Saviano e Trapero destacam-se nos créditos de “ZeroZeroZero”
Por Maria do Rosário Caetano
Pelo menos sete nomes que integram os créditos da série “ZeroZeroZero”, disponível para assinantes da Amazon, soam familiares aos cinéfilos brasileiros. Roberto Saviano, autor do livro que deu origem a esta poderosa narrativa sobre máfias e tráfico de cocaína, tornou-se conhecido quando o filme “Gomorra” (Matteo Garone/2008) foi premiado em Cannes, lançado em cinemas de todo o mundo e, depois, virou série de TV.
O jornalista e escritor napolitano de 40 anos vive sob ameaça (e escolta policial) desde 2006. Mesmo assim, não interrompeu a pesquisa e produção de novos livros sobre narcotraficantes. “ZeroZeroZero” foi lançado no Brasil pela Companhia das Letras e resenhado, com entusiasmo, pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares, um de nossos mais respeitados especialistas em violência urbana.
Outro nome que nos soa familiar nos créditos da série é o de Pablo Trapero. Graças ao sucesso do “tanque” (ou blockbuster) mafioso “O Clã”, o argentino tornou-se diretor dos mais requisitados. Coube a ele desempenhar papel de destaque nesta narrativa filmada em várias partes do mundo (América Latina, EUA, Europa, África), com elenco vindo de muitas nacionalidades.
Ao envolver-se com “ZeroZeroZero”, Trapero não está, de forma alguma, abandonando o cinema, no qual brilhou com “Mundo Grua”, “El Bonaerense – Do Outro Lado da Lei”, “Leonera” e “Abutres”. Não trocou suas narrativas densas por obras globalizadas e genéricas. Aos 49 anos, com mãos de mestre, o cineasta constrói imagens fortes e capazes de instigar nossa reflexão. Seus temas e personagens são complexos.
No comando da criação e produção da série, parceria da Amazon com a Sky italiana, está o cineasta Stefano Sollima, 53, do “Gomorra” (em episódios) e do filme “Sicario: Dia do Soldado” (2018). Nos créditos artísticos, encontramos nomes razoavelmente conhecidos (mas nenhum astro hollywoodiano): o irlandês Gabriel Byrne, de 69 anos, o franco-turco Tchéky Karyo, de 66, a britânica Andrea Riseborough, de 34, e o norte-americano Danny DeHaan, também de 34.
Atores italianos (como Adriano Chiaramida, o Dom Minu La Piana, e Giuseppe De Domenico, seu neto Stefano) e mexicanos (atenção para o ótimo Harold Torres, na pele do militar Manuel Contreras) também são protagonistas. Completam o time, atores árabes e africanos em papeis de maior ou menor destaque. Registre-se que estes, embora não sejam protagonistas, são tratados como seres humanos e não como representações de bandidos fanatizados e sem nome.
Faz parte do projeto conceitual de “ZeroZeroZero” fugir de rostos bonitos e célebres. “Gomorra”, o filme que revelou o “jornalismo literário” de Saviano, tinha Toni Servillo, ator-fetiche de Sorrentino, no elenco, mas ele aparecia totalmente desglamourizado e cercado por protagonistas jovens e esqueléticos, vindos do precariado napolitano.
Quem se acostumou a ver mafiosos italianos falando inglês, vai surpreender-se. “ZeroZeroZero” se passa no México (Monterrey), EUA (New Orleans), Itália (Calábria), Senegal e Marrocos (incluindo o deserto do Saara). Em cada país, ouve-se o idioma nacional. Seja o espanhol salpicado de gírias eróticas do México, seja o italiano com sotaque calabrês ou o francês (no Senegal e no Marrocos). Até árabe ouvimos. Claro que o inglês (falado pelos protagonistas do núcleo norte-americano – a família de armadores Lynnwood – é usado como idioma de comunicação entre os “mediadores” da jornada (viagem) que constitui razão de ser da série de Saviano.
E que viagem é essa? A travessia do transatlântico Miranda, imenso navio de cargas (da Família Lynnwood), que sai do porto de Tampico, no México, com imenso carregamento de pimentas enlatadas. Mas, escondidas, seguem juntas algumas toneladas de cocaína. O destino é a Itália (o Porto de Gioia Tauro), onde está o “intermediário” ou “mediador” Dom Minu La Piana, acuado pelo neto Stefano. O jovem deseja trocar a guarda (aposentar, mesmo que a custa de muito sangue, o velho avô e assumir o lugar dele).
Emoções dignas de bons filmes de ação serão construídas ao longo de oito episódios. Um recurso se fará recorrente. Flashbacks narrarão o que fazia o jovem Chris Lynnwood, enquanto sua irmã Emma controlava o destino do navio Miranda. Ou o que fazia Stefano, enquanto Dom Minu fugia de caçada empreendida por inimigos. De início, tudo parece complicado demais.
Por que tantos personagens? Tantos atravessadores, vendedores, compradores? Tantas tramas? Não se impaciente, pois tudo acabará por compor fascinante quebra-cabeça.
Três núcleos principais somam-se para mostrar o quanto há de empreendimento capitalista no transporte da zerozerozero. Ou seja, a cocaína mais pura (assim os europeus a definem/qualificam).
O mexicano é o mais impactante de todos os episódios. Manuel Contreras, um soldado das forças especiais de combate ao narcotráfico, é muito disciplinado e religioso (frequenta os cultos evangélicos com ar contrito). E, o que é mais relevante, muito bem treinado (e fortemente armado) para combater o crime. Só que ele acabará prestando serviços ao Cartel de Monterrey, comandado pela família Leyra. E levará junto muitos de seus jovens colaboradores (também oriundos das periferias), treinados para a guerra pelo Estado mexicano.
O núcleo italiano gira em torno de Dom Minu La Piana, cego de um olho, de pele enrugada e tostada pelo sol. Ao invés das glamourosas mansões dos “chefões” de Mario Puzzo (e de Coppolla, por extensão), vemos Dom Minu numa casa-bunker de pedras, assemelhada a milenares moradias de rudes pastores. Suas roupas são surradas, seus capangas fieis, mas distantes do figurino “olha como eu sou mau!”.
O neto Stefano é jovem e belo, mas nada tem de galã. Casado com uma mulher de aparência comum, ele adora o filho de seis anos e vive em uma casa grande, em obras e sem nenhuma ostentação de riqueza. Outra famiglia, a Bellantone, também cobiça a carga de cocaína que está a caminho do Porto de Gioia Tauro.
O que mais impacta na Calábria italiana, que receberá a cocaína puríssima destinada ao mercado europeu, são as paisagens. Como a casa de Dom Minu fica em região montanhosa, somos vertiginosamente arremessados por estradas sinuosas e apertadas. Perdemos o fôlego. E as imagens de tantas e tão perigosas curvas serão potencializadas pela trilha sonora da banda Mogway, realmente capaz de perturbadores efeitos de suspense.
O núcleo de New Orleans é essencial à trama, embora não tenha a potência narrativa dos “vampiros” que seguirão as ordens do jovem mestiço Manuel Contreras, nem dos receptores calabreses. Edward Lynnwood (Gabriel Byrne) é um empresário poderoso, dono de imensa frota de navios. Conta com rede global de contratos para frete marítimo, que inclui o transporte da puríssima zerozerozero. O narcotráfico está, pois e naturalmente, em sua cartela de negócios. Ele prepara os filhos (Emma e Chris), em especial a filha, para sucedê-lo, já que o rapaz herdou da mãe o mal de Huntigton, doença degenerativa grave. Que, aliás, já lhe causou grave surdez. Chris só escuta com ajuda de potente aparelho auditivo.
Louco por navios (sabe tudo sobre eles), o jovem Lynnwood desempenhará papel importante na rota do transatlântico Miranda, liderado por experiente comandante (o francês Tchéky Karyo). Quem gosta de cinema de ação encontrará no episódio “Miranda” os momentos de maior adrenalina (a imaginação de Saviano e dos roteiristas da série correu solta nesse terceiro capítulo). Os técnicos que assinam a banda sonora puderam levar seu ofício ao campo do experimentalismo, ao moderar ou aguçar os sons ambientes graças à condição de Chris, municiado, ou não, com seu aparelho auditivo.
O brasileiro Luiz Eduardo Soares tem a obra de Saviano como importante documento sobre as práticas do tráfico de drogas no mundo globalizado. Uma indústria que – garante o italiano – é “a segunda do mundo em volume de negócios, só perdendo para o petróleo”. Como o criador de “Gomorra” soma reportagem e recursos literários em suas narrativas, ele, às vezes e com parcimônia, costuma recorrer ao que chamamos de recurso folhetinesco. Mas, vale repetir, em doses austeras. São raras (e mínimas) suas histórias de amor.
Os sentimentos que unem Manuel Contreras e uma jovem mexicana grávida são esboçados com contenção. Dá-se o mesmo com Chris Lynnwood e uma bela jovem marroquina. Contida (embora fidelíssima) será, também, a relação amorosa de Stefano com a esposa e mãe de seu filho. Até a relação fraternal entre Emma (nada sabemos da vida amorosa dela) e o sofrido Chris não é provida de derramamentos.
O que interessa a Sollima e seus colaboradores é a imensa e complexa rede de agentes formada com o armador-empresário, passando pelos jovens “vampiros” do tráfico mexicano e por atravessadores africanos, até chegar aos destinatários europeus. E ninguém pense que os EUA, maior democracia do mundo, têm as mãos limpas neste rentável negócio. O país não é mostrado apenas como consumidor. Mas, sim, como peça-chave na engrenagem. Embora, na aparência, os negócios dos estadunidenses pareçam “mais limpos” graças a seus imensos olhos azuis e cabelos muito louros.
Só um dos componentes da vigorosa série ítalo-saviniana merece reparo: a abertura. Soturna e confusa (desprovida portanto do charme bolerístico e aliciante da introdução de “Narcos”) ela nos impele, de forma irresistível, à tecla “pular abertura”.
ZeroZeroZero
Série adaptada de livro homônimo de Roberto Salviano
Roteiro: Stefano Sollima, Leonardo Fasoli e Mauricio Kratz
Direção: Stefano Sollima, Janus Metz e Pablo Trapero
Produção-executiva: Stefano Sollima e Roberto Saviano
Oito episódios de 52 minutos cada. Episódios 1 e 2 (“The Shipment” e “Tampico Skies”), ambos dirigidos por Sollima. Episódios 3, 4 e 5 (“Miranda”, “Transbordo” e “Sharia”), dirigidos por Metz. Episódios 6, 7 e 8 (“Da Mesma Maneira”, “Família” e “Mesmo Sangue”), dirigidos por Pablo Trapero.
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