Pássaros de Verão
Por Maria do Rosário Caetano
“Pássaros de Verão”, o novo filme que o cineasta colombiano Ciro Guerra (o mesmo do festejadíssimo “O Abraço da Serpente”), realizou em parceria com Cristina Gallego, chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 22 de agosto.
Um ponto liga “Pássaros de Verão” ao “Abraço da Serpente”: o interesse por povos originários. No filme, realizado em poético preto-e-branco e que concorreu ao Oscar de melhor longa estrangeiro, em 2016, Ciro Guerra mergulhava na complexa relação de homem branco (um etnólogo e explorador que buscava rara planta medicinal) com Karamakate, um xamã amazônico, último sobrevivente de sua tribo.
Em “Pássaros de Verão”, populações indígenas, já aculturadas, se relacionam com práticas mafiosas de comércio de drogas (primeiro a maconha, depois a cocaína) e com armamentos de alta letalidade.
Este novo filme, feito em exuberantes cores e ambientado em paisagens que evocam os épicos de Sérgio Leoni, conquistou o Prêmio Fênix, outorgado por críticos ibero-americanos, e foi eleito o melhor longa-metragem no Festival de Havana, em dezembro último. Sua protagonista feminina, Carmiña Martínez, que interpreta a matriarca Úrsula Pushaina, conquistou os mesmos prêmios por seu desempenho (o Fênix e o Coral). Coube a “Pássaros de Verão” iniciar sua carreira na Quinzena dos Realizadores, em Cannes 2018. Merecia estar na disputa pela Palma de Ouro.
Desde sua primeira exibição no festival francês, o filme vem se fazendo acompanhar de muitos elogios. Há quem o veja como uma espécie de “O Poderoso Chefão colombiano”. Em comum com a saga de Coppola, há a briga entre famílias pelo domínio do comércio de drogas-e-armamentos e a disputa por territórios. Mas o que sobra nos três “Chefões” (e não faz nenhuma falta a “Pássaros de Verão”) são glamour e espetacularizão. Se Coppola convocou os maiores astros de Hollywood (Marlon Brando, Robert de Niro, Al Pacino) para protagonizar suas tramas vindas do best-seller de Mario Puzzo, Ciro Guerra e Cristina Gallegos mobilizaram intérpretes pouco conhecidos e muitos “atores naturais” (ou seja, gente oriunda das comunidades retratadas).
Só duas atrizes são bem conhecidas na Colômbia: a veterana Carmiña Martínez, que vem de sólida carreira no teatro, e Natalia Reyes (Zaida, filha da matriarca), que faz carreira na TV. Por sua beleza exótica, ela já foi convocada a trabalhar em mais um derivado da franquia “O Exterminador do Futuro”.
José Acosta, que incorpora o jovem protagonista Raphayet Abuchaibe, e o ator Wayúu José Vicente Cotes (mensageiro entre grupos em conflito e tio de Raphayet) são apostas étnicas dos diretores.
Se a pegada de Coppola liga-se à tradição das grandes narrativas hollywoodianas, a dos colombianos é tributária do cinema documental. Mesmo que os diretores e seus roteiristas tenham construído narrativa fabular, ela traz muito da realidade vivida por populações de La Guajira e Sierra Nevada de Santa Marta (aqui, dizem o especialistas, se planta e se colhe a melhor marijuana das Américas).
“Pássaros de Verão” revela os costumes e códigos de honra de população indígena, no seio da qual poucos dominam a língua espanhola. O idioma corrente entre eles é o Wayuunaiki, falado na costa caribenha colombiana. O filme começa no emblemático ano de 1968, quando a Contracultura mobilizava a juventude norte-americana interessada em novas experiências de vida. Entre elas, fumar maconha ou experimentar LSD. Jovens, muitos deles hippies, foram convocados a prestar serviços nos chamados “Corpos da Paz” (espécie de super-Projeto Rondon made in USA), em diversos países da América Latina.
Alguns dos que foram para a Colômbia ajudaram a estabelecer pontes entre produtores da erva e consumidores norte-americanos.
No centro da narrativa de “Pássaros de Verão”, está uma família do povo Wayúu, liderada por Raphayet Abuchaibe e pela sogra Úrsula Pushaina. Sua maior transformação se dará ao longo de década que mudou os rumos do país e ganhou até nome: “La Bonanza Marimbera” (período em que o tráfico ganhou imenso peso, de 1975 a 1985).
Um rapsodo, à moda do grego Homero, vai narrar, em cinco Cantos, a história de Raphayet, jovem de origem próxima aos Wayúu, que domina o espanhol e vive de negócios miúdos ao lado do arijuana Moncho (Jhon Narvaez), negro esguio, descolado e craque nos passos do vallenato. Um arijuana, para os Wayúu, é o forasteiro, um “estranho”, aquele que fala espanhol.
Na companhia deste amigo, uma espécie de “Zé Pequeno do Caribe”, Raphayet tentará arrumar dinheiro para pagar o pesado dote exigido pela matriarca Úrsula em troca da mão da bela filha Zaida (muitas cabeças de gado bovino e caprino, além de colares de pedra sagrada para os Wayúu).
Ao concluir que jamais ajuntará tal patrimônio, Raphayet aceitará traficar marijuana. Seus principais clientes serão compradores norte-americanos, que chegam em pequenos aviões. Começa, então, o Canto II, intitulado “As Ervas Selvagens”. Os dois amigos e seus familiares começarão a desfrutar da “Bonanza Marimbera”.
Mas o Canto III – “As Covas” – já espalhará sangue pela desértica região onde vivem os Wayúu. Os destinos de Raphayet e de Moncho serão muito diferentes. O primeiro, já casado e pai de dois filhos, conhecerá a glória financeira. Viverá numa casa, tipo bunker, no deserto.
No Canto IV, vem “A Guerra”. Mais sangue vai correr. Registre-se que Gallegos e Ciro Guerra não são adeptos de cenas gráficas banhadas em sangue e com corpos dilacerados. Tudo é apenas insinuado. Não há nenhuma espetacularização da violência. O Canto V, “Limbo”, encerrará este notável mergulho dos dois realizadores colombianos em parte da trágica história recente de seu país.
Ciro Guerra e Cristina Gallego, diretor e produtora de “O Abraço da Serpente”, lembraram, em entrevistas à imprensa internacional, que receberam elogios por ter (neste filme) fugido do narcotráfico, tema que dilacera a autoestima do povo colombiano. Vide a má fama de nomes como Pablo Escobar e dos Cartéis de Cali e Medelín.
Agora, que fizeram de “Pássaros de Verão” um filme “de gângsteres em guerra constante”, no qual “quebrar códigos culmina em vingança e ofensas devem ser pagas com sangue ou dinheiro”, correram o risco de ser igualados aos que vêem a Colômbia como território preferencial do tráfico de drogas.
Os dois realizadores discordam. Ciro lembra que a abordagem do filme “é completamente diferente daquelas que já foram contadas sobre crimes e tráfico de drogas”. O que ele e Cristina buscaram foi “o começo de tudo”, a origem e a base “daquilo que nós ainda estamos vivendo”.
Os roteiristas Maria Camila Arias e Jacques Toulemonde construíram — lembrou o cineasta — “uma história local, mas, ao mesmo tempo universal, de como o Capitalismo, no seu estado mais selvagem, funciona em uma sociedade não preparada para praticá-lo”.
Além de uma história épica e fascinante, com ótimos diálogos, de atores convincentes e de uma fotografia de corpos e de imensos espaços (nunca folclorizados), há que se prestar atenção na trilha sonora. Num épico narrado (cantado) por um rapsodo, a musicalidade é vital. Os sons do lugar – seja de instrumentos típicos, seja dos bichos (há muitos e simbólicos, a começar pelos que dão título ao filme, os pássaros de verão, e somam-se a gafanhotos, gaviões e aves pernaltas) – há referências vindas do próprio cinema. Como os sons do marranzano (micro-berimbau de boca), instrumento que as trilhas de Ennio Morriconi imortalizaram nos western-spaghetti.
Enfim, uma recomendação: não percam “Pássaros de Verão”, um filme de rara força narrativa, prova da vitalidade do cinema colombiano, hoje um dos mais efervescentes da América Latina.
Pássaros de Verão / Pájaros de Verano
Colômbia, em parceria com Dinamarca, México, Alemanha, Suíça e França, 125 minutos, 2018
Direção: Cristina Gallego e Ciro Guerra
Roteiro: Maria Camila Arias e Jacques Toulemonde, a partir de argumento de Cristina Gallego
Elenco: Carmiña Martínez, José Acosta, Natalia Reyes, Jhon Narvaez, Greider Meza, Jose Vicente Cotes e Juan Martínez