Olhar de Cinema mostra a luz própria de Helena Ignez

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba

Janete Jane, Ângela Carne e Osso, Sônia Silk, a Mulher de Todos. Estes nomes e aposto estão agregados, em definitivo, à trajetória da atriz (e cineasta) Helena Ignez, que completou 80 anos mês passado (no dia 23 de maio). Ela passou pela oitava edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, para apresentar, junto com a filha Sinai Sganzerla, o longa documental “A Mulher de Luz Própria”.

Título mais apropriado impossível para batizar cinebiografia condensada em 81 minutos por uma das três filhas da atriz. Sinai, de 46 anos, estreou como diretora com o belo “O Desmonte do Monte”, dois anos atrás. Cercada de cinema por todos os lados (os pais e as duas irmãs, Paloma Rocha e Djin Sganzerla), ela tinha sua personagem como mãe e colega permanente de trabalho. E um discurso feminino a guiá-la. Afinal, Helena Ignez, que iniciou sua carreira de atriz e bailarina na Salvador do final dos anos 1950, sempre foi uma mulher de opinião (e criação-invenção).

Apesar da força avassaladora de seus companheiros de estrada (existencial e/ou artística) — representada por homens fortes e polêmicos como Glauber Rocha (1939-1982), Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), Rogério Sganzerla (1946-2004) e Júlio Bressane — Helena Ignez se impôs. Participou ativamente da criação de suas personagens, na maioria das vezes mulheres libertárias, transgressoras, devoradoras, combativas. A que mais gosta é Ângela Carne e Osso, a protagonista de “A Mulher de Todos”, sucesso de bilheteria dirigido por Rogério Sganzerla, depois de outro sucesso artístico-comercial, o “faroeste do Terceiro Mundo”, “O Bandido da Luz Vermelha”. Neste, ofertou vida e beleza à platinada Janete Jane.

“A Mulher de Luz Própria” percorre oito décadas de vida de Helena, de seu nascimento em Salvador, no mesmo ano (1939) de seu primeiro marido, Glauber Rocha (este, baiano de Vitória da Conquista), até os dias de hoje, quando vive nos palcos (faz teatro com impressionantes energia e assiduidade) e da direção de longas-metragens (já dirigiu seis e prepara o sétimo).

No recheio desta narrativa memorialística, em primeira pessoa, estão o conturbado casamento com Glauber (pai de sua filha Paloma), o trabalho com Roberto Pires (“A Grande Feira”), Roberto Farias (“Assalto ao Trem Pagador”), Olney São Paulo (“Grito da Terra”), Joaquim Pedro de Andrade (no magnífico poema em preto-e-branco “O Padre e a Moça”, que ela protagonizou com Paulo José), Júlio Bressane (“Cara a Cara”) e, principalmente, Rogério Sganzerla, seu marido (por longos 35 anos) e pai de suas filhas Sinai e Djin.

Estão, também, no envolvente documentário, os longos períodos dedicados à maternidade (amamentou as filhas mais novas por longos — de três a cinco — anos) e aos percursos de busca espiritual (junto aos Hare Krishna, quando viveu da quiromancia, leitura de mãos, e ao Budismo, tornando-se monja).

A arqueologia de imagens é primorosa. Trechos de filmes consagrados somam-se em sensível montagem: de “O Pátio”, curta que inaugurou a carreira cinematográfica de Helena e Glauber, às produções contemporâneas, passando por obras essenciais como “Bandido”, “Mulher de Todos”, sem esquecer os transgressores “ovnis movies” da meteórica produtora Bel-Air e um dos filmes que Sganzerla dedicou a Orson Welles — “Nem Tudo É Verdade” (no qual ela contracenou com Arrigo “Welles” Barnabé).

O filme traz, ainda, ricas inserções domésticas (em super 8 ou outros suportes), que vão do casamento, aos 19 anos, com Glauber (que Jabor recriou em “Eu Sei que Vou te Amar”), a viagens (físicas ou químicas) com Sganzerla, à gravidez e convívio com as filhas e aos bastidores da movimentada trajetória cinematográfico-teatral de Helena. O tecido imagético resulta, além de envolvente, diversificado e rico em preciosas (e, em alguns casos, desconhecidas) informações. A atriz aparece na África (Marrocos, Saara; na Índia, em diversos tempos e templos, e em muitos Brasis).

O cinema documental de Sinai Sganzerla aponta o caminho da “ópera popular”. Ela embala suas imagens com poderoso uso musical. Sua utilização abundante de números musicais, registre-se, nunca é ilustrativa ou redundante, mas sempre provocadora de novos sentidos. Foi assim em “O Desmonte do Monte”. É assim em “A Mulher de Luz Própria”. Há sequências em que a combinação “imagem-música” chega ao sublime. E, ao assim proceder, ela dialoga com o cinema de Sganzerla (e de Bressane, amantes da melhor música popular brasileira, de Noel Rosa a João Gilberto, passando por Mário Reis e Luiz Gonzaga).

E, por falar no velho Lua, há que se valorizar o destaque que Sinai dá à participação dele em “Sem essa, Aranha”(Sganzerla, 1970). O rei do baião toca sanfona e canta um de seus mais belos e melodiosos baiões (“Boca de Forno”, aquela do “Remão, remão” e dos “tamarindos doces como mel”). O artista nordestino vivia mergulhado no ostracismo naquele começo de década. Sganzerla o levou para ambiente rural e o colocou, saindo de um casebre escuro rumo à luz, no meio de uma roda de populares. O aguardava, também, a performática personagem de Helena Ignez, que, depois de beijar a testa de Gonzagão, grita “o sistema solar é um lixo” (entre outros impropérios).

Há que, em se tratando de um filme sobre a trajetória de Helena, atentar-se ao detalhe. Em sequência realizada no tempo presente, a vemos na Índia, vestida à moda da casa e com os cabelos vermelhos servindo de suporte a belo arranjo (uma coroa?). Ela dança, mostrando-se muito integrada à paisagem física. Tem, porém, uma sacola de plástico na mão, elemento que parece destoante. Basta ler, porém, o que está escrito (“Bertolt Brecht”) na superfície branca, para entendermos que o acessório tem tudo a ver com a mí(s)tica e sorridente dançarina. O dramaturgo alemão foi (e é) uma das grandes referências da atriz baiana, desde os tempos em que era aluna de Martim Francisco. Aliás, ela evoca este mestre como “a bicha que a Bahia conservadora queria ver longe”. Assim como ela, outra “bicha”, considerada adúltera e, portanto, indigna de criar a filha Paloma. “Naquele tempo” (começo dos anos 1960) — relembra — “tiraram-me a guarda de minha filha, pois eu não passaria de uma desquitada amoral”.

Se houve um tempo em que Helena Ignez (mulher que nunca carregou assinatura de maridos, somente seu próprio nome) parecia viver em conflito com o cinemanovista Glauber, em “A Mulher de Luz Própria” ela abre espaço generoso em suas lembranças para ele. Com serenidade octogenário-budista, ela revê o passado em sintética panorâmica, admite um “breve namoro” (qualificando-o como cinematográfico) com Bressane, passa batido pela relação com Joaquim Pedro e dedica espaço nobre, o que é natural, pois a relação durou quase quatro décadas, ao catarinense Rogério Sganzerla. Rogério, “sete anos mais novo”, foi marido, pai de duas de suas filhas e o parceiro mais constante na criação cinematográfica (com ele, fez a maioria dos 33 longas que têm seu nome nos créditos).

Vida tão rica e longa da atriz poeticamente biografada obrigou a diretora Sinai Sganzerla a apostar na síntese. E, por isto, temas estimulantes não são, algumas vezes, aprofundados. Helena solta, entre outras, provocação fascinante: havia “razões pessoais” na ira que Glauber despejou sobre “Assalto ao Trem Pagador” (produção que ele aparta do Cinema Novo por tratar-se de obra em diálogo com o gênero policial norte-americano/ vide “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”). Ou seja, além de divergências estético-estratégicas, Glauber desancava filme de realizador que ousara escalar Helena Ignez como parceria de Reginaldo Farias, o assaltante cujos olhos azuis (vaticinava Tião Medonho) seriam devorados pelos peixes. A atriz vê nos ciúmes do ex-marido a razão da perda de papéis que poderia ter interpretado em filmes cinemanovistas (mas diz tudo sem ressentimentos ou amargura. Zen).
Só dois realizadores desta vertente, o Cinema Novo — o pioneiro Joaquim Pedro de Andrade (“O Padre e a Moça”, 1966) e o discípulo baiano Olney São Paulo (“Grito da Terra”, 1964) — teriam ignorado a ira santa do profeta de Vitória da Conquista e convocado Helena para papéis de grande importância.

A morte prematura de Rogério Sganzerla (de câncer, aos 57 anos) tocou fundo a alma e trajetória de Helena e das filhas. Mas, com o passar dos anos, elas se recuperaram e, zelosas, cuidaram do resgate do filmes por ele realizados e partiram, elas mesmas para a produção e direção cinematográfica. Helena já tem seis longas no currículo, Sinai, dois, e Djin prepara sua estreia no longa, depois de realizar curtas. Como Paloma Rocha também é cineasta, o “cinema no feminino” só tem a agradecer a estas quatro mulheres das famílias Rocha e Sganzerla. Afinal, vivem de (e para) criar imagens.

FILMOGRAFIA DE HELENA IGNEZ

DIRETORA
2017 – A Moça do Calendário
2015 – Ralé
2013 – O Poder dos Afetos
2013 – Feio, Eu?
2010 – Luz nas Trevas, A Volta do Bandido da Luz Vermelha
2008 – Canção de Baal

ATRIZ (alguns trabalhos)
1961 – A Grande Feira, Roberto Pires
1962 – Assalto ao Trem Pagador, Roberto Farias
1964 – Grito da Terra, Olney São Paulo
1966 – O Padre e a Moça
1967 – Cara a Cara, Júlio Bressane
1968 – O Bandido da Luz Vermelha, Rogério Sganzerla
1969 – A Mulher de Todos, Sganzerla
1969 – Copacabana Mon Amour, Sganzerla
1970 – Sem Essa, Aranha, Sganzerla
1986 – Nem Tudo É Verdade, Sganzerla
1992 – Perfume de Gardênia, Guilherme de Almeida Prado
1999 – São Jerônimo, Julio Bressane
2005 – O Signo do Caos, Sganzerla
2008 – A Encarnação do Demônio, José Mojica Marins

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