Professor da UnB constrói poderosa análise crítica do cinema russo e soviético

Por Maria do Rosário Caetano

O livro “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos”, de João Lanari Bo, professor da UnB, diplomata e cineasta bissexto, chega para preencher imensa lacuna – a inexistência de publicações sobre a história estético-industrial de uma das mais poderosas fábricas cinematográficas do mundo, a russo-soviética. Disponível em versão física e e-book, este lançamento da Bazar do Tempo traz conteúdo e projeto gráfico notáveis. Tudo é de altíssima qualidade, a começar pela capa dupla. Uma delas tem dupla face, é desmontável e nos brinda com poster da sofisticada e inventiva arte gráfica bolchevique.

Pode-se argumentar que, antes de “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos”, nossa indústria editorial publicara livros sobre grandes nomes do Construtivismo cinematográfico, caso de Serguei Eisenstein, catálogos de mostras (Nouvelle Vague Soviética) e, até, uma “Pequena História do Cinema das Repúblicas Populares”, que o atrevido crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva ousou coassinar, em 1958, com ninguém mais, ninguém menos que Vsiévolod Pudóvkin, diretor dos clássicos “A Mãe”, “O Fim de São Petersburgo” e “Tempestade sobre a Ásia”. E que há dissertações de mestrado e teses de doutorado, com destaque para estudos monumentais como o do jovem Luiz Felipe Labaki, sobre Dziga Vertov. Mas nenhum destes trabalhos tem o alcance e a abrangência do livro de João Lanari.

Ler “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos” constitui experiência enriquecedora. O professor-diplomata segue o rigor dos pesquisadores universitários, sem jamais descuidar-se do prazer texto. Ele foge dos ardis e procedimentos engessados da academia. Sua escrita é sintética, complexa e fluente. E, o que é salutar, não reproduz julgamentos apressados (ou cristalizados).

O grande Serguei Eisenstein, por exemplo, não será visto em “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos” como um mártir do stalinismo, mas sim como um realizador genial, autor de obras da grandeza de “Encouraçado Potenkin” e “Outubro”, que viveu altos e baixos com colegas (mantinha enormes divergências com Dziga Vertov) e com dirigentes da URSS. O mestre letão recebeu aplausos fervorosos de Stálin. O líder bolchevique amou “Alexandre Nevsky” e a primeira parte de “Ivan, o Terrível”, o Czar da unificação da Grande Rússia.

O maior dos méritos do livro é, ao traçar sofisticado panorama do cinema russo e soviético, mostrar que havia ótimos filmes em todos os momentos da história do grande país eurasiano, dos mais livres aos mais censurados. E não se submeter ao império do cânone que transformou o cinema revolucionário bolchevique (a fase do Construtivismo, notabilizada pelas invenções no campo da montagem) em única representação digna de apreço em cinematografia tão poderosa e longeva.

Claro que João Lanari respeita o cânone. Como não respeitar momento artístico-histórico que uniu inventores da grandeza de Eisenstein-Pudovkin-Vertov-Dovjenko-Kulechov e os malucos da FEKS (Fábrica do Ator Excêntrico)?

Respeitar o cânone não significa ignorar que antes dos revolucionários bolcheviques havia obras importantes assinadas por realizadores como Iacóv Protanázov, Evigueni Bauer, Vladimir Gárdin e Piotr Tchadynin. E uma musa, a “popular, mitológica e magnética” Vera Kholódnaia, que participou de dezenas de filmes ao longo de quatro breves e intensos anos (1914-1918). Só cinco filmes estrelados por ela sobreviveram. Vera morreu, vítima da gripe espanhola, aos 25 anos.

A bibliografia com a qual João Lanari dialoga é das mais consistentes. Além de dar o devido crédito aos pensadores e pesquisadores que o antecederam, o professor da UnB publica, antes de ótimo índice onomástico, substantiva “Bibliografia Comentada”. Vale destacar duas de suas mais importantes fontes de diálogo: os livros “História do Cinema Russo e Soviético”, de Jay Leyda, e “The Film Factory: Russian and Soviet Cinema in Documents 1896-1939”, dos britânicos Ian Christie e Richard Taylor.

O estadunidense Jay Leyda, aluno de Eisenstein na Moscou dos anos 1930, publicou sua obra seminal no começo dos anos 1960, estabelecendo como fecho desta narrativa, tão pesquisada e vivenciada, o ano de 1958. O brasileiro avançou por mais dez anos e colocou ponto final em seu “Cinema para Russos, Cinemas para Soviéticos” no convulsivo ano de 1968. Aqui, vale um pequeno reparo: em tempos feministas, Lanari teria marcado ponto se encerrasse sua narrativa com o triunfo de Larisa Sheptiko no Festival de Berlim. Afinal, a jovem realizadora saíra da Berlinale com o Urso de Ouro nas mãos por seu poderoso “A Ascensão” (1967).

O livro dos ingleses Christie e Taylor é fundamental para que João Lanari possa, além de percorrer os caminhos e descaminhos da história russo-soviética, mergulhar em polêmicas artísticas, intelectuais e políticas que marcaram a trajetória dos maiores nomes da cultura, tanto no final da era czarista, quanto, e principalmente, na era bolchevique. Loucos por manifestos (como todas as vanguardas), os Construtivistas não descansavam. Realizavam seus filmes, mas sem descuidar do pensamento teórico e da produção de artigos, muitos deles verdadeiros coquetéis molotov. Garrafas, combustíveis e pavios eram trocados por palavras incendiárias. O livro empreende viagem reveladora, que traz documentos do escritor Maximo Gorki, do poeta Maikóvsky, do encenador Meyerhold e de dezenas de cineastas, roteiristas e montadores. E, claro, de autoridades. Lênin, Trotsky e Stálin também cometiam seus textos cinematográficos.

O cinema era, para Lênin, líder máximo do bolchevismo e dono de “mente brilhante e implacável”, a arte mais importante (e útil) de seu tempo. Mais importante que a poderosa literatura russa (pátria de Puskin, Tolstoi, Dostoievski, Tchecov), por causa de sua facilidade ao comunicar-se com as massas. Foi Lênin o grande incentivador do que Lanari chama de “acelerador histórico em prol da utopia social”, conceito que faria da montagem elemento essencial ao cinema revolucionário. Um detalhe: a contribuição de Trostsky ao debate cinematográfico recebeu título dos mais inesperados: “A Vodka, a Igreja e o Cinema” (16 de junho de 1923).

Para compor seu instigante e fértil livro, Lanari somou estética, História (com agá maiúsculo) e estórias. Sim, há pequenas e saborosas narrativas de momentos únicos espalhados pelas oito décadas cinematográficas estudadas. Numa delas, ficamos sabendo que equipe fora designada para filmar a exumação dos restos mortais de um santo medieval. Parte significativa do povo acreditava que o corpo santificado estaria imutável. Já os ateus bolcheviques diziam que só haveria pó. A câmara registrou… pó.

Outra destas narrativas nos revela mais, muito mais, da história soviética staliniana, que muitos tratados: um operário, de nome Aleksei Stakhánov, tornou-se um mito. E o que ele fez? Em 1935, numa mina de carvão, conseguiu “extrair 102 toneladas de carvão, superando em 14 vezes os padrões de extração, ou seja, sua cota diária”. Foi recebido e medalhado por Stálin, tornou-se deputado no Soviete Supremo, apareceu na capa do “Time” e deu origem ao stakhanovismo (método de trabalho que combinava dedicação e ótimos resultados). E o que isto tem a ver com o Cinema, tema do livro de Lanari? Muito, pois o operário teve sua façanha de semideus do trabalho filmada e até escreveu um artigo (“Minha Sugestão Para o Cinema Soviético”) publicado na revista “Arte do Cinema”.

O livro, depois de breve apresentação, estrutura-se em quatro partes (e anexos). Na concisa introdução, Lanari lembrará que “mesmo nos anos mais dramáticos da gestão stalinista, havia cinema: a Guerra Fria, a Primavera de Khrushov, a vertigem de Gorbatchov e mesmo a modorra de Brejnev também impregnaram as telas”. E avisa que chegará até o ano de 1968, sem a pretensão de erguer “conceitos totalizantes ou panoramas completos”.

Na primeira parte – “Da Era Tsarista à virada Socialista” – conheceremos o “Cinema Pré-Revolução”, a “Reviravolta da História” (ninguém, dirá o pesquisador, há de duvidar que “o evento singular mais marcante do século XX tenha sido a Revolução Bolchevique de 1917”), e a “Aceleração da História” (aqui, com o frenesi da busca pelo progresso veloz ajudado pela potência das máquinas).

A vertigem da Revolução sofrerá um baque com a morte de Lênin (em janeiro de 1924) e a ascensão de seu substituto. Começará a era (e a segunda fase do livro) “Stálin no Poder: o Regime de Controle”. Mas antes, na segunda metade dos anos 1920, haverá uma verdadeira “Revolução Cultural”. Só depois, a era da “Centralização e Terror” se tornará impositiva.

Os Construtivistas, sob Stálin, ainda farão filmes geniais que encantarão o mundo (além do “Encouraçado” e de “Outubro”): “O Homem e Sua Câmara, de Dziga (“o pião que roda”) Vertov, o mais veloz dos filmes velozes, “A Mãe”, de Pudovkin, “Arsenal” e “Terra”, de Dovjchenko.

À medida que o poder de Stálin ia crescendo e seu aparelho repressivo amplificando-se, os problemas dos criadores cinematográficos se mulitplicavam. Instala-se, então, a era da “Centralização e Terror”. Para complicar, o público não estava muito interessado nos filmes construtivistas. As bilheterias deixavam a desejar. Com milhares de salas de cinema espalhadas pelas 15 repúblicas soviéticas (o grande país bolchevique chegaria a contar “com 150 mil salas e 138 mil clubes de exibições”), as autoridades queriam filmes que também divertissem. Queriam comédias, musicais, melodramas, filmes de aventura.

Eisenstein, seu fotógrafo Eduard Tissé e o cineasta Grigori Alexandrov (assistente do letão no “Encouraçado” e parceiro em outros projetos) foram incumbidos de estudar as poderosas indústrias cinematográficas dos países capitalistas (Europa e EUA, em especial). Os três fariam o tumultuado (e inacabado) “Que Viva México!”, que nascera como co-produção EUA-México-URSS. O escritor estadunidense Upton Sinclair foi o principal incentivador do mergulho eisensteiniano na pátria de Zapata & Villa, mas desentendeu-se com o protegido. Eisenstein e Tissé regressaram à URSS e Grigori Alexandrov foi estudar o musical estadunidense, gênero que anunciava era de esplendor.

Quando, em 1936, Alexandrov dirigiu “Circus”, um mix de musical, melodrama, comédia e arte circense, o Realismo Socialista já era um dogma. O filme, que é ótimo e traz enquadramentos de grande beleza, aborda tema originalíssimo: mulher branca (norte-americana!) teve um filho de pai negro. E carrega esse segredo. Ela é atriz de circo e vai excursionar no Circo de Moscou. Apaixona-se por galã eslavo, lindo como Jean Sorel. Mas não tem coragem de contar que é mãe de uma criança negra. Os desdobramentos fascinaram o público e o filme alcançou imenso sucesso. Mas sua sequências final compõe-se com patriotada inacreditável. Propaganda pura.

Lanari lembrará em seu livro, apaixonante e nunca panfletário, que outros grandes filmes foram feitos naqueles anos regidos com pulso de ferro por Stálin. “Bola de Sebo”, de Mikhail Romm, o inacabado “Prado de Beijin” e “Alexandre Nevski”, ambos de Eisenstein, não podem ser esquecidos. O pesquisador destacará, ainda, obras obrigatórias como “Os Rapazes Felizes”, de Alexandrov (1934), “A Questão Russa”, de Mikhail Room (1948), “O Quadragésimo-Primeiro”, de Grigori Tchuckrai (1956), tesouro escondido e banhado em altas doses de sensualidade, fotografado pelo craque Sergei Urushiev, “O Destino de Um Homem”, estreia do ator Sergei Bondarchuk, na direção (1959) e o impressionante “A Comissária” (Aleksander Asokoldov, 1967). E, claro, os filmes de duas grandes realizadoras: “A Pátria da Eletricidade”, de Larisa Sheptiko, e “Breves Encontros”, de Kira Muratova.

O triunfo de “A Ascensão”, de Sheptiko, no Festival de Berlim/67, não está registrado em “Cinema para Russos, Cinema Para Soviéticos” (primeira parte, de 1896 a 1968). Mas decerto estará, com o destaque merecido, no livro que Lanari escreve, agora, sobre o cinema do fim da era soviética e o que se faz desde que a URSS desmoronou (início dos anos 1990). E aí, Andrei Tarkowski (presente no primeiro livro com “A Infância de Ivan” e “Andrei Roublev”), Elem Klimov (e seu poderoso “Vá e Veja”), Alexander Sokurov (“A Arca Russa”), Sergei Loznitsa (“Na Neblina”) e Andrey Zvyagintsev (“Leviatã”) estarão na linha de frente. Larisa (apesar de ter morrido aos 41 anos, em trágico acidente de carro) e Kira Muratowa também terão o destaque merecido.

Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos
Autor:
João Lanari Bo
Editora: Bazar do Tempo
Páginas: 304 – Com capa-pôster e 60 fotografias
Preço: R$ 69,90 (edição física) / Edição em e-book chega às principais plataformas (Amazon, Google, Kobo e Apple) no início de junho.

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