Mostra de Gostoso – Público potiguar assiste e debate “Arábia”

Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso (RN)

O cineasta Affonso Uchôa, que dirigiu o longa “Arábia” em parceria com João Dumans, contou, durante o debate de seu segundo longa-metragem na IV Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, que seu protagonista, o mineiro Aristides de Sousa, o Juninho, quase ficou fora do filme. E por que? Porque estava preso. Isto mesmo, estava encarcerado numa penitenciária.

Para que Juninho protagonizasse “Arábia”, Uchoa e Dumans enfrentaram verdadeira via-crucis até conseguir autorização da Defensoria Pública de Minas Gerais para que o jovem saísse da prisão e assumisse o papel de Cristiano, operário que perambula por fábricas e plantações mineiras, em busca de ganho parco e incerto.

O filme foi o grande vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro último, e rendeu a Juninho, hoje com 30 anos, o Trofeu Candango de melhor ator. Foi a primeira vez na história do festival candango, que um intérprete vindo de um bairro periférico — o Nacional, de Contagem, cidade industrial da grande Belo Horizonte — e com diversas passagens pelo sistema penitenciário (ele disse à BBC Brasil que foram 18) ganhou o mais tradicional e duradouro dos troféus do cinema brasileiro.

Quem estava no Cine Brasília, na noite de premiação do festival, viu o ator — agora integrante de galeria de grandes intérpretes ao lado de Fernanda Montenegro, Leonardo Vilar e Paulo José — buscar seu Troféu Candango de bermudão e chinelo de dedo. Com a estatueta na mão, não demorou um segundo que fosse para alojá-la no bolso fundo de sua bermuda.

Juninho — ele não aprecia o nome que recebeu em homenagem ao pai, Aristides — não veio a São Miguel do Gostoso. Mas esteve em um festival em Londres com a equipe do filme, ocasião em que foi entrevistado pela BBC Brasil. Tudo indica que depois de tantas passagens pelo sistema penitenciário, ele encontrará na arte da representação o seu novo ofício e sua subsistência. Ganhou bolsa de estudos no Grupo Galpão, um dos mais respeitados do país e já tem convites para novos filmes.
Para Juninho, o cinema começou com o filme “A Vizinhança do Tigre”, primeiro longa-metragem de Affonso Uchôa. Mas no “Tigre” ele interpretava, junto com outros quatro jovens de violentas periferias mineiras, muito de sua própria vida. O filme é um híbrido de documentário e ficção. Foi premiado na Mostra de Tiradentes. Já “Arábia”, embora dialogue com o documentário, é um filme ficcional, livremente inspirado em conto de mesmo nome, do irlandês James Joyce (do livro “Dublinenses”).

Aristides de Sousa aparece, em “Arábia”, em dupla função. Além de ator-protagonista, está creditado como pesquisador, ao lado da jornalista e cineasta Laura Godoy e do antropólogo André Dumans. André, professor da Universidade Federal Fluminense, é autor de tese de doutorado que estudou a vida e o trabalho em trânsito no interior de Goiás. Laura mergulhou nas fábricas de Minas Gerais. E o que fez Juninho? Ele escreveu suas vivências num caderno, que ajudou os diretores do filme a escreverem roteiro de grande poder de síntese e força poético-política.

Quem acompanhou João Uchôa à Mostra de São Miguel do Gostoso foi outro ator do filme — Wanderson Neguinho, que em “Arábia” interpreta um trabalhador cheio de manhas e artimanhas (uma delas é sujar o uniforme para dar a entender que pegara no batente). Numa das cenas mais divertidas do filme, um grupo de operários que inclui Cristiano, almoça no refeitório da fábrica. Neguinho conta que “é enjoado para comer”. E avisa que detesta rúcula e melancia. A sobremesa da refeição é justo uma fatia de melancia. Cristiano o provoca: “mas não tem rúcula nesta refeição”. Sem perder a verve, Neguinho diz que não tem na mesa deles, mas em outra, logo ali, tem.

No debate, Wanderson Neguinho contou que realmente detesta melancia, rúcula e uma infinidade de verduras e legumes. E que a sequência foi estruturada pelos diretores-roteiristas, que, só nesta parte do filme, permitiu que eles improvisassem. E arrematou: “sou mesmo muito chato para comer”.

“Arábia” chegará aos cinemas brasileiros no primeiro semestre de 2018. Se o público sair de sua letargia — são mais que preocupantes as bilheterias de filmes brasileiros de maior exigências artístico-cultural — poderá surpreender-se com um longa-metragem de rara beleza e contundência. Uchoa e Dumans conseguiram atingir, em plenitude, a proposta que abraçaram: mostrar a trajetória errante e melancólica de um trabalhador braçal, chamado Cristiano, pelas Minas Gerais. Acompanhar “sua solidão e despertencimento” num mundo de labuta escravizante, que assemelha-se a uma prisão. Afinal, trabalhadores de imensas fábricas (como as que vemos em “Arábia”) vivem da casa pequena para o batente insalubre. Na base do ganho que vai da mão para a boca.

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