Fest Brasília – Duas ilhas baianas na origem de dois concorrentes
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)
As ilhas de Itaparica e Grande são cenários de dois longa-metragens de DNA baiano, exibidos no sexto dia de mostras competitivas do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
O primeiro, “O Outro Lado da Memória”, de André Luiz Oliveira, concorre ao Prêmio Câmara Distrital, ao Marco Antônio Guimarães, por compor-se com várias camadas de material de arquivo, e ao Prêmio Zózimo Bulbul, dedicado a filmes que valorizem a cultura, sujeitos e subjetividades afro-brasileiros.
O segundo longa, “Ilha”, é uma realização da mesma dupla (Glenda Nicácio e Ary Rosa) do festejado “Café com Canela”, bem-recebido no Festival de Brasília do ano passado pelo público e pelo júri oficial (ganhou o Prêmio do Júri Popular, além de melhor atriz, para Val Soriano, e melhor roteiro, para os dois diretores).
O sexto longa-metragem do baiano-brasiliense André Luiz Oliveira — “O Outro Lado da Memória” — poderia muito bem estar representando Brasília na competição nacional. Qualidades para tanto não lhe faltam. É, sem sombra de dúvida, o melhor dos três longas selecionados para a Mostra Brasília, o mais substantivo, denso e inventivo. Aos 69 anos, o cineasta baiano, que adotou Brasília, realiza documentário, com inserções ficcionais, para rever projeto — a adaptação cinematográfica do épico “Viva o Povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) — que consumiu uma década de trabalho dele e da numerosa equipe que mobilizou, na Bahia e no Distrito Federal.
A Ilha de Itaparica (onde Ubaldo nasceu e cresceu) é um dos cenários privilegiados do romance. E do filme. Nos primeiros momentos do documentário-resgate, o cineasta passeia, com um guia, por ruínas de impressionante igreja, cujas paredes centenárias e intrincadas raízes sustentam imensa árvore. A Ilha se configura como um espaço mítico e místico, um dos berços da gente afro-brasileira. Um psicanalista, com quem o cineasta conversa com afetuosa camaradagem, relembrará que “nós, o povo brasileiro, somos filhos de índias e, com a chegada dos escravos da África, de mães negras”. Mas que esta duas matrizes não são, por nós, aceitas, pois as renegamos.
Depois de Itaparica, André alterna encontros e conversas ambientadas em Salvador e Brasília, as duas bases estratégicas do épico (que não se concretizou) “Viva o Povo Brasileiro”. O filme, afinal, somaria, em sua produção, recursos financeiros oriundos das duas unidades da federação e seria comandado pelos produtores Ronaldo Duque e Márcio Curi.
Há momentos de beleza arrebatadora no filme. Depois da igreja-ruína-árvore, mostrada em ângulos que magnetizam nosso olhar, vemos um prédio no coração de Brasília, captado em vista aérea e atordoante. O que este prédio tem a ver com o sonho desfeito de se filmar “Viva o Povo Brasileiro”? A resposta virá em seguida: ali (no outrora confortável Torre Palace Hotel, agora um esqueleto em ruínas), André e seus produtores estruturaram o projeto de “Viva o Povo Brasileiro” e mantiveram imensa troca de ideias.
Depois de vermos cenas de testes de atores, quase todos negros, das oficinas de preparação de elenco e das usinas de criação de cenários, figurinos e adereços de época, chegaremos a momento epifânico por sua alta potência criativa: imagens que correm na tela sob os versos de beleza convulsiva de “Haiti”, cantados por Caetano e Gil no imprescindível “Tropicália 2″. Uma canção-rap que tem tudo a ver com a alma de “O Outro Lado da Memória”. Veremos ainda, e ao longo dos 115 minutos do filme, mais um momento sublime: aquele em que o ator Bertrand Duarte dá vida a um dos reveladores personagens do romance de João Ubaldo.
No debate do documentário, o cineasta explicou que muito do material de seu sexto longa-metragem foi produzido recentemente. Da gênese do projeto épico ubaldiano foram compilados os testes de elenco, as oficinas de cenografia e as visitas a dezenas de locações. Dos arquivos, vieram também registros do carnaval-homenagem a João Ubaldo e ao Povo Brasileiro, ocorrido em Salvador (Margareth Menezes, Caetano e Gil cantam em honra ao conterrâneo, num trio elétrico). Já as encenações (incluindo a do navio que navega em mares de plástico felliniano), foram realizadas já para o documentário-resgate.
Assim como as conversas com produtores, que se ampliam no diálogo com o cenógrafo Moacyr Gramacho, com os fotógrafos Luís Abramo e Walter Carvalho, com os artistas e gestores culturais (Gilberto Gil e Orlando Senna), com gente do candomblé e com intérpretes do Brasil e do romance originário (Antônio Risério e muitas outras e sábias vozes).
Ninguém deve temer um filme de “cabeças falantes-e-declamadoras de discursos prontos”. Tudo no documentário compõe-se com a matéria do afeto e da memória, jamais com análises acadêmicas e frias. O afeto, tão presente, se amplia quando André procura a cineasta Alice Andrade, filha de Joaquim Pedro, que vivera processo semelhante: o desejo de filmar um épico (“Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre), mas sofrera com a falta de recursos financeiros para a empreitada. Joaquim morreu, de câncer, aos 56 anos, com o projeto inconcluso. Não teve tempo, como André, para buscar as razões do que o impediu de realizar o épico freyriano.
Ninguém pense que “O Outro Lado da Memória” é um corpo cinematográfico temperado no ressentimento de um realizador que consumiu imensas energias em projeto frustrado. Ou seja, não há o mínimo parentesco entre ele e longa assemelhado: “A Primeira Missa – Ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum”, no qual a cineasta Ana Carolina exorcizou a impossibilidade de realizar épico ambientado nos tempos do Descobrimento.
Na noite de premiação, André deve subir ao palco para receber alguns prêmios. O Troféu Marco Antônio Guimarães, atribuído pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, ele só perderá se “Humberto Mauro”, de André di Mauro, sobrinho-neto do patriarca do cinema brasileiro, for mesmo muito bom.
A ilha baiana, de nome Grande, batiza o segundo longa-metragem da dupla Rosa e Nicácio (“Ilha”) e lhe serve de cenário. O filme, na verdade um metafilme, conta história singular. Um jovem periférico, de nome Emerson (o ator Renan Motta), sequestra um badalado cineasta soteropolitano, Henrique (Aldri Anunciação), e o obriga a realizar um filme sobre sua história (a emersoniana), ambientada no precário território ilhéu. Território onde o rapaz nasceu, cresceu e teve suas vivências e infortúnios familiares. De início, o cineasta, coagido, se rebela. Mas acabará entrando no jogo cinematográfico junto com Emerson. O ilhéu, que vive do tráfico de substâncias proibidas, supervisionará a realização de testes de elenco com moradores da Ilha e as filmagens propriamente ditas.
Todos os atores do filme são negros: o cineasta, seu personagem e os familiares deste no filme-dentro-do-filme (a “mãe” Valdinéia Soriano, o “pai” Sérgio Laurentino). Aos poucos, Henrique começará a se interessar pelas filmagens, às quais chegara coagido, a realizar o inusitado projeto e a viver relação homoafetiva com Emerson. Para a cena erótica mais comentada do filme, durante o debate, Ary Rosa, autor também do roteiro, contou que inspirou-se no filme “Nova Dubai”, de Gustavo Vinagre. A partir desta matriz, criou longa e tórrida cena de sexo entre os dois personagens. Construída, porém, com menos “explicitude” (apenas com a câmara registrando pernas e pés dos amantes e seus gritos e gozos).
Se “Café com Canela” era protagonizado por duas mulheres, “Ilha” se constrói em torno de dois homens. O fato do personagem Emerson ter sido molestado, na infância, pelo pai, tornando-se homossexual, incomodou uma debatedora. Ela perguntou ao cineasta-roteirista se ele não temia que esta leitura mecânica prejudicasse a compreensão e fruição do filme. Ary respondeu que “esta questão o preocupava muito” e que tomara, no desenvolvimento do roteiro, todos os cuidados para não criar personagens e situações desprovidos de pensamento e complexidade.
O codiretor de “Ilha” lembrou que o roteiro foi escrito por ele, mas que Glenda o acompanhou em cada nova versão. “Só considero um roteiro pronto, quando ele passa pela leitura dela”. Não se sabe se a dupla, formada no curso de cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, continuará junta em novos projetos. Ou seja, se farão um terceiro ou quarto longa-metragem em parceria. Eles formaram um casal nos anos em que gestaram e realizaram “Café com Canela” e “Ilha”. Agora, separados, são vizinhos e continuam defendendo o desenvolvimento de “um cinema no interior”. Ou seja, a realização de filmes fora de eixos tradicionais (grandes cidades como Rio, São Paulo, Recife, BH, Porto Alegre, Fortaleza etc). A base dos curtas e longas da produtora Rosza (sim, com s e z), na qual Glenda e Ary são sócios, é a cidade baiana de Cachoeira, separada do município de São Félix pelo Rio Paraguaçu.
Durante o debate, Ary Rosa, que estudou Filosofia, antes de cursar Cinema na UFRB, analisou um dos conceitos que serviram de fundamento ao filme “Ilha”: o de que estamos vivendo momento no qual atingimos a epifania a partir do entendimento do outro. Ou seja, não estamos mais no tempo em que a ideia hegemônica, fundamento da Filosofia da Libertação, tinha no intelectual orgânico a força emancipadora. Este “intelectual orgânico” faria a mediação, ajudaria o outro a emancipar-se (este seria incapaz de fazê-lo sozinho). Agora — exemplificou — como ocorre com Margarida e Violeta, em “Café com Canela”, e com Emerson e Henrique, em “Ilha”, não há mais necessidade de um intermediário. Eles mesmo são os donos de sua subjetividade e forças transformadoras.
O curta brasiliense “Aulas que Matei”, de Amanda Devulsky e Pedro B. Garcia, foi integralmente rodado na cidade-satélite de São Sebastião, em ambiente escolar. Escrito por seus diretores em parceria com os estudantes-personagens, o filme registra o cotidiano fragmentado de alunos (e professores) da rede pública: um aula é interrompida por “visita-vistoria” da polícia, um aluno desaparece da escola e preocupa o professor, há uma greve em processo de gestação, mas que um mestre novato vindo da escola privada questiona, uma aluna entende, durante a explanação do professor de Filosofia, que as ideias de Platão estão distantes de seu cotidiano, obrigando o docente (interpretado pelo ator-cineasta Marcus “Mamata” Curvelo) a propor outro assunto. Tudo se soma para formar um todo lacunar e com algo de melancólico, apesar dos sutis rasgos de humor do personagem de Curvelo.