Memória e poesia

Patricio Guzmán é o único cineasta latino-americano a ter dois de seus filmes – o tríptico “A Batalha do Chile” e o unitário “Nostalgia da Luz” – na lista dos 50 maiores documentários de todos os tempos, elaborada pelo respeitado BFI (Instituto Britânico de Filmes). A língua espanhola se faz presente em apenas mais duas vagas na rigorosa lista (com “Terra sem Pão”, de Luis Buñuel, e “O Sol no Marmelo”, de Victor Érice).

Desta quinta-feira, dia 5, até 20 de outubro, São Paulo torna-se palco privilegiado de amplo evento – intitulado “Paixão e Memória” – em torno da obra e do pensamento cinematográfico de Patricio Guzmán, nascido em 1941, em Santiago do Chile, e radicado em Paris.

O cineasta estará na cidade, a convite do Instituto Vladimir Herzog, para acompanhar retrospectiva (quase) completa de sua obra, ministrar curso para cem alunos (houve 300 inscrições), participar de três debates públicos e lançar um livro, “Filmar o que Não se Vê”.

Luis Ludmer, arquiteto com mestrado em cinema pela Vancouver Film School, assina a curadoria do projeto “Paixão e Memória”, em parceria com Laura Faerman. Ele lembra que, “em 2012, o Instituto Vladimir Herzog organizou, com a Cinemateca Brasileira e o Sesc, evento que somou exposição e mostra de filmes sobre Direitos Humanos”, tendo “Patricio Guzmán como um dos convidados”. Na ocasião, o cineasta ministrou curso de três dias para 70 alunos. “O interesse foi tão grande” – pondera – “que resolvemos somar forças para realizar este projeto de maior fôlego, com mostra retrospectiva de onze dos principais filmes do realizador, curso ainda mais amplo (agora com dez aulas), três debates, catálogo e o livro “Filmar o que Não se Vê”, cuja publicação tornou-se possível, em língua portuguesa, graças às Edições Sesc”.

Foram necessários cinco anos para viabilizar o projeto, aprovado pela Caixa Cultural e apoiado pelo Cine Belas Artes e CineSesc paulistano. O primeiro longa-metragem de Guzmán, que estudou cinema na Espanha e regressou ao Chile para acompanhar o Governo Allende, chama-se “O Primeiro Ano” (1972) e só não estará na Retrospectiva de “Paixão e Memória”, porque encontra-se em fase de restauro. Outras ausências: seu único longa ficcional, “A Rosa dos Ventos” (1983) e a maioria de seus curtas-metragens (são muitos).

Os doze filmes que serão exibidos (onze de Guzmán e um de Boris Nicot: “Filmar Obstinadamente – Um Encontro com Patricio Guzmán”) nos fornecerão invejável panorama da obra do documentarista chileno. A ausência do longa de estreia, que aborda o primeiro ano do Governo Allende, será suprida pela exibição dos três longas que compõem a trilogia “A Batalha do Chile” (parte I – “A Insurreição da Burguesia”, de 1975, parte II – “O Golpe de Estado”, de 1976, e parte III – “O Poder Popular” de 1979). Sobre o mesmo período será exibido “Salvador Allende”, de 2004.

Completam a Retrospectiva os longas “Em Nome de Deus” (1987), “A Cruz do Sul” (1992), “Chile, a Memória Obstinada” (1997), “O Caso Pinochet” (2001), “O meu Julio Verne” (2005), “Nostalgia da Luz” (2010) e “O Botão de Pérola” (2015).

Quem assistir a estes filmes estará muito bem preparado para acompanhar as dez aulas que Guzmán ministrará no Cine Belas Artes, ao longo dos dias úteis das duas próximas semanas (das 13h às 16h). Os filmes serão exibidos, com ingressos a preços populares, em sessões diárias, às 16h30 e às 19h.

O cineasta chileno elaborou sofisticado e minucioso plano de curso. No primeiro dia, a aula versará sobre tema eletrizante: “Filmar em Cinema Direto uma Revolução Pacífica”. No caso, a comandada por Salvador Allende, eleito pelo voto direto em 1970, empossado em novembro do mesmo ano e derrubado em 11 setembro de 1973, por golpe de Estado comandando pelo General Augusto Pinochet.

As nove aulas seguintes abordarão os temas: Filmar a Luta de Classes como uma Paisagem, Filmar a Vontade Popular, Filmar a Resistência, Filmar a Memória, Filmar a Religiosidade Popular, Filmar a Micro-História, Filmar a Justiça Internacional, Filmar um Homem na História e Filmar a Memória do Universo. Quem viu os dois últimos longas de Guzmán – os sublimes “Nostalgia da Luz” e “O Botão de Pérola”, ambos lançados em nosso circuito de arte – sabe o quanto ele aprofundou em sua relação com o Cosmos, sem jamais esquecer seu tempo histórico. Uma observação: a trilogia “A Batalha do Chile” está disponível em DVD, em excelente lançamento da Videofilmes, dos Irmãos Moreira Salles.

Como não há mais vagas para o curso (foram escolhidos cem entre os 300 inscritos), o público em geral poderá participar de três debates públicos com Guzmán. Dois no Cine Belas Artes (segunda-feira, dia 9, às 19h, sob o tema “Filmar Obstinadamente”, o cineasta conversará com Carolina Amaral de Aguiar, Inácio del Valle e Reinaldo Cardenuto). Na quarta-feira, dia 11, em novo debate, Guzmán trocará ideias com a professora da USP, Dora Mourão, e o crítico do Estadão, Luiz Zanin Oricchio. E responderá a perguntas da plateia.

No terceiro e último encontro com o público, na segunda-feira, 16 de outubro (18h30, no CineSesc), Patricio Guzmán mostrará dois filmes (“Chile, Memória Obstinada” e “Chile, Galáxia de Problemas”), autografará o livro “Filmar o que Não se Vê” e responderá a perguntas de interessados.

O livro, que traz apresentação do crítico José Geraldo Couto, compila relatos de Guzmán sobre sua experiência como diretor, apoiado no “cinema de autor”, que ele defende e pratica. O cineasta discorre sobre “os parâmetros que orientam seus trabalhos: os conceitos de ponto de vista (opinião do diretor), distanciamento (viabilizado a partir do estabelecimento de territórios de criação e pesquisa), subjetividade (reafirmação da parcialidade das produções audiovisuais) e escrita de roteiros (técnicas de criação)”.

Em seu texto, José Geraldo Couto situa o cinema de Guzmán em duas vertentes mais importantes: a do “registro militante e urgente da monumental trilogia A Batalha do Chile (1975-79)” até chegar “aos recentes ensaios poéticos Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Pérola (2015)”. E lembra que Guzmán “mergulhou como nenhum outro cineasta na conturbada história de seu país, em sua relação com o mundo e com o cosmo”.

A oportunidade de estar em debates públicos com Guzmán permitirá aos que se interessam pela história do golpe de Estado que derrubou Allende (e o levou ao suicídio) tirar dúvida corrente nos meios de pesquisa audiovisual. Conta-se que dupla de cineastas germânicos – Walter Heynowski e Gerhard Scheumann – oriunda da então RDA (República Democrática Alemã, a socialista) fôra a única a registrar os bombardeiros do Palácio de la Moneda, onde estavam Allende e seus assessores mais próximos.

Heynowski & Scheumann teriam conseguido tal façanha, porque as tropas golpistas pensaram tratar-se de cinegrafistas originários da Alemanha Ocidental, a capitalista. As imagens feitas pela dupla, assim como a foto de Che Guevara com sua boina estrelada (by Alberto Korda), correriam o mundo. E ganhariam espaço nobre em filmes de Guzmán, detido no Estádio Nacional, até conseguir, em novembro do trágico 1973, partir rumo ao exílio, com os negativos das múltiplas filmagens que fizera e que seriam a base e essência da monumental “A Batalha do Chile”.

 

Patricio Guzmán – Paixão e Memória
Mostra Retrospectiva, Curso e dois debates
Data: 5 a 20 de outubro
Local: Cine Belas Artes
Horários: 16h30 e 19h.
Ingressos: 10 reais (inteira) e 5 reais (meia). Passe para todas as sessões custarão R$35,00 e darão direito a catálogo com toda a filmografia do realizador e textos especiais.

Lançamento do livro “Filmando o que Não se Vê”, de Patricio Guzmán
Data: 16 de outubro
Local: CineSesc, a partir das 18h30
Exibição de “Chile, Memória Obstinada” (60′) e “Chile, Galáxia de Problemas” (32′), sessão de autógrafos e debate

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