Guédiguian cai no twist em filme ambientado numa África revolucionária

Por Maria do Rosário Caetano

O psiquiatra e revolucionário caribenho Frantz Fanon (1925-1961) refletiu em seus escritos sobre o peso da tradição em processos revolucionários. O criador de “Os Condenados da Terra” e grande estudioso do colonialismo, costumava lembrar as dificuldades enfrentadas durante processos de mudança radical – caso da Revolução Argelina dos anos 1960 – ao tentar mudar hábitos arraigados na mente e corpos de seus habitantes.

Quem viu “Sem Ursos”, novo filme do iraniano Jafar Panahi, deparou-se com o peso brutal de tradições passadas de geração em geração (o “direito adquirido de posse” de rapaz sobre moça que amava a outro). Quem tenta romper com tais costumes acabará pagando alto preço.

Quem, na Semana da Consciência Negra (20 a 27 de novembro) for assistir ao filme “Mali Twist”, de Robert Guédiguian, também irá deparar-se com o peso de tradições familiares sobre uma jovem africana (as mulheres acabam sendo as maiores vítimas), de nome Lara (Alice da Luz Gomes). Ela foi “vendida” pela família a homem a quem mal conhecia (nem poderia amar). Ele pagou o dote exigido pelos pais da moça e, contra todos os desejos dela, a desposou e a possuiu.

Lara, porém, não abandonou sua inquietação, nem desejo de mudar de vida. Três meses depois do casamento arranjado deixou o vilarejo, escondida na carroceria de pequena camionete, usada por jovens revolucionários para pregar a nova ordem (os princípios do Socialismo) junto aos camponeses.

No caso malinês, a trama se passa não no tempo presente (como o filme de Panahi), mas em 1962, dois anos depois do país africano libertar-se do jugo francês e experienciar processo de revolução de moldes comunistas.

A trinca de jovens, liderada por Samba (Stéphane Bak), generoso e devoto da revolução, percorre vilarejos poeirentos tentando convencer os moradores do campo a adotarem a produção agrícola em processo cooperativo, a dividir a colheita entre todos, a lutar pelo desenvolvimento de uma nação o mais igualitária possível. Até o pai de Samba, um comerciante abastado da capital, tenta apoiar a revolução. Mas nada é tão simples quanto parece.

Quando Samba e seus dois amigos, arautos da Nova Ordem Socialista, descobrem Lara, escondida sob a lona, na camionete, pensam em devolvê-la à vila de origem. Ela conta que foi “vendida” em troca de dote a um homem que não ama e que ele a estuprou. A moça quer porque quer regressar a Bamako (capital malinesa), onde vivia até que seu matrimônio fosse arranjado pelo pai e irmãos.

Tão jovens quanto Lara, os três comissários da Revolução resolvem deixá-la em Bamako, centro nevrálgico da ex-colônia. Só que ela não consegue alojar-se onde esperava. Um dos amigos de Samba propõe que a moça divida o quarto com sua irmã adolescente, que ama dançar twist e rock’n roll.

A ideia do vigésimo-quarto longa-metragem do cineasta francês, de origem armênia, Robert Guédiguian nasceu de uma fotografia. Ele encantou-se com a vitalidade e alegria que exalavam da imagem produzida pelo fotógrafo malinês Malick Sidibé. Nela, dois jovens dançavam com imenso prazer, ele de terno branco, ela descalça. Enfeitiçado pela fotografia, Guédiguian, em parceria com Gilles Taurand, escreveu a história de dois jovens apaixonados em pleno processo revolucionário. E fascinados, como a juventude de então, pela dança, o twist, que ocupava a todos em noitadas que iam até o raiar de um novo dia.

Como, no tempo presente, o Mali (país próximo ao Magreb africano com 20 milhões de habitantes) vem enfrentando graves turbulências políticas e grandes males sociais (fome, alta mortalidade infantil e processo de desertificação), Guédiguian quis situar sua história na ex-colônia francesa.

Resolveu, porém, escolher os anos que se seguiram à independência (conquistada em 1960) do pobre país, cravado entre a Mauritânia e o Senegal (e sem acesso ao mar). Aos tempos atuais, marcados por golpe militar, ele só dedica os minutos finais do filme (com uma elipse de quase 60 anos). O que vemos ao longo de 120 minutos (num total de 129, que voam, de tão febris e plenos de vitalidade) é a complicada história de amor de Samba e Lara. Ninguém espere, porém, uma love story romântica. Guédiguian é um homem de esquerda e, como Luis Fernando Verissimo, um devoto de Nossa Senhora do Contexto.

Em ótima entrevista a Begoña Piña (“Público”, julho de 2022), traduzida pelo site da UniSinos (Universidade do Vale dos Sinos, no RS), Guédiguian conta que buscou o “momento comunista” do processo revolucionário, aquele composto “por instantes de exaltação e alegria”, que, segundo entendimento dele, devem ser reavivados constantemente. Senão tais “momentos” desaparecem. E são substituídos pela burocracia, entre outros males.

Nos últimos anos, o cineasta da ensolarada e portuária Marselha vem banhando seus filmes com revigorantes bom-humor e alegria. A maioria deles ambientada em sua cidade natal e com atores jovens que chegavam para somar-se a seu trio-de-intérpretes-fetiche: a mulher e atriz Ariane Ascaride e os incríveis Jean-Pierre Darrousin e Gérard Meylan. O trio brilhou no fascinante “Gloria Mundi”, lançado ano passado em nossos cinemas.

Em Mali Twist (ou “Twist à Bamako”, título original), Marselha, espaço territorial e “personagem” dos melhores filmes de Guédiguian, não existe. Assim como não sobrou uma pontinha sequer para Ariane, Darrosin e Meylan. O elenco do novo filme é integralmente black. A África humana e geográfica aparece coloridíssima na tela. Vez ou outra, fotos em preto-e- branco, que emulam o trabalho de Malick Sidibé, são colocadas na tela, causando efeito de grande relevo e beleza.

Por tratar-se de um filme sobre a história de um país negro, com protagonistas pretos e plenos de subjetividade, o distribuidor Jean-Thomas Bernardini, da Imovision, resolveu guardar o lançamentro de “Mali Twist” para a Semana da Consciência Negra. Decisão das mais acertadas.

O público interessado assistirá a um filme alegre (embora mostre realidade dura), com corpos africanos que dançam e festejam a vida. Como a história se desenvolve em poucos meses (justo no “momento comunista” referido por Guédiguian), não haverá espaço (e tempo) para condenações dogmáticas da música estrangeira (“e imperialista”), que chega para “deseducar a juventude”. O tema emerge, mas não ganha terreno fértil para prosperar.

O filme teve boa recepção crítica na França. “L’Humanité”, jornal comunista, lhe atribuiu cinco estrelas. Mesmo número de “Voici”, que o definiu, paradoxalmente, como “uma tragédia luminosa”. O “Libération”, jornal criado por Jean-Paul Sartre e outros intelectuais, cotou-o com quatro estrelas (número da maioria dos veículos franceses). “Le Monde” e a revista “Positif” deram três estrelas à narrativa malinesa. Só “Les Inrock” e “Cahiers du Cinéma” ficaram em duas míseras étoiles (cada um). O cinema político do marselhês Guédiguian não está entre as preferências da bíblia da cinefilia parisiense.

 

Mali Twist | Twist à Bamako
França, Canadá e Senegal, 129 minutos, 2022
Drama histórico
Direção: Robert Guédiguian
Roteiro: Robert Guediguian e Gilles Taurand
Elenco: Stéphene Bak, Alice da Luz Gomes, Saabo Balde, Ahmed Dramé, Fiouc Koma e Issaka Sawadogo.
Estreia: dia 24 de novembro (Semana da Consciência Negra)
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Robert Guédiguian (Marselha, França – 03/12/1953)
(*) Filmes lançados no Brasil

2022 – “Mali Twist” (*)
2019 – “O Mundo de Glória” (*)
2017 – “Uma Casa à Beira-Mar” (*)
2015 – “Une Histoire Fou”
2014 – “O Fio de Ariadne” (*)
2011 – “As Neves do Kilimandjaro” (*)
2009 – “L’Arme du Crime”
2007 – “Lady Jane” (*)
2006 – “Uma Viagem à Armênia”
2005 – “O Último Mitterand” (doc)
2004 – “Le Promeneur du Champ de Mars”
2003 – “Mon Pére Est Ingénieur”
2001 – “Marie-Jo e seus Dois Amores” (*)
2000 – “A Cidade Está Tranquila” (*)
1999 – “À l’Attaque”
1998 – “À la Place du Coeur”
1997 – “Marius e Jeanette” (*)
1995 – “À la Vie, à la Mort!”
1993 – “L’Argent Fait le Bonheur”
1989 – “Dieu Vomit les Tièdes”
1985 – “Ki lo sa?”
1983 – “Rouge Midi”
1981 – “Dernier Été”

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