Vaqueiro sensível
Se com seus documentários o pernambucano Gabriel Mascaro conseguiu chamar a atenção do mundo com exibições nos principais festivais do gênero, a entrada na ficção expandiu esses horizontes. “Ventos de Agosto” (2014), por exemplo, garantiu-lhe uma menção honrosa em Locarno. Seu filme mais recente, “Boi Neon”, que estreia em 14 de janeiro, passou na Mostra Horizontes, do 72º Festival de Veneza, onde levou o prêmio especial, e na seção Plataform, no 40º Festival de Toronto, tendo recebido uma menção honrosa. Em sua estreia no Brasil, no Festival do Rio, “Boi Neon” ganhou os prêmios de melhor filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante (Aline Santana). O longa é, até o momento, o projeto de Mascaro que mais mergulha na ficção, contando com atores profissionais no elenco, e disparadamente o maior orçamento, R$ 1,5 milhão, em uma coprodução com a Holanda e o Uruguai.
O filme tem como base a vaquejada, uma atividade que envolve agribusiness, shows e um esporte, que consiste em emparelhar um boi no meio seguido por dois cavalos. Um dos vaqueiros pega o rabo do boi e puxa, fazendo-o se desiquilibrar e cair no chão. Atualmente, a vaquejada continua movimentando a economia e a cultura no Nordeste brasileiro. O filme se concentra num grupo que trabalha nos bastidores. Iremar (Juliano Cazarré), por exemplo, é responsável por limpar e preparar o rabo do boi antes de ele ser solto nessa arena. Contrapondo o lado machão do vaqueiro, seu grande sonho é ser estilista de moda no Polo de Confecções do Agreste.
Um novo Nordeste
“Boi Neon” surge como um desejo de romper com a imagem que as mídias fazem do interior nordestino e reconstruir esse imaginário para os novos tempos. “Essa região foi apontada por políticos e economistas brasileiros, nos anos 60, como a ‘região problema’ do Brasil por causa do histórico de desertificação, fome, sede, fanatismo religioso e das revoltas populares. Na mesma década, o cinema e a literatura foram buscar nessa região a alegoria da luta de classes e a revolução camponesa. O Cinema Novo se apropriou da região enquanto experiência que cristalizou até hoje alguns signos de representação, como a ideia de preservação das tradições culturais, de valentia quase sacralizada e puritana do homem trabalhador e a possibilidade deste homem, culturalmente enraizado, trazer novos valores para reparar a crise identitária dos centros urbanos. Hoje, temos outro contexto no Brasil. A região cresceu economicamente de forma muito veloz, é cosmopolita, então, o filme se alicerça num cenário contemporâneo de prosperidade econômica, regendo novos signos, desenhando novas relações humanas, afetos e desejos. É um filme sobre a transformação da paisagem humana”, comenta Mascaro, que rodou o longa em fevereiro e março de 2014, durante sete semanas, nas cidades de Ameixas (PE), Santa Cruz do Capibaribe (PE) e Picuí (PB).
Para tal, Mascaro trabalha a potencialidade da cor em seus cenários, como forma de simbolizar a transformação do arcaico. Por isso, inclusive, o título “Boi Neon”, que traz o signo do antigo e do moderno, travestido como espetáculo da cultura de consumo. “A ideia foi romper com a abordagem monocromática do imaginário desértico da região. Filmamos no curto período de chuvas e incluímos vários elementos multicores para problematizar a presença da cor enquanto agente político desta transformação econômica. A cinematografia do filme foi pensada como parte do jogo coreográfico da cena, e, por isso, a câmera sempre está em sutil e constante movimento, tateando um novo espaço, mapeando o tecido humano que emana desta paisagem confusa, ordinária e surreal”, aponta.
Também interessa ao cineasta trabalhar a questão do gênero sexual, de modo a desestigmatizar seus personagens, por isso, um personagem masculino que trabalha como curraleiro, lidando com animais, mas sonha em ser estilista. Iremar é inspirado em uma pessoa que Mascaro conheceu durante a pesquisa para o roteiro. “Foi o ponto de partida para criar um personagem ficcional, que acumula esta dupla jornada que mistura no ofício a força e a delicadeza, a bravura e a sensibilidade, a violência e o afeto. No filme, proponho não necessariamente a inversão de gênero, mas a dilatação destas representações. A partir da ritualização do ordinário, tento não fazer destes deslocamentos de gênero algo sensacionalista, mas sim normalizar essas curvas”, explica Mascaro, que dirigiu também os longas “KFZ-1348” (2008), com Marcelo Pedroso, “Um Lugar ao Sol” (2009), “Avenida Brasília Formosa” (2010) e “Doméstica” (2012).
O corpo
“Boi Neon” continua a pesquisa estética de Mascaro em seus filmes híbridos anteriores, como “Ventos de Agosto” e “A Onda Traz, o Vento Leva” (2012), filmando as cenas a partir de planos abertos em sua maioria, com a câmera estática ou com movimentos suaves, em longos planos. O diretor conta que, em “Boi Neon”, o que o motivou a tomar essas escolhas e guiou sua mise-en-scène foi o corpo. “A ideia foi justamente questionar a hierarquia do corpo, seja ele animal ou humano, masculino ou feminino”, conta. Durante a pesquisa de roteiro, nas vaquejadas, o cineasta se deparou com “uma ética corporal muito curiosa”, que distinguia cavalos e bois, fazendeiros e peões. Nos bastidores, vaqueiros limpam o rabo do boi e soltam o boi na pista. Dois cavaleiros seguem o boi montados a cavalo. Um assistente pega o rabo do boi e passa para o cavaleiro principal, que, em velocidade, puxa o rabo do boi e faz o animal se desequilibrar na areia dentro de uma faixa branca.
“Percebi nesse ‘esporte’ uma certa evidência da hierarquia social brasileira materializada nestes corpos, e diante da repetição do mesmo movimento notei a ideia de ritual e coreografia. Então, me surgiram várias perguntas sobre como abordar politicamente o corpo. Como filmar o corpo? Qual a distância entre a câmera e o corpo? Pensar a distância, para mim, é uma das questões mais importantes no cinema. Tento iluminar este tema de forma que o filme possa revelar novos contornos, novos relevos, novas erupções, mostrando tanto a violência e o prazer habitando no mesmo corpo. A câmera perscruta os espaços em seus lentos movimentos em busca dos personagens de forma a encontrar o lugar do corpo, mais do que o lugar do rosto. Aproximar a câmera neste filme era um gesto de esvaziamento. Os planos gerais devolvem aos personagens a ideia de força, presença, resistência”, complementa.
Atores
Em “Ventos de Agosto”, Gabriel Mascaro contou com Dandara de Morais no elenco, mas trabalhar essencialmente com atores profissionais é novidade para o cineasta, que está em seu sexto longa-metragem. No elenco de “Boi Neon”, estão nomes como o global Juliano Cazarré, com forte presença no cinema, e a musa do cinema pernambucano Maeve Jinkings. “Como venho do documentário e das artes visuais, trabalhar com atores desse porte foi um grande exercício de deslocamento. Fui assistido por Fátima Toledo. Tínhamos um grande desafio, que era a duração das cenas, então, tivemos um trabalho muito meticuloso para coreografá-las e ao mesmo tempo deixá-las porosas”, comenta.
Mascaro conta também com Vinícius de Oliveira, a revelação de “Central do Brasil” (1998). “Tentei imaginar como seria a vida do menino Josué, que, por causa de um acidente com sua mãe, tem seu êxodo rural interrompido. E o próprio ator que encarnou o ‘Central do Brasil’ e cresceu no Nordeste ao som do forró eletrônico convive com a cultura do ‘Boi Neon’”, aponta.
Trabalhar com atores famosos na televisão teve seus custos de produção. O filme mistura sets ficcionais com lugares reais. Enquanto os bastidores foram filmados em cenários montados, as arenas onde os bois são derrubados foram filmadas em eventos reais, com os atores contracenando naquele meio. “Nesses momentos, o áudio precisou ser refeito, pois o fora de campo é um grande coro em voz alta chamando os atores pelos seus personagens nas novelas”, conta.
Mascaro ainda não tem um próximo projeto definido para cinema; tem colhido os frutos do sucesso de “Boi Neon”, viajando sem parar por festivais do mundo todo, desde que o apresentou em setembro, em Veneza. Mas já prepara seu próximo trabalho de artes visuais, um ensaio fotográfico intitulado “Desamar”, uma pequena cartografia do desafeto em tempos de papel fotográfico, em que coletou fotografias com cabeças decepadas pelos seus pares.
Assista ao trailer do filme aqui.
Por Gabriel Carneiro
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