Os vencedores do Festival de Gramado
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
Gramado viveu, na noite de entrega de seus prêmios Kikito, uma de suas festas mais vibrantes e politizadas. O discurso de Osmar Prado, melhor ator por “10 Segundos para Vencer”, cinebiografia de Eder Jofre, na qual interpreta Kid Jofre, motivou aplausos e vaias. Ele defendeu a liberdade de Lula, o fim das delações premiadas e do estado de exceção. Sem se incomodar com as vozes divergentes, avisou: “podem vaiar”. Mas os aplausos foram maiores. Além dele, a dupla de curta-metragistas Chico Santos e Rafael Mellin, responsável pelo combativo “Estamos Todos Aqui”, filmado na Favela da Prainha e no Porto de Santos, não fez por menos. Denunciou a curta vida dos transexuais, a brutal carência de moradia no país, clamou por justiça e pelos nomes de quem matou e mandou matar Marielle Franco e seu motorista Anderson.
O gaúcho Otto Guerra endossou o discurso de Osmar Prado e clamou por “tolerância nestes tempos de ódio e falta de diálogo”. Boa parte dos curta-metragistas, os que subiram ao palco para receber prêmios, vestiam camiseta com os dizeres “Ancine – Eu Existo“. Ou seja, protestaram contra ranking da Agência Nacional do Cinema que passou a pontuar positivamente somente produtores de filmes que vendem milhões de ingressos e a ignorar as realizaçoes de curta duração.
Os vencedores das duas competições brasileiras — o diretor paranaense Aly Murtiba, de “Ferrugem”, e a pernambucana Nara Normande , do curta “Guaxuma” — somaram em seus agradecimentos os dois temas: a reivindicação “Lula Livre” e a revisão dos critérios da Ancine em seu ranqueamento de cineastas. Muritiba lembrou que realizou nove curtas e Nara vestiu a camiseta “Eu Existo”.
O prêmio de melhor filme a “Ferrugem”, vigorosa e perturbadora narrativa sobre as consequências da difusão de vídeo íntimo de uma adolescente nas redes sociais (inclusive em site pornô) surpreendeu, pois o favorito da competição era a produção carioca “Benzinho”, de Gustavo Pizzi. Este filme conquistou o Prêmio da Crítica e o Júri Popular. Se vencesse o Júri Oficial, faria a tríplice coroa. Mas só um filme, na noite dos Kikito, venceu as três categorias: o paraguaio “Las Herederas”, de Marcelo Martinessi, da competição latino-americana.
Filme da hora, “Las Herederas”, que estreia no próximo dia 30, chegou a Gramado com 17 prêmios (inclusive três em Berlim). Passados dez dias, já contabiliza 27, sendo seis em Gramado e um no Festival de Amsterdã. Tudo indica que o filme (que fala de relações homoafetivas entre mulheres da terceira idade, com delicadeza e poesia) repetirá a trajetória do chileno “Uma Mulher Fantástica”, de Sebastián Lélio, que chegou a triunfar no Oscar de melhor longa estrangeiro. Se o novo filme for escolhido pela Academia de Hollywood, será a primeira vez que uma produção paraguaia chegará tão longe.
Além de melhor filme, “Las Herederas” conquistou o prêmio de melhor atriz (dividido entre Ana Brum, Urso de Prata em Berlim, Margarita Irún e Ana Ivanova), direção e roteiro (ambos para Marcelo Martinessi). Os discursos de agradecimento de Margarita e Ivanova, que representaram a equipe, foram encantadores. Elas elogiaram a acolhida do público, da imprensa e da “cidade Gramado, com seus múltiplos canteiros de flores, dias enevoados e noites geladas, mas cheias de calor humano”. Agradeceram ao diretor Martinessi por ter dado a elas papéis tão complexos e significativos. Brum e Margarita são quase septuagenárias e Ivanova tem 45 anos.
Entre a entrega dos Kikitos e prêmios especiais, a banda 50 Tons de Pretas botava para quebrar com suas lindas cantoras negras e seus volumosos cabelos black power ou turbantes. Elas incendiaram o Palácio dos Festivais. E lá fora — a premiação integrou, pela primeira vez, o espaço interno do cinema e o tapete vermelho — a apresentadora Marla Martins apresentava os vencedores do júri popular, enquanto a banda gaúcha Yangos enfrentava o frio de dois graus com enorme vitalidade.
Houve certa decepção com a não premiação de “Benzinho”, o franco-favorito, e com a atribuição do prêmio de melhor direção para André Ristum, pelo filme-coral “A Voz do Silêncio”. O Kikito ficaria melhor nas mãos de Gustavo Pizzi ou Aly Muritiba. Mas a premiação foi criteriosa em sua essência. A ousadia de premiar Osmar Prado, aos 71 anos, 60 de carreira, sem nenhum troféu por sua carreira no longa-metragem, foi notável. O papel de Eder Jofre, que Daniel Oliveira defendeu com garra, poderia ter rendido a ele o troféu. Ou a Fabrício Boliveira, por Simonal. Mas o Kid Jofre de Prado ficará para sempre em nossas retinas e memória, tamanha a entrega (e sutileza) do ator.
Os prêmios para Karine Telles (melhor atriz) e Adriana Esteves (melhor coadjuvante), as irmãs de “Benzinho”, foram justos, pois Pizzi é um brilhante condutor de atores. E Karine Telles, também roteirista do filme, é um talento singular, uma força da natureza.
Os troféus de melhor fotografia (para Pablo Baião) e trilha sonora (Max Castro e Simoninha), por “Simonal”, foram justíssimos. Baião dançou baião e rock, em sintonia black, com sua câmara ágil e inspirados planos-sequência que abrem o filme e o levam ao momento de maior prazer quando Simonal deixa o teatro, vai tomar um trago e volta ao palco (enquanto a plateia canta “Meu Limão, meu Limoeiro”, sem seu timoneiro). E a trilha dos filhos de Simonal é cheia do suíngue herdado do pai.
Houve quem achasse poucos os prêmios de ator (Osmar Prado) e coadjuvante (Ricardo Gelli) para a cinebiografia de Eder Jofre. E quem lamentasse o esquecimento de “Mormaço”, filme autoral de Mariana Meliande, que dialoga com o fantasmagórico. E, também, a estranha menção honrosa, “sem unanimidade”, para a animação anarquista “A Cidade dos Piratas”, de Otto Guerra. “Mormaço” e “Piratas” mereciam, sim, reconhecimento.
No terreno do curta, os vencedores foram — além da belíssima animação “Gaxuma”, esculpida em areia seca e molhada — o vigoroso “Estamos Aqui”, realizado na Baixada Santista, o mineiro “A Retirada para um Coração Bruto”, com seu ator social, o poeta e cantador Manoel do Norte, conterrâneo de Guimarães Rosa, e o paulistano da periferia black, “Kairo”. Fez bonito, também, a animação “Torre”, um documentário coberto com desenhos de grande beleza e afeto. Um filme memorialístico e político bem diferente de tantos que o antecederam.
Confira os filmes vencedores:
LONGA-METRAGEM BRASILEIRO:
“Ferrugem” (PR) – melhor filme, roteiro (Jessica Candal e Aly Muritiba) e som (Alexandre Rogoski)
“Benzinho” (RJ) – Melhor filme pelo Júri Popular, Prêmio da Crítica, melhor atriz (Karine Telles) e melhor atriz coadjuvante (Adriana Esteves)
“A Voz do Silêncio” (SP) – melhor direção (André Ristum) e montagem (Gustavo Giani)
“10 Segundos para Vencer” (RJ) – melhor ator (Osmar Prado), melhor coadjuvante (Ricardo Gelli)
“Simonal” (RJ) – melhor trilha sonora (max Castro e Simoninha), melhor fotografia (Pablo Baião) e melhor direção de arte (Yurika Yamasaki)
“A Cidade dos Piratas” (RS) – Menção Honrosa do Juri “por seu humor não domesticado”
LONGA-METRAGEM LATINO-AMERICANO:
“Las Herederas” (Paraguai) – melhor filme pelo Júri Oficial, pela Crítica e pelo Público, melhor direção e melhor roteiro (ambos de Marcelo Martinessi), melhor atrizes (para Ana Brum, Margaita Irún e Ana Ivanova).
“Averno” (Bolívia) – Prêmio Especial do Júri, melhor fotografia (Nelson Waisntein).
“Mi Mundial” (Uruguai) – melhor ator (Nestor Guzzini)
CURTA-METRAGEM BRASILEIRO:
“Guaxuma” (PE) – melhor filme
“Estamos Todos Aqui” (SP) – Prêmio Especial do Júri
“Jairo” (SP) – melhor direção (Fábio Rodrigo)
“Torre” (SP) – Prêmio da Crítica, Prêmio do Juri Popular e direção de arte
“A Retirada Para um Coração Bruto”(MG) – melhor ator (Manoel do Norte), melhor roteiro (Marco Antônio Pereira), melhor música (Manoel do Norte)
“Aquarela” (MA) – melhor montagem (Thiago Kistenmacher), melhor som (Fábio Carneiro Leão)
“Nova Iorque” (PE) – Prêmio Canal Brasil, melhor fotografia (Beto Martins)
“Catadora de Gente” (RS) – melhor atriz (Maria Tugira Cardoso)