Cine São Luiz lotado aplaude Noite Nordestina

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza (CE)

O Cine São Luiz teve sua noite nordestina. Foram exibidos, na quarta-feira, 4 de setembro, o longa documental “Soldados da Borracha”, e quatro curtas, três cearenses e um pernambucano. A plateia, formada com grande número por estudantes das quatro escolas de Cinema de Fortaleza (Porto Iracema, Vila das Artes, a da Universidade Federal do Ceará e a da Unifor), aplaudiu, com fervor, os cinco filmes.

“Soldados da Borracha”, quarto longa-metragem de Wolney Oliveira, foi exibido em caráter hors concours, já que o cineasta é o diretor-executivo do Cine Ceará. O filme teve sua estreia na competição oficial do prestigiado Festival É Tudo Verdade, de São Paulo, em abril, e conquistou o Prêmio ABD (Associação Brasileira de Documentaristas).

Em sua pré-estreia cearense, “Soldados da Borracha” fez o público rir e chorar. Rir dos divertidos depoimentos de uma dezenas de “soldados da borracha”, sobreviventes de trágica experiência na Amazônia, quando participaram, convocados por Getúlio Vargas, da coleta de látex, matéria-prima da qual necessitavam os EUA e os Aliados que enfrentaram o Nazifascismo. E fizeram chorar com depoimentos que registraram os sofrimentos de 60 mil soldados (metade cearenses), que enfrentaram doenças (sendo a malária a mais recorrente), flechas indígenas, tiros na calada da noite e animais perigosos (onças, cobras e jacarés).

Wolney Oliveira, em debate no auditório do Oásis Atlântico Hotel, se fez acompanhar de sua produtora, Margarita Hernandez, do autor da trilha sonora, o sergipano D.J. Dolores, e de um dos três diretores de fotografia do filme, Rogério Resende.

“Faço filme”— disse o realizador cearense — “para motivar as pessoas a rir ou a chorar. Quando choram e riem, então, entendo que atingi meus objetivos”. Depois, lembrou que a história oculta dos “Soldados da Borracha” é uma de suas mais arraigadas paixões. Afinal, “só aos 44 anos (estou com 59) ouvi falar pela primeira vez desta imensa leva de trabalhadores que partiu para a Amazônia, dentro do esforço de guerra, iludida por uma série de promessas”.

Quinze anos atrás, Wolney leu uma série de reportagens no jornal O Povo, sobre os 60 mil convocados pelo S.E.M.T.A. (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia). Descobriu, com a leitura, que a eles foram prometidos trabalho farto, ótimos salários e ampla assistência médica. Nos anos de 1942 e 43, milhares de nordestinos atenderam ao chamado, sob o slogan “Borracha para a Vitória”.

Os EUA estavam sem fornecedores de látex, pois o Japão, integrado ao Eixo (Alemanha e Itália), dominava 97% das regiões produtoras do Pacífico, incluindo a estratégica Malásia. A necessidade de borracha para o imenso mercado norte-americano e para os artefatos bélicos era vital. O presidente Franklin Roosevelt entendeu-se com Getúlio Vargas e mandou US$100 milhões ao Brasil para que explorasse, em regime de urgência, a borracha amazônica.

A região conheceu, então, seu segundo grande ciclo da borracha. “Os especialistas que consultamos”— conta Wolney — “calculam que foram mobilizados 60 mil trabalhadores, e que 30 mil deles perderam suas vidas na floresta tropical, que desconheciam por completo”.

O S.E.M.T.A. mobilizou seus quadros entre a população flagelada pela seca em diversos Estados nordestinos. Mobilizou, também, mineiros e cariocas. “Do Rio de Janeiro”— lembrou o cineasta —, “como provam fontes documentadas, vieram 1.200 presidiários, a quem Vargas libertou para que participassem do esforço de guerra, extraindo da Amazônia o nosso ouro branco”. Esta parte, a que envolve os cariocas, não está em “Soldados da Borracha”, narrativa condensada em 79 enxutos minutos.

“Vou contá-la em série de quatro capítulos, que estou preparando para a TV O Povo” — disse Wolney, depois de confessar que não consegue afastar-se da saga dos soldados da borracha. “Primeiro”— relembrou —, “realizei um média-metragem para o projeto DocTV chamado “Borracha para a Vitória”, (2004), depois um livro-álbum (“Soldados da Borracha: Os Heróis Esquecidos”), em parceria com o historiador Marcos Vinícius Neves, agora, o longa-metragem, depois, virá a série de TV”.

Para “Soldados da Borracha”, foram gravadas 220 horas em locações no Acre, Rondônia, Amazonas, Pará, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. “Não tenho ciúmes, nem apego exagerado ao que filmo, dou liberdade total aos meus montadores. Sei ouvir e aceitar sugestões”. Das mais de 200 horas que ficaram fora da montagem final (assinada por Mair Tavares e Leyda Nápoles), sairá a série, na qual outro tema ganhará relevo: a presença das mulheres-soldados da borracha.

“No meu longa, há significativa presença de mulheres”— detalha o cineasta —, “porque tive a sorte de encontrar algumas delas. É claro que a maioria absoluta dos trabalhadores recrutados eram homens, pois a coleta do látex era árdua e a selva muito inóspita. Nos registros fotográficos que encontramos, os caminhões, que transportavam os soldados, estão cheios de homens. Mas alguns conseguiram levar suas mulheres e filhos”. Além do mais, “depois das primeiras e grandes levas de arregimentados, notícias não muito animadoras começaram a se espalhar. Já não havia aquela sólida crença de que, na Amazônia, encontrariam um novo Eldorado”. Os que partiram nas levas derradeiras “levaram suas mulheres, que trabalharam muito. Por isto, dedicaremos um capítulo da série a elas”.

A ausência de mulheres nos territórios de coleta do látex dá origem aos momentos mais divertidos do filme, embora trágicos. É que os nordestinos, cearenses em especial, são donos de humor único. Três deles relembram as “danças das quatro bolas”. Ou seja, “aquelas festas em que dançava homem com homem” (daí a citação aos genitais masculinos). Um dos soldados da borracha assegurou que preferia ficar bebendo sozinho, já que “não estava interessado em dançar com macho”.

As garrafas de cachaça eram abundantes na selva, assim como armas de fogo (para legítima defesa). Um soldado da borracha conta, com dura sinceridade, que conseguiu somar uma boa quantia de dinheiro, trabalhando como um condenado e sem se endividar no barracão. Resolveu, então, fugir daquele inferno. Mas lhe armaram uma tocaia. Eram cinco interessados em seus proventos. Ele percebeu o que se passava, apressou o passo e escondeu-se atrás de uma árvore. Quando seus perseguidores apareceram, disparou. “Pá, pá, pá….”. Matou os cinco. E fugiu.

O filme estrutura-se sobre poderosas imagens de arquivo (localizadas pela dupla Antonio Venancio e Carla Siqueira, nos EUA, Europa e Brasil), em depoimentos colhidos ao longo dos últimos anos (dos pesquisadores brasileiros Marcos Vinícius Neves e Lira Neto, este, biógrafo de Getúlio Vargas, e do norte-americano Gary Leeman). Há, também, uma grande variedade de depoimentos de soldados da borracha, que foram a Brasília clamar por indenização que lhes era devida. Cálculos de advogados sindicais previam que cada sobrevivente teria direito a R$800 mil. O Congresso Nacional garantiu, em 2014, valor simbólico de R$25 mil. A Constituinte de 1988 dera a eles o direito de receber auxílio mensal no valor de dois salários mínimos.

Wolney Oliveira protesta: “é um absurdo, uma falta de respeito”. E estabelece parâmetro: “os 25 mil pracinhas da FEB (Força Expedicionária Brasileira), que foram lutar na Itália, voltaram com recepção de heróis, generosa aposentadoria, atendimento médico-dentário e um imenso monumento em lugar nobre no Rio de Janeiro. Entre os 25 mil que para lá foram, registraram-se perto de 500 baixas”. Já “entre os 60 mil que foram coletar borracha para o esforço de guerra, na Amazônia, o número é gritante: morreram quase 30 mil trabalhadores”.

Com ênfase, o cineasta registra sua indignação: “os soldados da borracha foram apagados, tornaram-se invisíveis. O Estado não os reconheceu, nunca os homenageou”. Ao contrário, “tudo fez para apagá-los de nossa História”. Com seus dois documentários, com o livro-álbum e com a série, Wolney espera chamar a atenção de todos os brasileiros para “esta grande injustiça”.

Ele só pretende lançar seu novo documentário no segundo semestre de 2020 ou no primeiro de 2021. Antes — avisa — “vou mostrar o filme em festivais brasileiros e estrangeiros. Já tenho vários convites”.

Além de “Soldados da Borracha”, um dos sete longas-metragens cearenses (oito, se contarmos “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz) exibidos no Cine Ceará (o Estado com maior quantidade de longas exibidos nesta edição), a Noite Nordestina contou com os curtas “Marco”, de Sara Benvenuto, “Oração do Cadáver Desconhecido”, de Sávio Fernandes, “O Tempo do Olhar e o Olhar do Tempo”, de Samuel Brasileiro, e “Marie”, de Leo Tabosa. Os três primeiros são cearenses (há cinco curtas do Estado entre os 12 da competição nacional, mais 19 na Mostra Olhar do Ceará). O quarto é pernambucano, mas em parceria com cearenses, presentificada na fotografia de Petrus Cariry e na produção de Arthur Leite. E também nas locações deste road movie funerário que sai de Pernambuco e vem até o Crato, no Ceará.

“Marie” é o mais sólido dos filmes da Noite Nordestina. Recebeu, em Gramado, três Kikitos e o Prêmio Canal Brasil. Participou do Festival Kinoforum, em São Paulo, e tem convites para vários festivais. Sua dramaturgia é construída com ótimos personagens, sendo a protagonista, Marie, interpretada pela atriz transexual Wallie Ruy. Marie, que nasceu menino, batizado de Mário, deixou sua pequena cidade natal, em Pernambuco, para viver sua vida transgênero na metrópole. Regressa, vinte anos depois, já mulher feita, para enterrar o pai. É recebida por Estevão (Rômulo Braga) e sua mãe Alcina (em impressionante interpretação de Divina Valeria, uma das mais conhecidas travestis do país, atriz e cantora com carreira internacional).

Alcina insiste com Marie: o pai queria ser enterrado no Crato, na mesma sepultura em que estavam os restos mortais da esposa. Marie resiste, diz que o pai causara muito sofrimento à esposa e que custaria muito o traslado. Estevão se dispõe a ajudar e o caixão é colocado sobre o capô de uma caminhonete, que segue rumo ao Crato. Um road movie emocionante, com ótimos atores e forte comentário musical (a canção “Força Estranha”, na voz de Roberto Carlos). O filme deve ganhar, aqui, alguns Mucuripes. Ano passado, “Nova Iorque”, do mesmo Leo Tabosa, foi eleito o melhor curta do Cine Ceará.

“Marco” é uma narrativa feminina e feminista. Sua protagonista, Isadora (Ana Luiza Rios) regressa da metrópole rumo a uma cidade do interior. Pelo caminho e até chegar à moradia onde vive sua mãe (Marta Aurélia), mostrará que não é mais a jovem ingênua que dali partira, anos atrás. Ela irá confrontar valores (religiosos, comportamentais) de seus parentes (incluindo a mãe e um tio) e revisitar seu passado. Uma ótima ideia que poderia ter sido melhor trabalhada. O curta contém o germe de um longa-metragem. A realizadora Sara Benvenuto, apaixonada por dramaturgia (ela assina também o roteiro) partiu de fértil ideia e, em parte, realizou seu projeto (destaque para conversa das amigas num carro em movimento, para a interrupção da reza da mãe com sua amigas beatas, e a cena final, entre mãe e filha). Mas falta organicidade ao todo.

“Oração ao Cadáver Desconhecido”, de Sávio Fernandes é, como seu tema, um “OVNI movie”. Sim, um objeto não-identificado. Num lugar ermo, trabalham pai e filho. A deparar-se com um corpo estranho e inerte, o pai decide levá-lo para casa e esquartejá-lo. Só que aquele não é um corpo qualquer. Somando cinema fantástico e ficção científica, o curta se constrói. Os atores são bons e os efeitos espaciais (e especiais) convencem, apesar do filme ser feito com baixíssimo orçamento (dinheiro retirado do próprio bolso). Com roteiro mais consistente, o filme cresceria muito.

“O Tempo do Olhar e o Olhar do Tempo”, de Samuel Brasileiro, um dos roteiristas do longa “Pacarrete”, é um documentário de enxutos seis minutos, que soma depoimento de sua avó, já octogenária, a fotos que disparam o fluxo de suas memórias. Tudo nos induz a acreditar que as fotos documentadas pelo filme pertencem ao baú da família do realizador. Mas no final um letreiro quebrará esta percepção. E trará novas camadas de leitura.

FILMOGRAFIA DE WOLNEY OLIVEIRA

. Anos 1990: nove curtas, entre eles “Sabor a Mí”
. 1999 – “Milagre em Juazeiro” (docudrama)
. 2004 – “Borracha para a Vitória” (média-metragem)
. 2005 – “A Ilha da Morte” (longa ficcional)
. 2011 – “Os Últimos Cangaceiros” (longa doc)
. 2019 – “Soldados da Borracha” (longa doc)
. 2020 – “Vozão, Coração do meu Povão” (doc, em finalização)
. 2020 – “Lampião, o Rei do Sertão” (longa doc, em produção)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.