CineOP reflete sobre “quem conta a história no cinema brasileiro”
Por Maria do Rosário Caetano
Quem conta a história no cinema brasileiro? Para responder a esta pergunta, a XII CineOP (Mostra de Cinema de Ouro Preto) – que começa nesta quinta-feira, 22, e prossegue até segunda, dia 26 – mobilizará 400 cineastas, educadores, acadêmicos e estudiosos de nosso patrimônio histórico, artístico e cultural. O cenário será a mais importante das cidades históricas de Minas Gerais, Ouro Preto, tombada como Patrimônio da Humanidade, pela Unesco.
Raquel Hallak, coordenadora da CineOP, lembra que a intenção da Mostra, que apresentará 76 filmes e dezenas de debates, mesas-redondas e seminários, “é conhecer, discutir, dialogar, pensar o cinema como patrimônio de uma nação”.
Na noite de abertura, será exibido o longa documental “Desarquivando Alice Gonzaga”, de Betse de Paula, sobre o trabalho da pesquisadora e gestora da Cinédia, empresa e estúdio fundados pelo produtor e cineasta Adhemar Gonzaga (1901-1978). Nunca é demais lembrar que a marca Cinédia figura nos créditos de alguns dos principais filmes da era muda e início do sonoro no Brasil. Caso de “Alô, Alô, Carnaval” (com Aurora e Carmen Miranda interpretando “Cantoras do Rádio”), do próprio Gonzaga, e “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro.
A CineOP prestará homenagem a projeto e pessoas que, nas última décadas, deram imensa contribuição ao cinema brasileiro. Caso do coletivo Vídeo nas Aldeias (e a seus principais artífices, o cineasta e indigenista Vincent Carelli e seus colaboradores Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida, a Tita), à montadora Cristina Amaral (parceira de Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci e Carlos Adriano) e ao pesquisador Antônio Leão, autor de importantes dicionários dedicados a Longas, Médias e Curtas-Metragens, Atores e Diretores de Fotografia.
Os homenageados serão lembrados com filmes como “Martírio”, o mais festejado dos projetos do Vídeo nas Aldeias, ” Já Visto, Jamais Visto”, de Andrea Tonacci, e “A Voz e o Vazio: a Vez de Vassourinha”, de Carlos Adriano, biscoito fino sobre a breve trajetória do cantor paulistano. Vassourinha (1923-1942) viveu apenas 19 anos, mas conseguiu gravar seis discos de 78 rpm e deixar saudades entre os cultores do samba. Ganhou do inquieto Carlos Adriano um ensaio fílmico-poético de rara beleza.
Muitos outros longas, médias e curtas-metragens serão exibidos durante os seis dias em Ouro Preto, seja no Cine Vila Rica, seja na belíssima (e gelada) Praça Tiradentes, seja no Centro de Artes e Convenções. Entre eles, destacam-se “Rosemberg – Cinema, Colagem e Afetos”, de Cavi Borges e Christian Caselli (sobre o cineasta Luiz Rosemberg), “Vinte Anos”, de Alice de Andrade (cujo avô, Rodrigo Melo Franco, criou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o impactante “No Intenso Agora”, de João Moreira Salles, e o empolgante “Pitanga”, de Camila Pitanga e Beto Brant.
A estes filmes, se agregarão obras do valor de “Memórias do Subdesenvolvimento”, do cubano Tomás Gutierrez Alea, para muitos, o maior filme da história latino-americana, e produções raras como “Um é Pouco, Dois é Bom”, de Odilon Lopes, um dos pioneiros do cinema black, no Brasil, e a comédia “É um Caso de Polícia!”, de Carla Civelli, esta, integrante do time de pioneiras do cinema feminino brasileiro.
Nas mais diversas secções da CineOP (Patrimônio-Preservação, Educação-Escolas, Filmes Contemporâneos, Mostrinha), há outras raridades: “Aniceto do Império, em Dia de Alforria…?”, de Zózimo Bulbul, “A Entrevista”, de Helena Solberg, “Mulheres da Boca”, de Inês Castilho e Cida Aidar, “Nora Malcriada”, de Elisangela Olímpio, “Rosae Rosa”, de Rosa Antuña, “Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali”, de Isael Maxakali & Charles Bicalho, “Mbya Mirim”, de Ariel Ortega & Patrícia Ferreira, “Rituais e Festas Borôro”, de Luiz Thomaz Reis, “Kuarup”, de Heinz Forthmann, e “Mato Eles?”, o mais poderoso e inquietante filme de Sérgio Bianchi.
A meninada poderá se divertir com o singelo e poético longa-metragem “A Família Dionti”, de Alan Minas, rodado em pequenos povoados das Gerais. E com curtas como “A Menina Espantalho” e “Marina Não Vai à Praia”, ambos de Cássio Pereira, ”Cadê meu Rango?”, de George Damiani, “Da Janela do meu Quarto”, de Cao Guimarães, “Médico de Monstro”, de Gustavo Teixeira, e “Meu Nome é Paulo Leminski”, de Cezar Migliorin.
De Eduardo Coutinho, lembrado ano passado em bela e lotada sessão ao ar livre, com “Jogo de Cena”, será exibido “Últimas Conversas”, obra póstuma, já que sua trágica morte (assassinado pelo filho, em fevereiro de 2014) o impediu de concluir o documentário. O trabalho foi feito por Jordana Berg e João Moreira Salles.
Espaço reflexivo
A CineOP não aposta em mostras competitivas, nem em astros e estrelas, nem tem fixação no cinema do presente. Seu foco recai sobre o cinema do passado, quanto mais distante, melhor (sem saudosismo, claro, pois complexifica as relações da memória com o tempo presente). Isto é vital num país que perdeu quase toda sua produção da era muda (salvaram-se poucos filmes) e que preservou poucos títulos do início da era sonora.
Para refletir sobre História, Preservação e o papel da Educação na formação de plateias e pesquisadores, a CineOP conta com curadorias qualificadas e militantes.
O Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros e o Encontro da Educação: IX Fórum da Rede Kino reunirão 90 profissionais em mesas e discussões temáticas. Os participantes estão há anos preocupados com o desafio da preservação de materiais digitais. E com o acesso a tais materiais, já que as mudanças tecnológicas se processam de forma avassaladora.
Este ano, além a preservação (do analógico ao digital), o foco recairá, também, na “emergência ameríndia”. Ou seja, nos filmes que cineastas índios realizam, cada vez com mais criatividade e quantidade. E que são reunidos a cada dois anos, sob o comando de Ailton Krenak, na Bienal Indígena, em São Paulo. Muitos dos ameríndios, que agora usam uma câmera como instrumento de registro de seu mundo, foram preparados pelas equipes do coletivo Vídeo nas Aldeias, criado há 30 anos.
Raquel Hallak orgulha-se de ver “a CineOP na linha de frente da reflexão sobre as temáticas da Preservação, História e Educação”. Há anos – pontua – “nosso evento coloca em evidência os registros e as formas de olhar daqueles que, historicamente, foram alijados dos processos de preservação e produção”. Agora, “graças ao atual momento de discussões sobre representatividade”, estes segmentos “vão ganhando o espaço e a voz que lhe foram impedidos por tanto tempo”.
Na área da Preservação, com curadoria de José Quental e Ines Aisengart Menezes, o debate focará a preservação do patrimônio audiovisual digital e o Plano Nacional de Preservação Audiovisual. Sob a temática “Emergências Digitais”, as discussões propostas buscarão dar conta do processo de transformação da cadeia audiovisual com o advento das tecnologias digitais. Pretende-se que o Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros, realizado anualmente na CineOP, “seja um espaço para aprofundar as discussões sobre a preservação digital (tanto dos conteúdos originados digitalmente como dos conteúdos digitalizados) que se entende como urgente”.
Os curadores da área dedicada à Educação – Adriana Fresquet e Isaac Pipano, com a colaboração de acadêmicos da Rede Kino – optaram pela temática das Emergências Ameríndias, por entenderem que “ela representa duplo movimento: o posicionamento lado a lado com as populações que vêm sendo exterminadas pelo Estado brasileiro e pelo agronegócio e, ao mesmo tempo, a possibilidade de conectar-se a uma produção subjetiva, com modos distintos de ver, ouvir e falar sobre o mundo”.
A temática Cinema e História, com curadoria de Francis Vogner dos Reis e Lila Foster, tem como ponto de partida questões vitais: “Como assuntos ligados ao gênero, etnia e classe social passaram a ser pensados também nas relações estéticas e políticas da produção audiovisual? De quem é a narrativa sobre a História? Como grupos fragilizados e alijados dos meios de produção disputaram o imaginário sobre suas próprias culturas e realidade?”
Destas indagações, surgiu o questionamento que norteia a XII CineOP: “Quem conta a História? – Olhares e Identidades no Cinema Brasileiro”. Os curadores lembram que “esta questão está presente há décadas nos estudos e nas ideias da crítica e da pesquisa. As ficções e os documentários das últimas décadas dedicaram grande parte dos seus esforços à representação e à relação com grupos, classes e culturas historicamente marginalizados e estigmatizados”.