O renascimento do fazer cinema em Goiás

Jovens em fuga de uma pequena cidade do interior, o reencontro de um casal na Chapada dos Veadeiros, um romance num hotel em Buenos Aires, o sonho de uma viagem para o Alasca. Essas são algumas das histórias que o novo cinema goiano está querendo contar em quatro longas-metragens de ficção que estão em fases diferentes de produção e que, espera-se, ajudem a revelar possibilidades de novos olhares e sensibilidades, rompendo a barreira da concentração da produção audiovisual brasileira.

Embora não perca as raízes de vista, o cinema goiano que está prestes a aparecer na telona não se restringe ao terreno conhecido do pequi ou do meio rural, nem se ancora em bastiões regionalistas, como a literatura riquíssima de Bernardo Élis. Não por acaso, três dos quatro filmes dessa nova safra são de roteiros originais e têm entre os temas a questão do espaço e do movimento. O cinema em Goiás, com exceção dos curta-metragistas sempre atuantes, teve seu grande momento com João Bennio, mineiro que se radicou no Estado no começo dos anos 60 e atuou, como diretor, produtor ou ator, como protagonista de um pequeno ciclo que deixou saudades, em filmes como “Simeão, o Boêmio” (1969) e “O Azarento, um Homem de Sorte” (1973). Desde então, não se via tantas produções locais em andamento, e que promete mudar um pouco a história do cinema em Goiás daqui para frente.

Pedro Novaes, diretor de “Bem para Lá do Fim do Mundo” e “Alasca”, busca temas existenciais para seus filmes

Entre os novos diretores, o cineasta Pedro Novaes, diretor do documentário “Cartas do Kuluene” (2011), está com dois longas de ficção em andamento. “Bem para Lá do Fim do Mundo”, um road movie filmado no início do ano passado, acompanha um casal que decide fazer uma viagem pela imensidão da Chapada dos Veadeiros, um paraíso ecológico no nordeste do Estado. E “Alasca”, que deve ser rodado no segundo semestre deste ano, narra a espera de um outro casal que quer sair de Goiânia para se jogar na estrada: o objetivo, nada simples, é uma viagem por terra até o gigante gelado.

Outro filme, que já está em montagem, é “Hotel Mundial”, de Jarleo Barbosa, rodado no início do segundo semestre de 2015, e que se passa numa pequena hospedagem em Buenos Aires, onde um goiano e uma portenha dividem um sentimento de deslocamento que vai além das fronteiras oficiais. Jarleo e Pedro são parceiros, especialmente, na preparação de roteiros. Já em pré-produção, o longa “Dias Vazios”, de Robney Bruno, é uma adaptação do livro homônimo do jovem e premiado escritor goiano André de Leones, sobre um dilema comum de jovens de interior: permanecer na terra natal ou tentar a vida na cidade grande. O longa, vencedor de um BO do MinC, que garante sua produção, está em fase de escalação de elenco.

Jarleo Barbosa, diretor de “Hotel Mundial”, com partes filmadas em Buenos Aires, aposta em um drama sobre deslocamentos e desajustes amorosos

A solidão no fim do mundo 

Desde “Cartas do Kuluene”, que Pedro Novaes, de 40 anos, diretor e roteirista de cinema e TV, vinha desenhando seus projetos de ficção. O documentário narra o encontro entre a civilização e os povos indígenas do centro do país por meio da troca de cartas imaginárias entre o anarquista francês Paul Berthelot, que viajou na região do vale do Rio Araguaia, na primeira década do século 20, e Buell Quain, um antropólogo norte-americano que conheceu os índios Krahô, no Maranhão, no final dos anos 30. Às duas narrativas, se mistura ainda mais uma, a do próprio Pedro: filho do jornalista e documentarista Washington Novaes, o diretor colocou no filme suas próprias impressões e sentimentos acerca do tema.

Com sua produtora, Sertão Feelmes, Pedro conta que, para rodar “Bem para Lá do Fim do Mundo”, teve de adaptar um orçamento apertado de R$ 170 mil, recursos obtidos via Lei Goyazes de Incentivo à Cultura, além de muito planejamento. “Foi tudo muito bem ensaiado e contamos com um preparador de elenco, o Fred Foroni. Porém, como se trata de um road movie, tínhamos de estar abertos à improvisação”, conta o cineasta. Outra abertura para não deixar o filme engessado foi a interação de personagens reais que vivem na Chapada com o elenco da produção. “Bem para Lá do Fim do Mundo” já deu o primeiro passo para o processo de finalização e o primeiro corte da montagem já foi feito. Para concluir o filme, no entanto, Pedro Novaes vai batalhar por recursos de finalização.

“Depois disso, vamos pensar a distribuição. Não imagino um grande público para o filme, mas acredito que ele tem um bom potencial, afinal, não se trata de algo hermético. Ele conta uma história”, avalia o diretor, que pretende lançar o longa-metragem no segundo semestre deste ano. O projeto é uma coprodução entre Sertão Feelmes, Panaceia, Mandra Filmes e Tá na Lata, todas, produtoras de Goiânia.

Os atores Rafael Sieg e Bela Carrijo, em “Bem para Lá do Fim do Mundo”, de Pedro Novaes, em fase de montagem, sobre o reencontro de um casal em viagem pela imensidão da Chapada dos Veadeiros

Pedro Novaes, neste momento, também se dedica à pré-produção de “Alasca”, outro longa de ficção. Assim como “Bem para Lá do Fim do Mundo”, o roteiro desse segundo projeto é assinado em parceria com Jarleo Barbosa. “Alasca” é uma produção mais ambiciosa, ao menos para os padrões locais, e tem orçamento de R$ 1 milhão. De certa forma, há um parentesco com “Bem para Lá do Fim do Mundo”, pois tem como ponto de partida a história de um casal que vive em Goiânia. O argumento narra o sonho de uma viagem para o Alasca, mas como eles querem chegar lá por terra, a jornada será bem complicada – na verdade, quase impossível, pois os personagens praticamente se paralisam com os planos para a empreitada. O filme deve ser rodado no segundo semestre deste ano. “Nossa curta estrada já nos mostrou que precisamos descobrir um cinema adequado às nossas condições de produção – o que, no fundo, é a mesma inquietação que movia o Cinema Novo e que deve mover todo cineasta honesto consigo mesmo, seu lugar e seu tempo”, relata Pedro Novaes.

Fazendo o milagre do orçamento de curta se transformar em longa

O cineasta Jarleo Barbosa, de 30 anos, tem no currículo um dos curtas mais premiados da produção recente de Goiás: “Julie, Agosto, Setembro”, uma deliciosa ficção sobre uma estudante francesa que passa uma temporada de intercâmbio em Goiânia. Além de direção de programas de TV, como “Arquitetura Verde” para o canal + Globosat. O estranhamento do estrangeiro, real ou metafórico, também é o mote que conduz a narrativa de seu primeiro longa, “Hotel Mundial”, rodado em poucos dias em Buenos Aires, em 2015, e que se encontra em fase de edição.

O filme conta a história de um relacionamento à distância entre um goiano e uma portenha. Sofia está hospedada no hotel do título, enquanto procura um novo lugar para morar em Buenos Aires e, por isso, se sente uma estrangeira em sua própria cidade. Seu namorado estrangeiro, o goiano Antônio, sai do Brasil para visitá-la. “Quando eles estão, enfim, juntos, percebem que o que os separa está além dos quilômetros e que é justamente quando estão pertos que um abismo se abre entre eles”, explica o diretor.

O projeto começou como um curta-metragem, com recursos da Lei Municipal de Cultura de Goiânia e da Lei Goyazes do governo de Goiás. “Foi só no decorrer das filmagens que percebemos que aquela história precisava de mais tempo para ser contada. Então, basicamente, rodamos um longa-metragem em outro país com o orçamento de um curta”, comenta Jarleo, que atualmente está em busca de mais verba para finalizar o filme.

“O filme se ancorou muito no processo de pesquisa e preparação como princípio de criação. Os atores se tornaram colaboradores diretos na construção da história e acabaram por assinar o roteiro junto comigo e com o Pedro Novaes”, acrescenta Jarleo. “Como esse é meu primeiro longa, sinto que ele culmina uma série de questões que eu vim cultivando nesse meu tempo fazendo curta-metragem e trabalhando na TV. Um interesse cada vez maior por uma trama mínima, poucas locações e, sobretudo, pelo estabelecimento do ator como centro absoluto do drama”, observa o diretor.

Migrações juvenis

A pequena Silvânia, no interior de Goiás, é o ponto de partida da trama de “Dias Vazios”, primeiro longa-metragem do diretor Robney Bruno, premiado com curtas de ficção, como “O Bilhete”. Adaptação do romance “Hoje o Dia Está Morto”, do também autor goiano André de Leones, a ideia central gira em torno de jovens que vivem em cidades pequenas e se questionam sobre o desafio de procurar novos rumos.

Robney Bruno conta com um prêmio de R$ 2 milhões do Prodecine/FSA, para bancar o longa “Dias Vazios”, já em pré-produção para ser rodado no segundo semestre

O roteiro, de autoria do próprio diretor, vem sendo escrito há oito anos e, ao longo desse período, Robney participou de vários laboratórios de desenvolvimento de roteiros, como o Novas Histórias, em Campos do Jordão, e o Roteiro Avançado, na EICTV, em Cuba. “A cada novo tratamento, o roteiro vem ganhando novas camadas e se encorpando, pedindo espaço, amadurecendo, como se fosse um embrião que pedisse pra nascer. Em Cuba, percebi que, como roteirista, não sou eu quem deve decidir o destino dos personagens, mas eles próprios”, teoriza o diretor.

“Se fizermos uma viagem de carro pelo interior do Brasil, podemos perceber várias corruptelas à margem das rodovias que, apesar do progresso, parecem ter parado no tempo. O que fazem os jovens que vivem ali? Quais os seus sonhos? Certamente, a maioria opta em abandonar o local e vai tentar a sorte nas cidades grandes”, observa Robney. Mas e aqueles que, por alguma razão, ficam? Qual a sorte que o destino lhes reserva? “O livro tem um clima meio sombrio e é muito pessimista. Este foi o desafio, como transformar esta história em algo que agrade o público”, conta o diretor.

O filme será rodado inteiramente na cidade de Silvânia, onde se passa a história original do livro, com uma pequena inserção de uma cena do Rio de Janeiro. “Atualmente, estou praticamente morando na cidade, vendo locações, visitando pessoas que inspiraram a história, conversando com seus moradores”, diz o cineasta. As filmagens devem acontecer nos meses de julho e agosto deste ano e o elenco será escolhido entre atores não profissionais. O projeto foi contemplado pelo FSA/Prodecine, com R$ 2.040.761,80.

Uma equipe pequena é um conceito que faz parte do projeto desde sua gênese, o que, acredita Robney Bruno, vai permitir uma maior flexibilidade de organização e improviso. “Todos os diretores criativos do projeto serão levados a refletir, a partir do roteiro, qual a maneira mais adequada para se contar essa história. Esses diretores são formados, em sua maioria, por profissionais experientes de Goiânia, mas que saíram e foram estudar fora. Agora, com a oportunidade deste longa e depois destes anos todos, estamos tendo a chance de mostrar o que aprendemos”.

Robney, que cresceu assistindo a filmes de aventura e de ficção científica, só foi estudar os grandes diretores e os clássicos quando decidiu se aprofundar em cinema. “A partir daí, fui seguindo essa linha de um cinema mais autoral e menos comercial. Pra este filme específico, estou usando várias referências do cinema europeu, entre eles, o francês, o iraniano e o georgiano”, destaca.

Para Robney Bruno, fazer cinema em Goiás sempre foi um trabalho de resistência e guerrilha e, ao longo dos anos, viu muitos colegas desistirem. Ressaltando a importância de programas, como via Ancine e FSA, para poder fazer seu longa sem ter que ir para São Paulo ou Rio de Janeiro. “Me associei a uma produtora local e os resultados estão aparecendo. Além do longa, estamos desenvolvendo vários projetos, entre séries de TV, animação e novos roteiros de longas-metragens. Tudo isso via Ancine/FSA”, elogia.

 

Por Rute Guedes

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