Neurose e sexualidade
Ouviu-se muito suspiro de romantismo na projeção de “Fala Comigo”, de Felipe Sholl, no último Festival do Rio, como reação à love story entre um adolescente e uma quarentona de ímpetos suicidas. Mas ninguém esperava que o primeiro longa-metragem do premiado diretor de curtas, como “Tá” (prêmio Teddy em Berlim, em 2008), fosse conquistar o prêmio de melhor filme na Première Brasil. Na entrevista a seguir, o jovem diretor carioca fala das escolhas estéticas que fizeram dele uma referência de boa dramaturgia em nosso cinema.
Revista de CINEMA: que te tipo de cinema você busca fazer em relação à sexualidade?
Felipe Sholl: “Fala Comigo” aborda as neuroses existenciais deste nosso tempo. A sexualidade tem sido um tema recorrente nos meus filmes. No meu primeiro curta “Tá”, eu brinco com a ideia de que às vezes é mais fácil fazer uma série de coisas sexuais mais “avançadas” (masturbação, dedo no cu, sexo oral), do que dar um simples beijo na boca. A intimidade é o mais difícil, é o que os personagens do curta têm mais dificuldade em falar sobre. Acho que isso tem muito a ver com as neuroses do nosso tempo. No “Fala Comigo”, eu volto a falar de sexualidade num mote parecido com esse. Os dois personagens do longa se conhecem, porque ele, um garoto de 17 anos, tem o hábito de ligar para mulheres desconhecidas e bater punheta ouvindo-as ao telefone. Aqui, eu queria brincar com a ideia de que hoje em dia é cada vez mais fácil entrar em contato com outras pessoas, mas tenho a impressão de que é também cada vez mais difícil que esse contato se aprofunde. Então, eu quis contar uma história de amor que começa dessa maneira inusitada, mas se torna de fato uma história de amor. Eu estou escrevendo um roteiro agora, com o título de trabalho “Gloria”, que também usa a sexualidade para falar um pouco sobre o nosso tempo.
Como é a abordagem para o sexo nesse novo projeto?
Sholl: É a história de um antropólogo de vinte e poucos anos que se muda para o Rio para fazer um estudo etnográfico sobre profissionais do sexo e vai morar entre a região da Glória (onde ficam as travestis) e da Cinelândia (onde ficam os garotos de programa). No processo de estudar os profissionais do sexo, ele vai acabar se envolvendo cada vez mais nesse mundo. Desta vez, vou usar a sexualidade para falar de temas importantes, como o comércio sexual e como ele está presente mesmo em relações de não prostituição, HIV, visibilidade dos trabalhadores do sexo e das pessoas trans, e da chegada à idade adulta.
Qual é o seu olhar sobre a juventude?
Sholl: Esse tema da juventude também tem sido muito importante pra mim. No “Fala Comigo”, eu falo de um adolescente querendo sair da casa dos pais. No “Gloria”, agora, eu tenho um jovem adulto que chega no Rio com uma situação econômica confortável, sendo bancado pela família, mas, de repente, por causa de uma morte na família, ele tem que se sustentar sozinho.
Na classe cinematográfica brasileira, seu nome é um sinônimo de roteiro eficiente. Que problemas você vê no roteiro do cinema brasileiro hoje?
Sholl: Acho que antigamente se falava muito sobre a falta de roteiristas profissionais no Brasil. Os produtores reclamavam muito disso, mas, ao mesmo tempo, não se pagava aos roteiristas um cachê de profissional e você criava um círculo vicioso, em que os roteiristas eram obrigados a manter outras ocupações pra se sustentarem por causa do cachê baixo, e isso os impedia de se dedicar exclusivamente ao roteiro. Nunca faltaram bons roteiristas no Brasil. Mas isso tem melhorado bastante. Acho que, hoje em dia, já tem várias pessoas que vivem, principalmente, do trabalho de roteirista (como é o meu caso), e os cachês têm melhorado, com a consolidação dos editais de desenvolvimento e a consciência por parte dos produtores de que é preciso investir nessa etapa do filme (ou do produto audiovisual). Temos muitos bons cursos e laboratórios de roteiro, e isso tem contribuído também para a profissionalização e formação dos roteiristas no mercado.
Como você vê a conexão do seu cinema com a cultura LGBT?
Sholl: Eu sempre me interessei pelo cinema LGBT, não só por eu ser gay, mas também porque é um universo muito rico. Meu primeiro curta ganhou o Teddy Award, um prêmio LGBT do Festival de Berlim, e isso marcou muito profundamente a minha carreira. No “Fala Comigo”, existe uma trama LGBT, que, apesar de ter pouco tempo de tela, é uma história que eu gosto muito, porque gosto de subverter expectativas. Eu tenho dois projetos como diretor no momento. Um deles é o “Gloria”, que eu mencionei, um roteiro que eu estou escrevendo agora. Esse filme mergulha de cabeça no mundo LGBT. Pra mim, vai ser uma experiência ótima voltar a colocar esses temas no primeiro plano. O outro projeto se chama “Vozes” (também é um título de trabalho), e é um roteiro da Carolina Castro, e uma coprodução entre a minha produtora, a Syndrome, e a Migdal, a ser dirigido por mim. É um multiplot, a história de seis personagens em 24 horas no Rio de Janeiro. E nós acabamos de decidir que um dos personagens vai ser LGBT.
No Festival do Rio, o desempenho de Karine Teles, laureada com o troféu Redentor, levantou a hipótese de coautoria entre vocês. Como foi a troca com Karine?
Sholl: Eu já era amigo da Karine há um tempo, e era fã dela, principalmente, depois que assisti “Riscado”. Tinha essa vontade de trabalhar com ela, mas quando eu comecei a escrever o “Fala Comigo”, ela era nova demais para o papel. Como foi um filme que demorou dez anos para acontecer, entre o tempo que eu precisei para me considerar pronto (o “Fala Comigo” foi meu roteiro de fim de curso na Darcy Ribeiro, numa época em que eu queria ser só roteirista, e foi por causa dele que eu decidi me tornar diretor), e o tempo de captação, a Karine acabou ficando com uma idade mais próxima da personagem. Acabei tornando a personagem mais nova para poder fazer com ela. Eu lembro que a coisa que sempre mais me chamou atenção nela era a força do olhar dela. No “Riscado”, tem várias cenas (uma em particular) em que temos closes dela, e, sem falar nada, ela expressa muito com o olhar. Eu aproveitei isso bastante no “Fala Comigo”. Mas vai além disso, claro.
Vai aonde?
Sholl: Longe… Eu lembro de ter lido num texto sobre atuação que as duas qualidades mais importantes num ator são a verdade que ele traz para o personagem e a capacidade de surpreender. E a Karine tem muito dessas duas coisas. Ela é capaz de trazer coisas para a personagem que eu, mesmo convivendo com ela no roteiro por dez anos, não tinha imaginado. Tudo o que ela faz, ela faz por inteiro, se joga de cabeça.
Por Rodrigo Fonseca