Fest Brasília – Festival mostra o terror “A Sombra do Pai” e mais dois filmes femininos, “Plano Controle” e “Guaxuma”
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)
Três mulheres-cineastas comandaram a sexta noite da mostra competitiva do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro: a baiano-paulistana Gabriela Amaral Almeida, com seu longa de horror, “A Sombra do Pai”, a mineira Juliana Antunes, com o curta ficcional “Plano Controle”, e a alagoano-pernambucana Nara Normande, com a premiadíssima animação em areia, “Guaxuma”.
O público recebeu bem os três filmes. O primeiro, “Plano Controle”, um híbrido de ficção científica e comédia satírico-politizada, arrancou risos por sua irreverência. Juliana Antunes, de 29 anos, que percorreu festivais brasileiros e internacionais com o documentário “Baronesa” (visto por quase 10 mil espectadores nos cinemas), realizou um curta centrado em Marcela (Marcela Santos), jovem que vive na periferia de uma grande cidade, sonhando com novos mundos. De posse de um “serviço de teletransporte”, ela tenta chegar a Nova York. Mas os dados digitais são parcos e ela continua no mesmo (e desolador) território. Começa, então, a perambular em busca de mais créditos, de forma que possa realizar seus desejos. Mas, como o país, ao invés de avançar, ela vai parar, junto com um amigo (Uirá dos Reis) no passado, em plena década de 1990, tempo da banheira do Gugu, dos hits dos Mamonas Assassinas e da nave espacial de Xuxa.
No debate do filme, Juliana contou que ao correr mundo com “Baronesa”, sentiu-se muito bem em poder, em cidades européias, andar sozinha e tranquila à noite. A partir desta experiência, concluiu que, por ser branca, falar língua estrangeira e ser cineasta, foi bem recebida por onde passou. Tem, porém, consciência de que milhões de brasileiros não desfrutam destes reconhecimentos e direitos. Por isto, no palco do Cine Brasília e no debate do dia seguinte, reafirmou seu empenho para evitar que “o Brasil mergulhe nas trevas”. Contou que tem batalhado, incansavelmente, pela conquista de um, dois ou três votos, o que for possível, em prol da vitória das forças progressistas.
Depois de “Baronesa” e da “mudança de estilo e abordagem” que gerou “Plano Controle”, a realizadora mineira está preparando “Bate e Volta Copacabana”, seu segundo longa, cuja sinopse ela antecipou: “como sou sapatão, estou cada vez mais interessada num cinema lésbico (citou como uma de suas fontes de diálogo o cinema de Chantal Akerman)”. Por isto, ela vai construir um road-movie protagonizado por três lésbicas mineiras, que sonham em conhecer o mar. Para tanto, elas comprarão modesto pacote turístico tipo bate-e-volta rumo à Copacabana. O tempo exíguo do passeio as colocará em situações complicadas, pois “terão que regressar à cidade natal para o trampo da segunda-feira”.
Quem também está interessada no cinema lésbico e admira os filmes de Chantal Akerman (e também os de Lucrécia Martel e Agnes Varda) é Nara Normande, de 31 anos, que vem encantando plateias e festivais com o autobiográfico “Guaxuma”, um curta de animação, que é também “documentário e narrativa ficional”. O filme, uma coprodução Brasil-França, ganhou o prêmio máximo em Gramado. Nele, o ser lésbica não passa de leve insinuação. A protagonista do curta, a própria Nara (que o conduz com sua voz-memória) evoca lembranças de infância em praia alagoana, a de Guaxuma, onde foi criada com muita liberdade (e medos típicos da idade) pelos pais hippies. E cresceu na companhia afetiva de Tayra, uma amiguinha muito querida. Em certo momento, a narradora-personagem conta que era louca por peitões femininos. E, por isto, transformara-se no “terror das amigas da mãe” (desenho em areia a mostra mergulhando o rosto em fartos seios).
O segundo longa de Nara (o primeiro deve ser “As Garças”, parceria com Tião) se chamará “Terra Nua” e terá protagonista lésbica. A diretora adianta que quer filmar muito sexo entre mulheres.
“A Sombra do Pai”, o segundo longa-metragem de Gabriela Amaral Almeida, 38 anos, é fruto de parceria entre a produtora Acere e a RT Features, de Rodrigo Teixeira. Dramaturga, roteirista e autora de quatro curtas, dois deles solo e muito festejados (“A Mão que Afaga” e “Estátua”, mais “Náufrago”, em parceria com Matheus Rocha, e “Terno”, com Luana Demange), Gabriela dedica-se, como Juliana Rojas (de “Trabalhar Cansa” e “Sinfonia da Necrópole”), ao diálogo com o cinema de horror. Seu longa de estreia, o sangrento “O Animal Cordial”, protagonizado por Murilo Benício e Luciana Paes, passou pelo circuito comercial com ótima recepção crítica, mas poucos espectadores.
Com franqueza rara e surpreendente, a cineasta admitiu que os sete mil ingressos vendidos não são nada. Sentiu-se, ao ver findas as cinco semanas em que o filme permaneceu em cartaz, como se tivesse feito um filme para um círculo de amigos. Mas não, fizera um longa-metragem para dialogar com o grande público adepto do gênero terror.
Gabriela conhece bem o gênero e seus subgêneros, pois estudou o assunto em dissertação de mestrado defendida na UFBA, em Salvador. Por isto, expôs substantiva justificativa para o fracasso comercial de “O Amigo Cordial”: “faz parte de nossa natureza, como brasileiros, o apagamento do nosso terror cotidiano. Como sociedade, não refletimos sobre nosso horror histórico e presente. Nosso público está acostumado com abóboras do Halloween, com sangue na neve ou no colégio, enfim, com os horrores codificados do cinema norte-americano”. Já de “nossos horrores, seja a escravidão, a ditadura militar ou o pavoroso momento que estamos vivendo, se quer distância”. E mais: “somos sujeitos narcisistas, que estão sempre colocando a culpa no outro”.
“A Sombra do Pai” é menos violento, pelo menos graficamente, que “O Animal Cordial”. O filme começa com uma sepultura sendo aberta a marretadas. No caixão, estão os restos mortais da mulher do operário Jorge (Júlio Machado) e mãe da menina Dalva (Nina Medeiros). Com a morte prematura da esposa, Jorge tornou-se um homem taciturno, mórbido e encerrado em si mesmo. A filha pequena é cuidada pela tia (Luciana Paes), que está para casar-se e, portanto, partir. A menina, de apenas nove anos, é obrigada a amadurecer para manter-se sozinha em casa, enquanto o pai pedreiro trabalha duro no canteiro de obra. Para agravar o mundo de perdas do operário, ele assiste à morte do melhor amigo em (aparente) acidente de trabalho.
Fã de filmes de terror, a pequena Dalva cultiva três lembranças que o pai trouxe do caixão da mãe (uma longa trança, uma correntinha, que pendura no pescoço, e dois dentes). A menina acredita ter poderes sobrenaturais e sonha trazer a mãe de volta ao mundo dos vivos. Enquanto o pai mergulha cada vez mais na dor, a “menina-adulta” persegue, obstinada, o seu intento.
Uma das principais colaboradoras de Gabriela, a montadora Karen Akerman (a outra é a grande fotógrafa uruguaio-brasileira Bárbara Álvarez), contou que, ao contrário da cineasta, fã ardorosa e desde a infância do cinema de terror, ela não se interessa pelo gênero. Detesta sentir medo nos cinemas. E que, além da profunda amizade que a une a Gabriela, integrou a equipe do longa por ver em “A Sombra do Pai”, “um filme de horror, sim, mas também uma história de amor e perdas, que emociona muito”. A montadora contou que reviu os filmes de Hitchcock, para “entrar o modo de suspensão” e, assim, mergulhar na construção de sentimentos como a emoção, o amor e o alívio.
Para confirmar a natureza híbrida de “A Sombra do Pai” — uma história de horror com muito de drama social escorado no conceito marxista de alienação pelo trabalho brutal — Gabriela citou uma de suas principais fontes de diálogo, um longa que ama apaixonadamente: “O Espírito da Colmeia”, do espanhol Victor Erice. Neste filme, realizado em 1973, uma menininha, que vive num pequeno povoado da Espanha, fica obcecada por Frankenstein, que vira na tela de um cinema da era franquista.
Gabriela, para enfatizar a carga de trabalho que ocupa os dias do proletário Jorge, o pai que deixa a menina Dalva sozinha em casa, lembrou que o filme seria uma espécie de “Tempos Modernos do terror”, citando, claro, o clássico de Charles Chaplin, no qual Carlitos, de tanto apertar parafusos, acaba engolido pelas engrenagens.