Cinema urgente

Três documentários feitos no calor da hora, “em estado de urgência”, serão mostrados no Cine Bijou, recém-reaberto na Praça Roosevelt paulistana. Além de assistir à trinca de “filmes urgentes”, o público será convocado a debatê-los com Jean-Claude Bernardet, Nabil Bonduki e Thales Ab’Saber, nomes de peso na reflexão sobre caminhos e descaminhos do país em tempos de crise político-econômica, polarização e ódio.

Os longas-metragens que darão início a esta mostra itinerante – a próxima cidade a exibi-los será Brasília – são “Operações de Garantia da Lei e da Ordem”, de Júlia Murat e Miguel Ramos, “Escolas em Luta”, de Consonni, Marques e Tambelli, e “Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa” , de Rewald, Aranda e Ab’Saber.

Júlia Murat e Miguel Ramos buscam desvendar, em “Operações de Garantia da Lei e da Ordem”, o olhar da mídia sobre as manifestações de 2013, enquanto o trio de jovens realizadores de “Escolas em Luta” mostra mobilização de secundaristas paulistanos contra projeto educacional da Gestão Alkmin. Já “Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa”, dos cineastas Rubens Rewald e Gustavo Aranda, que contaram com participação decisiva do psicanalista Thales Ab’Saber, registram, com arquivos da internet, a voz da extrema direita brasileira.

Durante três dias – terça-feira, 21, quarta, 22, e sexta, 24 (não haverá filme e debate na quinta-feira) – os documentários, todos de longa-metragem, serão exibidos e analisados no simpático e modesto Cine Bijou.

Para Thales Ab’Saber e Rubens Rewald, o chamado “cinema da urgência” configura “a retomada do engajamento, da força do cinema como dispositivo de discussão do mal social e propositor de perspectivas de trabalho sobre a vida”. Afinal, “o cinema brasileiro tem algo de sério a dizer sobre o regime da vida do presente, os trabalhos sociais necessários e as forças políticas reinventadas de que dispomos”.

“Operações de Garantia da Lei e da Ordem”, o primeiro filme a ser exibido, será debatido pelo arquiteto Nabil Bonduki. “Escolas em Luta” contará com análise de Thales Ab’Saber. “Intervenção” será analisado por Jean-Claude Bernardet, autor de clássico da reflexão sobre o cinema documental brasileiro (“Cineastas e Imagens do Povo”, cuja primeira edição foi lançada em 1985, sendo relançado e atualizado recentemente). O professor da USP, que é também cineasta e ator, gosta de lembrar que os documentaristas brasileiros costumam evitar três temas fundamentais: o Poder Financeiro, as Forças Armadas e a Mídia. Resta ver que opinião ele emitirá sobre estes títulos reunidos sob o rótulo de “Cinema Urgente”.

Os longas programados para o Cine Biju chegam para somar-se a “Martírio”, de Vincent Carelli, “O Grande Salto para Trás”, de Zingaro e Bonnassieux, “Entre Homens de Bem”, de Cavechini e Juliano, “Um Domingo de 53 Horas”, de Cristiano Vieira, e “O Muro”, de Lula Buarque de Hollanda, todos exibidos em festivais (só “Martírio” chegou ao circuito comercial). A uni-los, estão temas urgentes como as manifestações de rua de 2013, o Parlamento brasileiro e sua aguda crise de representatividade, o impeachment de Dilma Roussef e as ocupações de escolas por estudantes secundaristas.

No próximo ano – quem sabe nas mostras competitivas e informativas de festivais, como o É Tudo Verdade, ou o de Gramado, ou de Brasília – devem estrear filmes, como “No Palácio” (título provisório), de Anna Muylaert, Lô Politi e César Charlone, que registra os últimos dias de Dilma no Alvorada, “Impeachment, Dois Pesos e Duas Medidas”, de Petra Costa, “Excelentíssimos”, de Douglas Duarte (que chegou a ter subtítulo provisório dos mais provocadores: “A Gangue da Gravata de Seda”), “O Processo”, de Maria Luíza Ramos (também sobre o impeachment), “Filme Manifesto – O Golpe de Estado”, de Paula Fabiano (idem), “Esquerda em Transe”, de Renato Tapajós, “Missão 115”, de Silvio Da-Rin, e “Impeachment Visto do Sul”, de Boca Migotto.

“Martírio” tem como tema central a luta dos povos Guarani-Caoiwá pelo direito às suas terras. Para entender por que parcela tão significativa de povos originários vive em estado de penúria e sob ameaça permanente, o cineasta Vincent Carelli e os parceiros Ernesto de Carvalho e Tita, do coletivo Vídeo nas Aldeias, mergulharam na internet e trouxeram, do espaço digital, um dos mais reveladores retratos da bancada do Boi e da Bala (e até, em menor proporção, da Bíblia). Os diretores não pediram autorização para usar tais imagens no filme. E nenhum deputado, senador, governador ou empresário ligado ao agronegócio veio a público protestar contra o épico “Martírio”. O filme ganhou dezenas de prêmios no Brasil e no exterior e foi visto por 10 mil espectadores.

“Entre Homens de Bem”, de Caio Cavechini e Carlos Juliano, tem como protagonista o deputado Jean Wyllys, da combativa (e pequena) bancada do Psol. Homossexual assumido, ele vive dolorosos embates no Parlamento. Seu maior opositor é Jair Bolsonaro, militar aposentado e deputado há sete legislaturas. O filme traça retrato assustador do Parlamento brasileiro.

Quem promete traçar outro retrato apavorante do atual Legislativo nacional é o cineasta Douglas Duarte. Ele filmou a famigerada sessão que cassou o mandato de Dilma Roussef e distribuiu louvores a torturadores, cusparadas e saudações a maridos, esposas, filhos, redutos eleitorais e a Deus.

“O Muro”, de Lula Buarque, exibido no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo, parte da imensa cerca-tapume erguida na Esplanada dos Ministérios, para separar os contrários e os favoráveis ao impeachment da única mulher eleita para governar o país. Com a intenção de ampliar seu universo temático, Buarque foi à Alemanha, onde registrou escombros do Muro de Berlim, e também a Israel, para documentar grupos e famílias fragmentados por muralhas da Faixa de Gaza/Cisjordânia.

Renato Tapajós também focou o impeachment em “Esquerda em Transe”. Mas o fez “a partir da visão dos movimentos populares e das pessoas presentes às manifestações de rua a favor da Dilma”. De forma que “a votação na Câmara dos Deputados é toda contada a partir da multidão”, daqueles que “se reuniram em Brasília, diante do telão, para assistir à sessão”. A equipe do cineasta centrou-se no registro das expressões e movimentos que acompanhavam cada voto”. O material utilizado foi produzido, além da equipe de Tapajós, por integrantes de movimentos populares.

“Nossa narrativa” – explica o realizador – “vai buscando, ao longo do filme, as alternativas de luta e destacando movimentos como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e o Levante Popular da Juventude”. Há, ainda, uma segunda linha narrativa em “Esquerda em Transe”. “Aquela que discute o papel da esquerda no processo, destacando, principalmente, seus erros”, de forma que “somos levados necessariamente à discussão de perspectivas”, assunto no qual “o filme assume claramente que não tem ideia do que deve ser feito”. Várias opiniões (de Marilena Chauí, Guilherme Boulos, Jessé Sousa, João Pedro Stédile e integrantes do Levante) e alternativas vão se somando. E deixam “a questão em aberto”. Enfim, “o filme se constrói na dinâmica entre as imagens de ação (escrachos, discussões públicas etc.) e na intervenção dos entrevistados, em busca do conflito e não da reiteração”. Mas – arremata Tapajós – “nosso filme tem lado, é frontalmente contra o impeachment e não está muito interessado em manobras daqueles que vivem dizendo que “respeitaram a Constituição”.

Só uma obra de ficção, “Era uma Vez Brasília” – mostrado e premiado na quinquagésima edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro –, tem o “golpe parlamentar” como um de seus temas. Na sinopse do filme, que dialoga com a ficção científica, o realizador Adirley Queirós registra: “Só Andreia, a rainha do pós-guerra, poderá ajudá-los (aos agentes intergaláticos) a montar o exército para matar os monstros que habitam hoje o Congresso Nacional”. E finaliza: “este é um documentário gravado no Ano 0 P.G. (Ano Zero Pós-Golpe), no Distrito Federal e região”.

Programação:

Dia 21 (terça-feira) – “Operações de Garantia da Lei e da Ordem”, de Júlia Murat e Miguel Ramos. Debate com Nabil Bonduki.
Dia 22 (quarta-feira) – “Escolas em Luta”, direção de Eduardo Consonni, Rodrigo Marques e Tiago Tambelli. Debate com Thales Ab’Saber.
Dia 24 (sexta-feira) – “Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa”, de Rubens Rewald, Gustavo Arando e Tales Ab’Sáber. Debate com Jean-Claude Bernardet.

Horário: sempre às 20h.

Por Maria do Rosário Caetano

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