Festival de Gramado
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
Há muitos anos, Gramado não apresentava dobradinha de longas-metragens tão qualificada e encantadora. Tudo que bateu na tela do Palácio dos Festivais era prova da vitalidade (e inventividade) do cinema latino-americano contemporâneo. E, para tornar a noite ainda mais fascinante, as equipes que subiram ao palco para apresentar seus filmes neutralizaram o tom formal e frio da noite de abertura, quando só os diretores falaram (e os atores nem foram apresentados).
Tudo começou com o cineasta Marcelo Martinessi que, tal qual um experiente mestre de cerimônia, falou de sua satisfação ao apresentar “Las Herederas” em Gramado, da alegria de saber que o filme terá lançamento comercial (dia 30 de agosto) com significativo número de cópias (o maior para um filme vindo do pequeno Paraguai) e que o Senado de seu país criou, em julho, sua primeira lei de fomento ao cinema. Passou, então, a apresentar sua equipe, formada com a coprodutora brasileira Júlia Murat, o distribuidor Jean-Thomas Bernardini, o produtor Sebastián Peña Escobar e, cereja do bolo, suas três atrizes (Ana Brum, Margarita Irún e Ana Ivanova). À medida que anunciava o nome de cada uma delas, a atriz citada dava um passo à frente e fazia uma mesura ao público.
O primeiro nome anunciado por Martinessi foi o de Ana Brum, sua protagonista absoluta, que chega ao Brasil com um Urso de Prata de melhor atriz ganho no Festival de Berlim (o filme ganhou ainda o Prêmio Alfred Bauer de melhor direção e o prêmio Fipresci no poderoso festival alemão). Ana, que vestia um belo e longo vestido rosa-discreto, deu um passo à frente, sorriu e, elegantemente, fez leve movimento com a cabeça. Depois dela, que interpreta a herdeira Chela, mulher da elite paraguaia atormentada por revés financeiro, o cineasta anunciou Margarita Irún, a Chiquita, companheira de vida e do mesmo infortúnio. E, por fim, a alta e esguia Ana Ivanova, a liberada Angy, mulher cheia de vida, namorados e fumante-chaminé. Quando a apresentação terminou, as três estrelas paraguaias estavam enfileiradas um passo adiante da equipe e recebiam aplausos calorosos. E merecidos. Depois da exibição, aplaudida com entusiasmo, elas foram abraçadas no hall do cinema e estiveram no foco de dezenas de fãs e selfies.
O filme de alma feminina de Marcelo Martinessi, protagonizado só por mulheres já bem-vividas (no filme, os homens, no máximo, carregam piano), é a sensação latino-americana do ano. Pode — tem tudo para isto — repetir a trajetória gloriosa de “Uma Mulher Fantástica”, do chileno Sebastián Lélio, que este conquistou o Oscar de melhor produção estrangeira. Em comum, os dois filmes têm, até, o mundo da homoafetividade. Só que no filme paraguaio, tudo se dá a partir da mais delicada insinuação.
Quando a equipe do brasileiro “Benzinho”, de Gustavo Pizzi — diretor muito bem recebido em Gramado 2011, com “Riscado”— subiu ao palco, o público assistiu a mais uma apresentação impecável. O realizador falou da alegria de ter o festival gaúcho como primeira vitrine brasileira de seu filme, que estreou em festivais internacionais (no norte-americano Sundance) e passou a palavra à sua produtora Tatiana Leite e, depois, à atriz Karine Telles, sua ex-mulher, mãe de seus filhos gêmeos, Francisco e Arthur, e colaboradora essencial. Além de protagonista absoluta e onipresente em “Benzinho”, Karine é autora do roteiro (em parceria com Pizzi).
A atriz, já premiada em Gramado e em outros festivais brasileiros, ergueu um sereno e bem-articulado canto de amor à tolerância, neste momento em que o país parece movido pelo ódio. Externou seu orgulho por interpretar personagem feminina de sentimentos complexos, e defendeu o direito de todos, dos negros, dos ‘queer’ e das mulheres. Ao lado dela, estavam Otávio Muller, que vive seu marido Klaus, bonachão e sonhador, e uma discreta Adriana Esteves, intérprete de sua irmã Sônia, nesta trama cheia de vidas miúdas, mas fascinantes. No palco, estavam também os inquietos gêmeos Arthur e Francisco, que no filme são “atores”, pois integram a prole de Irene (formada com mais dois rebentos, um adolescente convidado para jogar handball na Alemanha, e outro, pré-adolescente, gordo como o pai, que toca tuba na banda da cidade onde vivem).
“Benzinho” coloca Karine Telles na condição de favorita ao Kikito de melhor atriz, que ela conquistou, em 2011, com “Riscado”. O rosto dela, registrado com rara leveza e poesia pelo fotógrafo Pedro Faerstein, é um palco de pequenos sentimentos, dores e alegrias. Dores por causa da falta de dinheiro da família, pelas pancadas que a irmã Sônia leva do marido dependente de drogas (interpretado pelo uruguaio Cesar Troncoso) e, principalmente, pelo temor da perda do primogênito, que terá que ser emancipado para partir rumo à fria e distante Alemanha. Alegrias também são muitas: estar com os filhos, marido, irmã e sobrinho na modesta casa de praia em Araruana, Estado do Rio, concluir o segundo grau, ver um filho brilhar num jogo de handball e o outro tocar na banda juvenil do município.
Os aplausos se fizeram ouvir ao final da sessão de “Benzinho”. Gustavo Pizzi e sua comédia (com ingredientes dramáticos, de final que evoca o amarcord felliniano, temperado com pitadas moniccelianas e, até, cassavettianas) já desponta como um dos favoritos aos prêmios Kikito.
A noite completou-se com a exibição de dois curtas: a belíssima animação “Gaxuma”, da pernambucana Nara Normande (feito com areia fina — e areia molhada — como o magnífico filme canadense, “Castelos de Areia”), e “Um Filme de Baixo Orçamento”, do paulista Paulo Leierer, falso documentário que aposta no humor, em moldes semelhantes aos do longa “Saneamento Básico”, de Jorge Furtado, e chega a saboroso resultado.
Para completar o alto astral da segunda noite do Festival de Gramado, o animador Otto Guerra “re-dublou” trechos compilados de sua obra para homenagear o cineasta Carlos Saldanha, diretor de megassucessos como “A Era do Gelo 2 e 3″, “Rio 1 e 2” e “O Touro Ferdinando”. Radicado nos EUA desde os tempos de faculdade, Saldanha foi homenageado com o Troféu Eduardo Abelim. Agradeceu com elegância e concisão. Que Gramado tenha para ofertar outras noites como esta, em que tudo deu certo: da apresentação dos filmes (curtas e longas) aos filmes propriamente ditos. Não é todo dia que podemos ver obras tão instigantes quanto “Las Herederas”, “Benzinho”, “Guaxuma” e “Um Filme de Baixo Orçamento”.