme também trabalha com frestas, molduras.

Sérgio Machado – É um filme sobre um cara que está aprisionado, acuado, o espaço dele vai se apertando cada vez mais. Isso é muito característico da primeira metade do filme, da escola como prisão. Esse mesmo lugar começa a ganhar outro significado mais tarde.

Revista de CINEMA – Como foi a escolha do elenco?

Sérgio Machado – Hoje, parece tão óbvio, mas o Lázaro [Ramos] nunca foi minha primeira opção. No “Cidade Baixa”, era para ter três atores negros como protagonistas. Brigaram muito para ser o Wagner [Moura]. E tinha que ser o Lázaro e o Wagner. Nesse, tinha certeza de que não deveria ser um ator negro, por conta do estranhamento do cara chegando nesse universo onde ele é diferente. Achava que não devia ser negro para não ser um “Ao Mestre com Carinho 2” (risos). Como adoro o Lázaro, é meu amigo, mandei para ele o roteiro para ele ser o músico amigo. Ele me respondeu: ‘é a história da minha vida, eu sou esses meninos, esse projeto é para mim’. Ele estava cheio de projetos, mas disse que largava tudo. Briguei com isso um tempo. Hoje, acho que dá outra camada para o filme. Entendo porque esse cara trava naquele lugar. Não tem negro tocando música clássica. O grosso da Osesp é de gringo do leste europeu. Aí você vem de projeto social, com uma expectativa enorme. Você também entende porque não é fácil para ele achar trabalho, tem que ir para escola, onde vai se reencontrar. Entre os adolescentes, metade veio da Orquestra de Heliópolis, outros vieram de projetos sociais das comunidades. Isso para mim era importante. Me interessa muito a prosódia. O Elzio Vieira, que faz o VR, era dançarino de hip hop, o Kaique de Jesus, que faz o Samuel, fez o “Linha de Passe”.

Lázaro Ramos, Alice Braga e Wagner Moura, em cena de “Cidade Baixa” (2005), produzido por Walter Salles, que marcou a estreia triunfal de Machado no longa de ficção

Revista de CINEMA – Por que o filme demorou bastante tempo para ser feito?

Sérgio Machado – Demorou um tempo para afinar o roteiro. Depois, adiamos o filme por uns oito meses por conta do Lázaro, o que por um lado foi ótimo, porque os meninos ficaram meses estudando no Instituto Baccarelli. Já sabiam tocar quando filmaram, muitas vezes tiveram que tocar pior. Teve Paulínia também. Ganhamos o edital, mas o Polo fechou e deu aqueles problemas todos. Dividimos as filmagens em blocos. O primeiro, com os meninos e com o Lázaro. Depois, demoramos quase um ano para filmarmos na Osesp, que tinha muita burocracia. Tinha também outras cenas de Lázaro, mas ele tinha uma novela. Temos também efeitos especiais muito sofisticados que tomaram um tempo.

Revista de CINEMA – Você também está em lançamento de um documentário, “Aqui deste Lugar”. Como surgiu o filme?

Sérgio Machado – Esse projeto já veio bem de mim. O primeiro trabalho que fiz na vida foi fazer locação e elenco para o “Central do Brasil”. Era estagiário, o cara que estava disponível para qualquer roubada. A primeira coisa que fiz foi pegar um carro e sair atrás do elenco pelo Brasil, e depois de locação. Fiquei famoso pelo recorde de destruir carros de locadora, por conta das estradas esburacadas pelos cafundós do Brasil. Nos testes de elenco – muitos deles entraram no filme –, pedia para as pessoas ditarem uma carta para a câmera. Eram histórias muito duras de miséria, de fome, de pessoas que deixaram o Estado para vir para o sul, a história da seca. Foi muito barra pesada. Foi o início em cinema e uma graduação em Brasil. Viajava sozinho e muitas vezes dava carona, ia conversando, ouvindo histórias. Muita gente com fome mesmo, aquelas crianças com aquelas barrigas enormes. Uns três ou quatro anos depois, fiz a mesma coisa para o “Abril Despedaçado”, em que já era corroteirista e assistente de direção. Procuramos lugares que não tinham luz, então, fomos a lugares muito profundos. Saí de Salvador e cruzei o Brasil de leste a oeste, até a fronteira com o Paraguai. O [fotógrafo] Walter Carvalho saiu de Salvador e foi para o Maranhão, com o Lula [Carvalho], que era um menino ainda. Passava o dia inteiro coberto de terra, sujo. Teve um lugar que uma senhora perguntou se não queria tomar um café, aquela coisa de hospitalidade nordestina. Aceitei e perguntei se tinha um pouco de água para lavar minha mão, meu rosto. Senti que minha pergunta não tinha causado uma boa impressão, vi que tinha perguntado alguma merda. Falei que não precisava. Mas é aquela coisa de Nordeste, daquela hospitalidade, insistiram. Lavava o rosto e a mão e o pessoal aparava, porque era a única água que tinham para beber. Aquilo representava um estado de coisas que não queria viver. Estava feliz, pois estava fazendo um puta filme, que foi pro Oscar e o cacete.

Ao mesmo tempo, foi uma experiência muito dura conviver com essa miséria e tal. Há uns três anos, o [produtor] Rodrigo Teixeira me convidou para fazer um filme sobre o Padre Cícero. Por nostalgia, resolvi pegar exatamente as mesmas estradas, ir para os mesmos lugares, e mudou completamente, parece que tinham passado cem anos e não dez anos. Isso aqui [a luz no teto] parece uma coisa normal para a gente, mas os lugares todos não tinham energia elétrica. Cheguei e os meninos tinham acesso a celular, lan house, computador. Em dez anos, o jumento virou a maior vítima, pois foi abandonado em troca da motocicleta. Tem água, energia, celular e televisão. Dei carona para um senhor, nunca esqueço, na fronteira do Piauí com o Ceará, chamado seu Chico Honorato. Ele falou: ‘você não sabe o que é viver a vida inteira na escuridão e apertar um botão e, na mesma hora, a luz acender’. Voltei para o Rio, falei com o [Eduardo] Coutinho, que era superentusiasta do projeto. Falei com o Fabiano e o Caio [Gullane], eles toparam. Foi um projeto com muitas limitações. Se “Central” e “Abril” foram uma graduação em Brasil profundo, queria que esse fosse uma pós-graduação. Uma das coisas que me motivaram a filmar essa história também foi um artigo de um economista do PSBD falando que o dinheiro para acabar com a fome no mundo é irrisório, é 10% do que se gasta em armas. A situação hoje está muito complicada, mas queria muito ser isento. Defendo, claro, que ninguém passe fome no meu país, isso é intolerável.

Cena do documentário “Aqui deste Lugar”, dirigido em parceria com Fernando Coimbra, que revela as mudanças sociais nas famílias do Brasil produndo, auxiliados pelo Bolsa Família

Revista de CINEMA – Como se deu a parceria com o Fernando Coimbra na direção e no roteiro?

Sérgio Machado – Eu e os Gullane chegamos à conclusão de que não dava para fazer tudo sozinho, era muito trabalho para uma pessoa só, ia parar minha vida dois anos. Aí me mostraram o primeiro corte de “O Lobo Atrás da Porta”, do Fernando. Vi o filme e fiquei muito impressionado. Ele compartilhava desse ponto de vista meu. Não queria falar de partido, de PT, mas que pelo menos as pessoas estão comendo. E falta muito ainda. Dividimos o filme por regiões do Brasil. Inicialmente, seriam cinco famílias. Filmamos, mas acabamos deixando apenas três no corte final. Filmei no Norte, que caiu, e no Ceará, onde filmamos mais tempo. Filmamos juntos no Piauí, que também caiu. Ele filmou São Paulo e Rio Grande do Sul. Filmamos em 2013, mas não queríamos lançar no ano passado, por conta das eleições, para não acharem partidário. Quando terminaram as eleições, achamos pior ainda (risos).

Revista de CINEMA – Como se deu a escolha dos personagens?

Sérgio Machado – Não queria ser leviano. Ele é bem simples na feitura, mas bem complicado nas operações. Eu e o Fernando queríamos que cada família fosse a média de sua região. Fomos ao Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] entender o que seria uma renda média matemática de uma família que recebia o Bolsa Família por região. De posse desses dados, fomos buscar famílias. Mandamos muitos pesquisadores pelo Brasil. O que consumiu dinheiro no filme foi isso. Primeiro, fomos eu e o Fernando na fronteira do Piauí com o Ceará, filmamos nos dois lugares, e decidimos que o jeito de encontrar as famílias seria através das assistentes sociais. Temos 140 horas de material filmado. Daria um outro filme só sobre o trabalho delas. Depois, tivemos a ideia de encontrar famílias que tivessem meninos de 16, 18 anos, época em que vão prestar o vestibular, e pensamos neles como protagonistas das famílias. Fazíamos entrevistas, íamos na escola perguntar quem tinha Bolsa Família, que eram quase todos, conversávamos, víamos se algum se destacava, se cabia na média, e só então íamos conhecer as famílias. Queríamos metade desses protagonistas homens e metade mulheres, só que não achamos protagonistas masculinos, sempre quem tocava as casas eram as mulheres. Os homens eram muito ausentes, eles praticamente passam pelas famílias, não tem responsabilidade nenhuma.

Revista de CINEMA – Por que a opção pelo estilo documental observacional?

Sérgio Machado – Primeiro, porque adoro documentários nesse estilo, irmãos Maysles, [Frederick] Wiseman. Trabalhei muitos anos na Videofilmes com o João Moreira Salles. Adoro cinema direto. E queria ser totalmente isento. Como já sou a favor de que pessoas não passem fome – foda-se se chama Bolsa Família, quem fez –, já tinha um ponto de vista. Fiquei com medo de ficar perguntando e minimamente induzir. Tentamos ser os mais isentos possíveis, achar famílias na média, mostrar o que é bom e os problemas.

Revista de CINEMA – Por que trabalhar com uma narração em off informativa sobre os programas federais?

Sérgio Machado – Quando terminamos o filme, falamos ‘legal a história, mas o que essas famílias têm em comum?’ Tinha que ter um dado que dissesse de onde partimos. Acho importante também quebrar alguns mitos. O pessoal fala que quem ganha Bolsa Família não trabalha. Não é assim nessas três famílias. Por isso, inclusive, quis visitar mil. Não estou falando de três famílias, estou falando de mil. Vi que as pessoas trabalham. A proporção de pessoas que não trabalham é a mesma na minha família, na tua, que tem vagabundo, cachaceiro, tem de tudo. As pessoas trabalham pra caralho, porque ninguém vive com 140 reais. É o bastante para você não passar fome.

Revista de CINEMA – Por que esse mote específico do Bolsa Família?

Sérgio Machado – Achei que essa mudança tem uma razão e essa razão são esses programas sociais. Queria mostrar como é ser pobre hoje, e essas mudanças se deram, queira ou não queira, por conta disso. Foda-se. Não sou do PT, até votei na Dilma. Do mesmo jeito que tem um monte de coisa para criticar, tem coisa boa. O que acho mais bacana quando pego o avião é que tem alguém do meu lado que tá lá pela primeira vez. A única coisa que quero, independente de quem esteja no governo, é que ninguém volte a passar fome.

Revista de CINEMA – Você não vê o filme como sendo governista?

Sérgio Machado – Não, de jeito nenhum. Sei lá se é. Me esforcei para que não fosse. Você vê no filme que tem um monte de problema, o pessoal come, mas come mal. A mulher trabalha, o marido não. Para mim, seria grave se o cinema não falasse isso. Seria errado, do ponto de vista ético, se fizesse um filme defendendo a diminuição da maioridade penal, porque não acredito nisso. Acho intolerável que as pessoas passem fome, acredito nisso. O projeto partiu de mim, era o filme que queria fazer.

Revista de CINEMA – Você também está, atualmente, em fase de montagem de “A Luta do Século”. Sobre o que é o filme?

Sérgio Machado – “A Luta do Século” é um filme sobre o pernambucano Luciano Todo Duro e o baiano Reginaldo Holyfield, dois lutadores que colocaram Pernambuco e Bahia em guerra nos anos 1990. Acompanhei bastante essa briga do ponto de vista baiano. Resolvi acompanhar a história desses dois caras que saíram da miséria, chegaram ao auge e voltaram para miséria.

Revista de CINEMA – Como surgiu a ideia para o filme?

Sérgio Machado – Começou de uma forma engraçada. Em 2013, estava com Lázaro Ramos e Wagner Moura, num restaurante, e falamos de fazer um filme de ficção sobre Todo Duro e Holyfield. Nós três baianos vivemos muito o período. Brincamos que Lázaro faria Holyfield e Wagner, Todo Duro. Para pesquisa, fui fazer um documentário pequeno. Só que comecei a investigar e foi ficando grande. Convidei para produzir a Joana Mariani, a Eliane Ferreira, a Diana Gurgel e o Lázaro. São quatro coprodutores, meio uma ação entre amigos. Começamos a filmar sem dinheiro, depois conseguimos captar alguma coisa. Investi no cinema direto. Havia feito isso com o “Aqui deste Lugar” e tinha curtido a experiência. Começamos a filmar durante as eleições do ano passado para presidente. Filmamos em Salvador e em Recife. Fiquei muito surpreso quando chegamos lá, porque os dois estavam muito acabados, estavam na rua, entregando folhetinho de propaganda dos candidatos. O Todo Duro sem dente, magro, e o Holyfield gordo. Queria fazer “A Luta do Século” por conta da luta dos caras que saem da miséria, batem no topo, mas como eram analfabetos, foram enganados, gastaram dinheiro – o Todo Duro era trígamo, viajava para Europa e trazia casaco de pele para as três mulheres dele –, e voltaram pro mesmo lugar. A história deles é incrível. O Holyfield salvou um sobrinho de um incêndio e queimou 60% do corpo. O Todo Duro foi confundido com um assaltante, foi espancando, e mataram um cara que estava com ele. Ele foi preso, a polícia forjou a culpa dele.

Revista de CINEMA – Em agosto, eles voltaram a lutar, depois de anos. Foi para o filme?

Sérgio Machado – No meio das filmagens, fomos visitar um antigo traficante do Nordeste, um cara que foi superpoderoso e foi preso. Ele empresariou toda a galera do axé music e os dois lutadores. Achei que seria bacana reuni-lo com o Holyfield para lembrarem a história deles. Esse traficante, na cadeia, estudou filosofia. Tudo que ele diz cita [Friedrich] Nietzsche e [Arthur] Schopenhauer. Ele sugeriu que os dois fizessem uma nova luta, porque faziam muito sucesso e estavam ambos fodidos. Holyfield tinha feito uma promessa para o pastor que nunca mais subiria no ringue, mas ficou em dúvida. Aí o ex-traficante ligou pro Todo Duro; não se falavam fazia anos. Imediatamente, voltou todo o ódio que sentiam. Achei que a ideia da luta ia morrer ali, que não ia pra frente, mas dois, três dias depois foi crescendo, começaram a se telefonar quase que diariamente para falar sobre a luta. O nome do documentário, desde o início, era “A Luta do Século” e eles acabaram usando na luta o nome do documentário. Minha primeira reação à luta foi negativa. Fiquei com medo de se machucarem, de pararem no hospital, mas não cabia a mim. A luta foi o trending topic do Twitter no Brasil por três dias, caiu a internet no Nordeste, esgotaram os ingressos, os caras chegaram de BMW, compraram casa. O documentário virou outra coisa. Passamos a acompanhar a preparação do evento. Eles voltaram ao treinamento. Achava que eles iam morrer (risos), só que continuavam forte pra caralho. Eles nunca tinham ficado no mesmo ambiente, pois onde estão, destroem tudo. Eles têm muito ódio entre si. Tem uma entrevista famosa na Globo que o baiano deu um soco e quebrou oito dentes do pernambucano, no meio do estúdio. No final, o traficante, que está louco para que faça um filme sobre ele, diz: ”Segundo Friedrich Nietzsche, uma história de tanto ódio, não passa, no fundo, no fundo, de uma grande história de amor”. E acho que é mesmo.

Revista de CINEMA – Não deve filmar mais nada?

Sérgio Machado – Se houver mesmo a oitava luta, penso em filmar para os créditos finais. Tenho quase certeza de que vai ser em Salvador e que quem vai ganhar é o Holyfield; aí vai empatar de novo. Não entendo muito de boxe, mas não entendo por que o Todo Duro ganhou esta última, para mim foi empatado. Batiam exatamente na mesma proporção. Mas tinha aquela coisa de clima. Se o Holyfield, em Recife, ganhasse por pontos, iam quebrar o estádio inteiro. Foi um resultado controverso.

Revista de CINEMA – Já tem previsão de término e lançamento?

Sérgio Machado – A ideia da gente é terminar o filme neste ano ainda. O filme está sendo montado pelo Quito Ribeiro. Vou tirar uma semana para trabalhar junto com ele no meio desse furacão de lançamento de dois filmes. Talvez finalizar no início do ano que vem, para o É Tudo Verdade.

Revista de CINEMA – Por que seus filmes tendem a trabalhar com personagens marginalizados pela sociedade?

Sérgio Machado – Acho que o Karim [Aïnouz] matou essa charada lá na largada. Vem de um desejo que tenho desde criança, de quando você passa por alguém, o cara fodido, e pensa que esse cara podia ser seu melhor amigo. É um universo onde me sinto melhor na vida. O diretor que mais me influenciou foi o Eduardo Coutinho. Lembro quando o João [Moreira Salles] me chamou para um almoço com o Coutinho e ele contou sobre a ideia do “Edifício Master”. É um dos filmes que mais me emocionou em todo cinema brasileiro. É um filme que mostra que o anônimo, aquelas pessoas para qual você não dá o menor valor, podem ter uma vida fabulosa. O artigo que gosto mais sobre um filme meu é um da Maria Rita Kehl sobre “Cidade Baixa”, em que ela fala que é ‘um épico de vidas infames’. É diferente de ter uma visão crua, que talvez o Cláudio Assis tenha. Tem uma coisa de ver esse universo com um olhar carinhoso, tentar retratar esse universo de maneira honesta e sincera.

Cena do documentário “Onde a Terra Acaba” (2001), o primeiro longa documental de Machado, dedicado ao cineasta Mário Peixoto

Revista de CINEMA – Seus filmes também têm forte apelo popular. Você escreve já pensando no público?

Sérgio Machado – O cinema que gosto, os meus ídolos máximos – Akira Kurosawa, John Ford, Howard Hawks, Billy Wilder, Federico Fellini – não são herméticos. Tento não ser hermético em nada que faço, seja nos filmes que dirijo, escrevo, nas séries de TV. Acho bem importante esse diálogo com o público. Me interessa muito ser sincero, falar de maneira franca. Faço cinema porque me interesso pelos outros.

Revista de CINEMA – Quais os seus próximos projetos?

Sérgio Machado – Além dos três, tenho vários outros. O do Padre Cícero não sei se vai rolar. Mas estamos há quatro, cinco anos, eu, Waltinho [Salles] e a Gullane, produzindo um desenho animado chamado “Arca de Noé”. A arca que me interessa é a de bichos como lombriga, verme, piolho, bicho do pé, lesmas, baratas, com dois ratos protagonistas. Não tem previsão para terminar ainda. Tem também “O Adeus do Comandante”, baseado num conto do Milton Hatoum, que estou escrevendo com ele e com a Maria Camargo. É da TC Filmes e da Gullane. Já estamos com todo o dinheiro para filmar. Demorou um pouco para sair, mas estamos ainda fechando o roteiro. A ideia é filmar no ano que vem.

Tem outro projetinho pelo qual estou super-encantado, que é um filme que o Pierre Verger rodou sobre ele mesmo, há vinte anos, com mais de vinte horas, com Dorival Caymmi, Caribé, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Ele nunca montou esse material, mas deixou várias anotações. Na época do “Cidade Baixa”, as guardiãs desse material me convidaram para montar. Não achava que estava pronto. Agora quero. Estou com o material lá em casa. Não sei se vai precisar filmar alguma coisa. Cada vez mais estou curtindo trabalhar em equipe. Acho que vai ser muito legal, vai dar muito resultado, esse negócio dos Núcleos Criativos [categoria para desenvolvimento de projetos do FSA]. Estou na Videofilmes, depois de muitos anos, com Marcelo [Gomes], Karim [Aïnouz], entre outros. Vai dar resultado daqui a cinco anos, mas sinto um estouro de qualidade nos roteiros. Tem dinheiro para filmar, mas não tem para desenvolver. E esses modelos que tinham criavam uma competição, colocavam um contra o outro, e cinema não pode ser assim. Isso foi um gol de placa do cinema brasileiro.

 

Confira o trailer de “Tudo que Aprendemos Juntos” aqui.

 

Por Gabriel Carneiro

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