Manuela Dias sem papas na língua
A roteirista Manuela Dias, baiana de Salvador, grávida de sete meses, está vivendo uma fase agitada e luminosa de sua carreira, que começou por volta de 1996, no fim de sua adolescência, quando escreveu e atuou em sua primeira peça de teatro, Soul 4, no Rio de Janeiro, que encantou muita gente. Em 2004, lançou outra peça, Madame, referenciada a Simone de Beauvoir, com direito a turnê nacional. Em seguida ,voltou-se para o cinema (Transeunte, O Céu sobre os Ombros) e para a TV, realizando um longo treinamento ao colaborar na criação de A Grande Família, Joia Rara, Cordel Encantado e outras produções da Globo.
Em 2015, veio à tona com a força de uma bola cheia de ar quente mergulhada na água. Escreveu e dirigiu Love Film Festival, longa-metragem ainda inédito sobre um amor entre gente de cinema que vai se desenrolando durante festivais em volta do mundo. Recentemente, foram estreados, com roteiros seus, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, a partir de Guimarães Rosa, e A Floresta que se Move, leitura contemporânea do Macbeth de Shakespeare, ambos dirigidos por Vinicius Coimbra. Sua parceria com Coimbra se estende com a telessérie da Globo, Ligações Perigosas, transposição para os anos 1920 da ambiguidade do romance oitocentista de Chordelos de Laclos. Como se não bastasse, está escrevendo a mininovela Justiça (apenas dois meses de duração), com estreia prevista para o segundo semestre. Também em 2016, escreverá e dirigirá um filme que a fará voltar à Bahia e… É melhor parar por aqui e deixar a palavra com Manuela, a contadora de histórias, revelação da dramaturgia brasileira, amorosa e polêmica.
Orlando Senna – Há uma celebração entre os roteiristas porque o mercado de trabalho aumentou com o número de editais públicos, o Fundo Setorial do Audiovisual, a Lei de TV por Assinatura, os Núcleos Criativos.
Manuela Dias – O incentivo à produção audiovisual é muito importante em todas as suas etapas, do roteiro à distribuição. Audiovisual é memória, instrução e uma ferramenta importante de reflexão de um povo sobre si mesmo. Mas é preciso que nós, produtores audiovisuais, tenhamos muita responsabilidade com cada centavo investido no setor. Ano passado, fui supervisora de um grupo e me chamou atenção a baixa qualidade dos roteiristas. Escrever um texto em formato de roteiro, cenas com cabeçalho, rubricas e diálogos não faz de ninguém roteirista. Ser roteirista é uma profissão que exige formação, como qualquer outra. Ninguém iria se disponibilizar para ser contratado como cirurgião sem ter estudado Medicina e feito residência, então, por que se dizer roteirista sem o devido preparo?
Orlando Senna – Fui informado que 300 ou mais roteiristas estão trabalhando neste momento no Brasil. Parece-me que é um recorde.
Manuela Dias – O mercado aumentou, mas isso não gera exatamente profissionais e sim pessoas que se dizem roteiristas. Ser roteirista virou o novo “sou ator”. Quando me informei sobre as condições dos Núcleos Criativos, senti falta de um pensamento mais exigente. Pelo que entendi, não existe o compromisso de que o roteiro seja gravado. Isso me chocou, porque sem o compromisso de gravar, qual é o estímulo/cobrança para que aquilo fique bom? Bastar escrever é pouco na minha opinião, perto do dinheiro investido. É preciso sermos responsáveis com o investimento que está sendo feito nessa iniciativa. Esse é um espaço para profissionais que devem ter proficiência e não um espaço de aprendizado. Mas é claro que existem profissionais se beneficiando desse incentivo de desenvolvimento.
Orlando Senna – O crescimento do mercado ajuda na formação de bons roteiristas profissionais.
Manuela Dias – Ajuda. O mercado é uma questão importante, mas não é a única. Não acredito que o mercado produza por si só bons profissionais. Escolas, cursos, intercâmbios culturais, horas de voo em frente ao computador e, sobretudo, ter o que dizer é o que forma um bom profissional. Essa ideia de que “não existe certo nem errado” em roteiro é uma balela na minha opinião, mas é claro que existem muitas formas certas e muitas erradas. De algum jeito, a coisa tem que funcionar com coerência, ritmo, e existem sim oportunidades dramatúrgicas a serem perdidas, como por exemplo se você apresenta mal um personagem. Outra confusão que acontece direto é uma pessoa achar que por ter experiência pessoal em algum tema, na favela, por exemplo, está habilitada a escrever sobre ele. Porém, transformar uma experiência pessoal em arte, seja ela qual for, demanda inteligência emocional, distanciamento, ou anos de análise, um talento especial etc., etc., etc. Às vezes é até mais difícil, porque a pessoa tende a se proteger do que viveu.
Orlando Senna – Em sua curta (sabemos que vem muito mais) e vitoriosa carreira deu para sentir alguma mudança nesse mercado?
Manuela Dias – Não vejo minha carreira como “vitoriosa”, mas como algo em progresso e eterna formação. Acho que o grande diferencial é sempre mais qualitativo do que quantitativo. Mas a quantidade pode abrir portas para a qualidade ao longo do tempo. O mesmo mercado que está criando essas oportunidades vai filtrar os talentos, é um processo natural. A democratização dos meios de produção audiovisual gera, em contrapartida, uma exigência maior de bons produtos. Com tanta gente produzindo qualquer coisa, se sobressair é cada vez mais difícil. Isso é a parte boa, é o desafio.
Orlando Senna – Fale-me sobre as relações diretor/roteirista no cinema e na TV.
Manuela Dias – Parceria é uma coisa fundamental, mas a palavra final acaba sendo sempre de uma pessoa – o coração que faz o projeto pulsar é um só. O parlamentarismo criativo encontra seu limite na discordância mais cedo ou mais tarde. O mais importante é que cada um faça o filme que quer fazer – e isso normalmente implica numa gama de consequências muito maior do que a que estamos acostumados a pensar. Por exemplo, se pensamos pouco no público, provavelmente, ele também vai pensar bem pouco na gente. Em cinema, normalmente, quem tem a palavra final é o diretor, em televisão normalmente é o roteirista. De qualquer maneira, quanto mais ampla for a parceria, melhor. Já realizei um filme como diretora e absorver as ideias e opiniões da equipe, que eu mesma escolhi e admirava muito, sempre enriqueceu o processo. Mesmo assim, acredito que cada profissional tenha sua especialidade. Não dá para eu me meter na direção, opinar em lente, plano etc.; não sei atuar, não sei fazer figurino ou fotografar uma cena – claro que posso opinar sobre esses departamentos do ponto de vista da dramaturgia. Da mesma forma, o fotógrafo, o diretor, o ator ou o figurinista podem ter opiniões sobre o texto, mas esse é o departamento do roteirista, é a zona onde sua opinião prevalece.
Orlando Senna – E no que diz respeito aos atores?
Manuela Dias – Para mim, os atores são superheróis. É um profissão muito complexa, de exposição direta da própria imagem e isso gera várias fragilidades e vaidades. O ator já tem muito com o que se preocupar ao interpretar um texto. Às vezes, sinto que existe uma onda de ator mudar o texto, trazer as palavras para perto da sua experiência. Mas os atores que eu admiro e com os quais tenho vontade de trabalhar fazem o caminho inverso, eles vão até o texto. Não acredito que representar seja uma tarefa fácil, dizer um texto que já existe não faz de ninguém um “títere”. Eu, por exemplo, faço cerca de dez tratamentos de cada capítulo, mesmo sendo para TV, acabei de passar quase dois anos fazendo uma minissérie de dez capítulos, pensando e repensando cada cena e cada fala. Por isso, não acredito que em cinco minutos, na correria do set, o ator terá uma ideia melhor do que a que levou dois anos para ser destilada. Assim como eu não tenho como opinar em cada inflexão ou contribuição da representação, o ator não é exatamente um colaborador de texto. O que não quer dizer que eu não escute opiniões, realmente amo trabalhar em parceria e aprendo muito com isso. O trabalho com Selton Mello foi um exemplo disso, ele estudava o texto e algumas vezes me ligou pra conversar e mudei cenas por causa disso. Com antecedência, estou sempre aberta para ouvir quem quer que seja, mas se for para mudar ou retrabalhar um diálogo, quem faz isso sou eu. Não abro mão da redação final do meu texto. Hamlet é “ser ou não ser”, muito pouca gente sabe que ele quer se vingar do tio pela morte do pai. Diálogo é pele, é o que a gente vê do roteiro. Escaleta é o osso, que sustenta tudo às escondidas. Eu aproveito muito os meus colaboradores para fazer escaleta, mas escrevo diálogo sempre sozinha. Tanto da minissérie de 10 capítulos, quanto na de 20, quanto da novela que estou começando. Para mim, é a parte mais autoral do processo. Eu gosto de escrever o nível genético da palavra, etimológico. Se escolho “entusiasmar” no lugar de “empolgar” é porque “entusiasmar” vem de “em téos” que quer dizer “com deus”, então, existem muitas escolhas embutidas em cada palavra. Pode parecer arrogância minha, mas respeito muito o trabalho de cada um e gosto que respeitem o meu também.
Orlando Senna – E a relação do roteirista consigo mesmo?
Manuela Dias – Toda relação interna é e deve ser conturbada. O espelho da criatividade é sempre um espelho mágico que revela mais do que reflete. Como está relação entre o que é relevante que seja dito no momento e o que eu quero dizer? Como falar para ser escutada? Quais histórias têm o poder de se integrar de fato a essa malha simbólica que nos ajuda a viver as questões fundamentais da vida? Essas são questões que eu me coloco a cada dia, em cada trabalho. Escrevemos e criamos porque temos certeza da morte, esse é o norte que procuro não perder de vista.
Orlando Senna – Já ouvi muitos dizerem que não existem bons roteiristas no Brasil.
Manuela Dias – Esse papo sempre me pareceu absurdo. Um país que tem João Emanuel Carneiro, Bráulio Mantovani, Carol Kotscho, Cao Hamburguer, Gilberto Braga, Mauro Wilson, Marcos Bernstein, Paulo Lins, Hilton Lacerda, Patrícia Andrade e a lista segue… Nossa, imagine se tivéssemos bons roteiristas! Talvez o que falte, no cinema, é diretor a fim de contar uma história. O Cinema Novo é a fase mais marcante da nossa cinematografia e contou lindas histórias! De “Rio, 40 graus”, a “Vidas Secas”, a “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Mas, às vezes, interpretamos mal a herança desse apogeu criativo do cinema nacional, cristalizamos a ideia errada de que o roteiro existe para cercear a criatividade do diretor. Existe uma lenda de que diretor criativo não precisa e até não deve respeitar o roteiro. Muitas vezes, o resultado são filmes sem ambição comunicativa, o que eu chamo de “cinema texturinha”, muita pele, muito poro e pouca história, poucas alças para o público se agarrar. Aí fica fácil culpar quem quer que seja pela falta de público nas salas de cinema, culpam os “imperialistas estadunidenses”, as comédias brasileiras, a burrice do povo, vale tudo, menos olhar para si e assumir que, como autor audiovisual, a verdade é que o diretor nunca se preocupou em comunicar. É claro que o retorno financeiro das comédias seduz os produtores e distribuidores, é claro que a educação de base brasileira é precária, é claro que existe uma presença massificada do cinema norte-americano nas salas brasileiras – e acredito que precisamos resistir a isso com inteligência e perseverança. Eu amo Bela Tarr, amo Tarkovski, Júlio Bressane, Glauber, Nelson Pereira, cada um tem que fazer o cinema com o qual se identifica – mas sem terceirizar as responsabilidades.
Orlando Senna – Sua relação com o espectador.
Manuela Dias – Fazer sucesso ou não é uma coisa imprevisível, mas a vontade comunicativa é algo que eu julgo essencial, ainda mais quando se faz um filme de dois, três milhões com dinheiro de renúncia fiscal, é dinheiro público. Além da vontade comunicativa, precisamos investir na questão da distribuição, porque tem muito filme com potencial comunicativo que morre na praia. Quem move o filme é o diretor e ele normalmente está realizado quando o filme fica pronto, mas ainda falta um longo e árduo caminho até o público. Temos que aprender a buscar o público, investir nos grupos multiplicadores, escolas, universidades, debates, eventos que divulguem o filme. Não basta fazer o filme. Diretores, atores, roteiristas, produtores, todos temos que investir mais nesse caminho até o espectador. Jogar a culpa no outro é sempre um jeito de não crescer, enquanto pegar a responsabilidade para si é sempre um jeito de se empoderar para mudar a situação.
Orlando Senna – Filme de arte, filme comercial. Esses conceitos significam alguma coisa?
Manuela Dias – Essa divisão entre “filme de festival” e “filme para o público” é uma noção prejudicial para o cinema brasileiro e está baseada em questões enganosas muitas vezes. Dizemos que um filme é “de arte” quando ele não é narrativo e tem poucos diálogos. Mas não ter diálogos não torna nenhum filme artístico. Esse medo da narrativa é uma bobagem. Se diálogo não é artístico, Bergman é o quê? Eu escrevo por causa dos gregos, de Shakespeare, faço filmes por causa do Kubrick, Coppola, Woody Allen, Billy Wilder, Bergman, Truffaut (muito mais do que Godard). Todos eles contam histórias. Então, qual é o problema de contar uma história? Queria fazer uma camiseta que diz: “Glauber era um gênio, mas não é um gênero”. Não existe filme “tipo Glauber”, ele foi único e cada um precisa descobrir seu jeito de fazer cinema. Ainda tem muita gente que enche o filme de caminhadas e contraplanos das copas das árvores, supercloses de pele com poro aparecendo e chama isso de “cinema de invenção”, mas não estão inventando nada. Estão só copiando o que foi feito 50 anos atrás. O cinema argentino dá um banho no brasileiro, e por quê? Porque investe em história.
Orlando Senna – Ponha um fim nesta entrevista.
Manuela Dias – Torço para que a gente amadureça como classe audiovisual, chame a responsabilidade de todo processo para as nossas mãos e tope de fato inventar alguma coisa, encontrar um caminho que faça filmes artísticos sim, mas com vontade comunicativa. O cinema é plural, com espaço para muitos tipos de filme e isso é muito bom. Precisamos descobrir nosso caminho até o coração do público. Quando isso acontecer, vai ser muito saudável para o cinema nacional.
Entrevista publicada no Caderno de Cinema, em 28/12/2015 – cadernodecinema.com.br/blog/manuela-dias-sem-papas-na-lingua.