O silêncio da natureza
O cineasta e animador holandês Michael Dudok de Wit é responsável por um dos mais belos curtas realizados nos últimos vinte anos, o poético “Father and Daughter” (2000), vencedor do Oscar. Sua estreia no longa-metragem só se dá agora, quando já sexagenário, com “A Tartaruga Vermelha” (2016), prêmio especial do júri na mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes. O filme só aconteceu por insistência da companhia japonesa Studio Ghibli, que se ofereceu para produzir qualquer projeto de Wit, dando ao cineasta carta branca para a execução do trabalho. O resultado abrange a fantasia das produções da Ghibli e o minimalismo da encenação de Wit.
Existe, no longa, um desejo aparente de Dudok de Wit de simplificar a trama em prol dos sentimentos e das sensações de seus personagens a partir da interação com o mundo que o rodeia. Talvez, por isso, restringir o microcosmo a uma ilhota deserta, em que seu protagonista, um náufrago que não consegue deixa-la, impedido por uma força da natureza, precisa aprender a conhecê-la para nela viver. Tudo o que o náufrago quer é sair da ilha, voltar para o mundo de onde veio, para a civilização, mas algo o impede. A tartaruga vermelha gigante, ao destruir suas jangadas, força o homem a olhar para sua volta e a entender que o que lhe ocorreu não foi uma tragédia. Existe uma violência evidente ali, a ideia de incontrolabilidade do mundo que sempre põe à prova o cartesianismo do ser humano e sua necessidade de organizar as coisas – estar naquele ambiente não foi sua escolha, assim como não quer a permanência; lhe é uma condição imposta por uma força maior.
Tanto que, apenas quando esse homem descobre a serenidade para enxergar o efeito de seus sentimentos mesquinhos, ele avança para outro plano. A ilha talvez represente um santuário, o Olimpo ou mesmo uma ideia de purgatório, em que o náufrago precisa encontrar a paz interna para seguir. E isso só ocorre quando aprende a não tentar se impor contra a natureza. O filme não traz a priori um discurso ecológico. O homem não destrói a natureza. Existe, porém, uma noção inerente, para o sujeito, de que é maior que a natureza, que pode dominá-la, superá-la, como se fosse um obstáculo – um discurso tão antigo quanto a literatura.
Dudok de Wit aponta para um cenário em que homem e natureza não estão em lados distintos no mundo, mas fazem parte do mesmo cerne. Não existe um sem o outro. Vemos um desejo de comunhão harmônica. O náufrago que se une em conjunção carnal com a tartaruga, representada pela mulher misteriosa que aparece um dia na ilha, assinala a equivalência entre ambos, homem e natureza enquanto um só.
Por isso, o cineasta não se furta a apresentar a ilha em seu cotidiano: as ondas do mar chegando à praia, o farfalhar das folhas das árvores, o percurso dos caranguejos, o revoar das gaivotas, o nado das tartarugas, o estar dos astros que iluminam as noites. Wit abdica das falas, do verbo. A língua comum à natureza seria outra, os gestos, as interjeições. A simplicidade de seus filmes está em deixar o drama ao seu essencial, ao que lhe parece realmente necessário nesse processo de fabular. A economia vale para a própria forma do filme: animação tradicional em 2D, planos longos, tempo morto. O belo desenho de Wit aposta em tons pastéis e numa textura granulada que a aproxima da pintura.
Em tempos em que prevalecem o visual 3D, o movimento frenético e a necessidade da edificação no fim da trama, Dudok de Wit aponta para uma resistência. Não precisa justificar nenhum ato de seus personagens. Há, ali, uma ideia de ciclo da vida, da natureza imortal, que sempre se renova, eterna, ainda que se precise recomeçar. Acontece com o náufrago que constrói uma nova vida na ilha, com a paisagem que renasce após o tsunami. A morte, a partida, é naturalizada, pouco dramatizada, porque faz parte, justamente, da natureza. E, nisso, tudo há algo maior. Michael Dudok de Wit parece nos dizer que, enquanto o homem tenta encontrar a imortalidade em nossos tempos científicos, não entendeu que a vida é justamente feita de eternos recomeços.
A Tartaruga Vermelha | La Tortue Rouge
França/Japão/Bélgica, 80 min., 2016
Direção: Michael Dudok de Wit
Distribuição: Sony Pictures
Estreia: 16 de fevereiro
Por Gabriel Carneiro