Violência gratuita como forma de impacto
Escolhido para representar a Áustria numa vaga no Oscar, com previsões positivas, “Boa Noite, Mamãe” é a estreia no longa de ficção da dupla Veronika Franz e Severin Fiala. Antes, haviam realizado o documentário “Kern” (2012), sobre o ator e diretor austríaco Peter Kern. “Boa Noite, Mamãe” procura, nos códigos do gênero horror, elementos para conduzir uma história sobre limites e (falta de) comunicação. No longa, em uma casa de campo isolada, os gêmeos Elias (Elias Schwarz) e Lukas (Lukas Schwarz) recebem de volta sua mãe (Susanne Wuest), após uma cirurgia plástica. Porém, os meninos não reconhecem a mãe por debaixo das ataduras.
Franz e Fiala constroem uma interessante atmosfera. O longa começa com uma cena em imagem de arquivo dos Von Trapp cantando, que hoje parece muito deslocada da realidade. Em seguida, os gêmeos aparecem correndo pelo milharal, brincando. Somos apresentados àquele universo pela perspectiva dos garotos. A aparência tétrica da mãe, coberta de ataduras no rosto, com olhos afundados, sem um traço sequer de bondade, aponta para o estranhamento que a figura causa nos jovens. Ela diz ser a mãe, mas nada parece comprovar isso. À medida que o filme caminha, essa mulher se mostra muito diferente do que se espera de uma mãe e da mãe pela qual os garotos nutrem enorme carinho. Ela briga constantemente com eles, nega-se a falar com um dos meninos, manda-os ficarem quietos, brincar do lado de fora apenas, enquanto se fecha em seu quarto. Nunca sabemos ao certo o que ocorre com aquela mulher. Os gêmeos, que dialogam com frequência demonstrando seus receios frente à figura materna, veem-na como alguém que tomou posse do corpo da mãe; tudo o que querem é a mãe de volta.
Esse constante estranhamento que sentimos na primeira parte do filme se dá muito por conta do silêncio que reina entre os personagens. Eles pouco falam entre si. A mãe é fria e direta em suas conversas. Lukas apenas gestualiza ou cochicha no ouvido do irmão. Elias é o único que desenvolve mais as palavras. A tensão gerada pela presença sinistra da mãe na casa reflete-se muito em como esse silêncio, ou melhor, ausência de diálogo se constrói. A impressão que se tem é que eles não se entendem, não sabem se comunicar. Se a mãe não fosse tão ensimesmada naquele momento, possivelmente, essa dúvida teria se esvaído. Ela não parece interessada em tentar compreender o que os filhos estão sentindo, em lhes dar um mínimo de conforto. Eles mesmos parecem não se entenderem entre eles, tomando atitudes mais agressivas que parecem contra o princípio de Elias. Essa ausência de diálogo é refletida num sonho em que colocam no rosto da mãe, enquanto ela dorme, um dos crustáceos isópodes que colecionam – parece um tatuzinho grande. O bicho entra na boca da mãe e por lá fica.
O ponto de virada no longa ocorre após uma visita pelo vilarejo. Os meninos encontram, num bizarro ossuário local, um gato, que logo adotam. O gato, a vida que encontram no meio da morte e que serve para contrapor a angústia provocada pela mãe, causa uma celeuma na casa. Ela havia proibido animais. Eles levam o felino mesmo assim e o escondem, o que, obviamente não dura muito. Um ato de violência rompe com a paz armada entre eles.
O que se sucede a esse episódio é a inversão de nossa perspectiva sobre a relação dos garotos com a mãe. Se, até então, também estranhávamos a conduta da mãe e, dentro da lógica do cinema de horror, passamos a aceitar que aquela mulher pode sim não ser a mãe dos garotos, ficando do lado deles no confronto, passamos a duvidar das atitudes dos meninos. Eles resolvem tomar a dianteira e encontrar a mãe a qualquer custo, convencidos de que aquela mulher não é de fato a mãe deles. Num misto de desespero e inconsequência, dominam-na e a agridem, em busca de respostas. Fiala e Franz, que é esposa e roteirista dos filmes de Ulrich Seidl, produtor de “Boa Noite, Mamãe”, buscam em cenas grotescas de violência gratuita o choque e a tensão, de forma a inverter nossa percepção sobre os garotos.
Nessa segunda parte do filme, em que os meninos viram os monstros, discute-se os limites éticos e morais da tortura, se há qualquer justificativa para como agem, por mais que tenhamos a noção de eles não saberem exatamente o que estão fazendo. Para um país que nunca exorcizou ao certo o fantasma do nazismo e de Hitler, as ações medievais desses garotos parecem afrontar para uma normalidade do ato. Eles nunca questionam suas ações; apenas repetem estigmas de uma violência caduca que os imobilizou frente à incomunicabilidade da mãe – quase como um reflexo direto por aquele passado recente nunca ser falado, retrabalhado, ressignificado. O nazismo ainda paira como uma assombração.
O problema é que, adeptos do torture porn, subgênero que virou moda dez anos atrás e já caiu em decadência há cinco, Franz e Fiala, mesmo não se mostrando coniventes com a atitude de seus personagens, optam por explorar longamente o grafismo da violência, em longos planos gratuitos e desnecessários para a história, para além de um sensacionalismo abjeto das cenas, como se, só assim, elas pudessem ter um impacto no espectador.
Boa Noite, Mamãe | Ich seh, Ich seh
(Áustria, 100 min., 2014)
Direção: Veronika Franz e Severin Fiala
Distribuição: Playarte
Estreia: 10 de março
Por Gabriel Carneiro