Em disputa pelo Kikito, “Veneza”, de Miguel Falabella, aposta no poder da imaginação

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

Miguel Falabella subiu ao palco do Palácio dos Festivais para apresentar “Veneza”, seu segundo longa-metragem como diretor (o primeiro foi “Polaróides Urbanas”, de 2008), acompanhado de atores e atrizes de sua numerosa equipe. Antes, porém, leu documento assinado por 63 entidades, em defesa de políticas públicas para o desenvolvimento do audiovisual brasileiro. Num de seus trechos, o documento defende “a permanência e independência” de uma Ancine “cada vez mais ativa, livre e desburocratizada, com foco no desenvolvimento de uma cinematografia forte, capaz de representar o Brasil em toda a sua diversidade”.

Falabella fez-se acompanhar, no palco, por alguns dos atores de seu filme coral. O elenco, dos mais numerosos, soma intérpretes de personagens aglutinadas em bordel decadente e integrantes de um circo. Dira Paes, Eduardo Moscovis, Carol Castro, Daniela Winnitz, André Mattos e Caio Manhete representaram o coletivo de atores, no qual se destacam a espanhola Carmen Maura (de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, entre outros filmes de Pedro Almodóvar), a uruguaia Carmen Vives, a argentina Georgiana Barbarossa e a colombiana Carolina Virgüez. O filme é falado em português, espanhol, ‘portunhol’ e italiano. E conta com trilha sonora na qual destacam-se belos boleros latinos e, em momento especialíssimo e na voz de Du Moscovis, a ária “E Lucevan le Stelle”, da “Tosca”, de Puccini.

Se “Polaróides Urbanas” resultou em uma comédia sem graça e de pouco público, o mesmo não deve acontecer com “Veneza”. O filme, baseado em peça homônima do argentino Jorge Accame, sustenta-se em trama engenhosa e alimentada pelo poder da arte e da imaginação. Uma jovem e bela prostituta (Camila Vives) encontra o amor num cliente italiano, que promete desposá-la e levá-la à Veneza, cidade das pontes, gondoleiros e suspiros românticos. Mas a transferência do interior do Brasil para a Itália acabará por não concretizar-se. Muitos anos depois, já velha e cega, Gringa (agora vivida por Carmen Maura) tem um único desejo: conhecer Veneza e reencontrar o amado. As prostitutas de seu velho e decadente bordel não sabem como realizar o sonho da cafetina, pois vivem com dinheiro escasso.

Próximo ao bordel há um circo, mantido também com dificuldade e programação baseada no humor de dois palhaços e em melodramas descabelados. A encenação de um ingênuo e desmedido dramalhão circense, com fotografia em preto-e-branco, à moda do cinema mudo, constitui um dos bons momentos do filme. Afinal, por contraste, estabelece contraponto às coloridas imagens do puteiro e do circo, que, mesmo decadentes, são fontes de muitas e vivas cores.

A primeira parte de “Veneza” resulta em um filme anacrônico e pesado, apesar da qualidade do elenco e dos créditos técnicos (fotografia de Gustavo Hadba, direção de arte de Tulé Peake etc.). Mas, aos poucos, o poder da imaginação vai injetando vida à narrativa. O plano engendrado pela turma do bordel, em parceria com a trupe circense, para levar Gringa a Veneza inocula interesse e entusiasmo na plateia. O final, surpreendente, causa forte encantamento.

O filme e sua equipe foram aplaudidos, mas não com a mesma e contagiosa euforia de “Pacarrete”. Falta apenas um longa-metragem para completar a competição brasileira (o paulistano “30 Anos Blues”, de Andradina Azevedo e Dida Andrade, que será exibido nesta sexta, 23 de agosto). Quem esperava um grande desempenho de Carmen Maura teve que contentar-se em vê-la em papel mediano, já que não há protagonismo absoluto no filme (ao contrário do que ocorre em “Pacarrete” e “Hebe”). Além do mais, Gringa tem duas atrizes para interpretá-la (uma como a linda prostituta que foi na juventude e outra como a cafetina veterana, doente e cega).

Mais três filmes foram exibidos na sétima noite da mostra competitiva de Gramado: os curtas “A Ética da Hiena”, do paraibano Rodolpho de Barros, e o paulista “Sangro”, de Thiago Minamisawa, em parceria com Bruno H. Castro e Guto BR, e o longa chileno “Perro Bomba”, de Juan Cáceres.

“A Ética da Hiena” trouxe a nata dos atores paraibanos, mais uma vez, à tela do Palácio dos Festivais. Além de Marcélia Cartaxo, o filme conta com Susy Lopes (“Bacurau”), Fernando Teixeira (“Baixio das Bestas”), Servílio Gomes (“Baile Perfumado”), Tavinho Teixeira (“Sol Alegria”) e Daniel Porpino. Na narrativa, de 20 minutos, vemos um empregado em busca de seus direitos trabalhistas. Ele, com problemas de saúde, abre demanda contra a indústria onde trabalha. Advogados e outras figuras ligadas à busca de justiça trabalhista armaram conluio que exigirá atenção do espectador, pois o filme é sutil e lacunar. Conta, portanto, com a inteligência do espectador.

“Sangro” é uma animação sintética (apenas 7 minutos) e sofisticada. Recorrendo ao tríptico “Jardim das Delícias Terrenas”, de Hieronymus Bosch, e a imagens desenhadas sobre as páginas de um livro, o curta ilustra, dando asas à imaginação do espectador, depoimento de um portador do vírus da Aids. A voz, em off, relembra o momento da descoberta, as primeiras sensações e o turbilhão de sentimentos que se apoderou do narrador ao saber-se portador do HIV.

O jovem diretor chileno Juan Cáceres subiu ao palco do Palácio dos Festivais na companhia de seu protagonista, o haitiano Steevens Benjamin, de 23 anos, e de sua diretora de fotografia, Valeria Fuentes. E avisou: “aqui estamos com uma ‘película calejera’, realizada sem roteiro e com muita liberdade narrativa. Um filme para jovens, urgente, de baixo custo, produzido de forma totalmente independente”. Valéria acrescentou: “para materializar esta urgência e estar perto dos atores, preferimos usar a câmara na mão”.

“Perro Bomba” acompanha a trajetória de Steevens Benjamin, um imigrante, que chegara do Haiti para tentar a vida em Santiago do Chile. Ele encontra trabalho na construção civil. Um dia, perde a cabeça. Agride o patrão (Alfredo Castro, protagonista de “De Longe Eu te Vejo”, Leão de Ouro em Veneza e ator constante nos filmes de Pablo Larraín). Afinal, ao ouvir discurso discriminatório (haitianos seriam preguiçosos e portadores de vírus da Aids), o jovem não se conteve. Seu ato violento foi parar nas manchetes dos jornais. Até a comunidade haitiana, muito religiosa, o condenou.

Imigrante, negro, pobre e… violento. Apesar de reiterados pedidos de desculpa e da ajuda de uma ONG que atende a imigrantes, a vida de Steevens não será fácil. O filme utiliza inserções musicais de artistas jovens e negros (rappers etc.) em meio à narrativa, constituindo vibrante contraponto às agruras do imigrante, que perambula pelas ruas.

O haitiano contou, no palco, que veio da zona rural do país centro-americano e que sempre sonhou em ser ator. Estava, portanto, feliz com sua estreia — e como protagonista — de um longa-metragem. “Perro Bomba” recebeu prêmios em diversos festivais (Munique, Málaga, Toulouse e Guadalajara). Está no páreo para o troféu Kikito de melhor filme latino-americano.

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