Partida
Por Maria do Rosário Caetano
“Partida” é uma palavra que pode evocar saudade. Mas pode significar algo promissor, como partir, num pequeno coletivo, em busca de alguém que seja motivo de estima ou admiração. Quem sabe, o ex-presidente uruguaio, Pepe Mujica.
Em tempos de afirmação de minorias e transgressões vocabulares, “partida” pode ser, também, o feminino de “partido” (político). Pelo menos assim o desejam os “viajantes” do road movie “Partida”, de Caco Ciocler, estreia dessa quinta-feira, 18 de junho, em seis plataformas de streaming (Now, Vivo Play, Looke, Filme Filme, Oi Play e Petra Belas Artes à la Carte). Numa segunda etapa, o filme será disponibilizado no Itunes e Google Play. Haverá, ainda, sessão especial e presencial no Cine Drive-in Belas Artes, no Memorial da América Latina (mas os ingressos já estão esgotados).
Quem são os “viajantes” do segundo longa-metragem de Caco Ciocler, ator de dezenas de filmes, peças teatrais, séries e telenovelas? Além dele próprio, que dirige e “atua”, vemos Georgette Fadel, a namorada dela, Sarah Lessa, e Léo Steinbruch. Fadel é uma das atrizes e encenadoras mais festejadas do teatro brasileiro. Léo, ator bissexto, é empresário do ramo agropecuário.
Os outros integrantes da “Caravana Mujica” são o português Vasco Pimentel, um dos maiores engenheiros de som do cinema europeu (e brasileiro), as diretoras de fotografia Manoela Rabinovitch e Julia Zakia, também cineasta, que se faz acompanhar da filha Luíza, e o produtor Beto Amaral, de muitos filmes, entre eles o polêmico “Vazante”, o instigante “O Banquete” e o experimental “Insolação” (os três de Daniela Thomas, sendo o último parceria com Felipe Hirsch).
Ciocler, de 48 anos, estreou no cinema, como protagonista, em “Minha Vida em suas Mãos”, ao lado de Maria Zilda, sob direção de José Antônio Garcia. Seguiram-se muitos filmes (“Olga”, no papel de Luiz Carlos Prestes, “Desmundo”, “Lara”, “Quase Dois Irmãos”, “Elis”, “O Banquete”, “Simonal”). Em 2014, ele foi convidado a dirigir o documentário “Esse Viver Ninguém me Tira”, sobre Aracy Guimarães Rosa, o “anjo de Hamburgo”. Aracy, esposa do escritor e diplomata João Guimarães Rosa, ajudou refugiados judeus a conseguir abrigo no Brasil, a partir da Alemanha, onde o marido prestava serviço consular.
Amigo fraterno de Georgette Fadel, Caco resolveu embarcar em um dos sonhos da atriz. Ela dizia-se disposta a criar uma “partida” (um partido composto só com mulheres) para candidatar-se à presidência da República em 2022. A ideia inicial consistia em embarcar em ônibus-caravana, palco de debates e reflexões, que levaria um grupo de amigos ao Uruguai. Como ponto culminante – pretendia-se –, festejariam a virada do ano de 2018 para 2019, se possível fosse, ao lado do ex-presidente Pepe Mujica, inspiração política para a atriz.
Ciocler topou a empreitada. Era, pois, chegada a hora de reunir um pequeno exército de Brancaleone e botar o veículo na estrada. Sem financiamentos ou patrocínios. Naquele momento, só a grana do bolso dos próprios artistas-técnicos-passageiros. Remuneração para valer, só a do motorista que fretara seu ônibus e de alguns poucos técnicos. Quem seriam os “caravaneiros”?
Em debate no Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em João Pessoa (no qual o filme recebeu o Prêmio Especial do Júri, melhor atriz para Georgette Fadel, melhor som para Vasco Pimentel e montagem para Tiago Marinho), Ciocler lembrou que houve um ajuntamento “improvisado”. Georgette quis levar a companheira, a atriz Sarah Lessa. “Ah, então vou levar minha namorada (a psicanalista Paula Cesari) também”, resolveu o ator-diretor, e ela integrou-se à trupe. Sem fotógrafo e técnico de som não haveria filme. Ter Vasco Pimentel, craque da sonoplastia ligado à trajetória de Manoel de Oliveira e Wim Wenders, era um luxo. Ele topou. Julia Zakia, diretora do longa “Rio Cigano” e do curta “Rã” (este premiado no Festival de Brasília), agregou-se à equipe, mas pediu para levar a filhinha Luíza, familiarizada com o mundo do cinema.
Mais uma fotógrafa, Manuela Rabinovitch, foi mobilizada, pois muita coisa aconteceria na estrada e em cidades pelas quais passariam até chegar (se conseguissem) ao sítio de Pepe Mujica, nos arredores de Montevidéu. Mobilizou-se, também, Ivan Drukier Waintrob para a função de logger (aquele que organiza e baixa, depois de cada jornada de filmagens, o material digital).
O time constituiu-se e – confessou Ciocler – “sentimos que necessitávamos de alguém para contrapor-se à exuberância de Georgette Fadel”, uma militante de esquerda das mais falantes. “Sem um contraponto, a viagem corria o risco de transformar-se em interminável discurso da protagonista-candidata”, admitiu. Foi aí que o diretor lembrou-se do amigo Léo, rapaz rico, empresário de ideias mais afeitas ao discurso da direita (que pouco antes triunfara nas urnas com a vitória de Jair Bolsonaro).
O ator-antagonista entendeu bem o seu papel e entrou para valer no “jogo performático”. E como não entrar, se uma das paradas da caravana foi justo em Curitiba, onde militantes estavam acampados na resistente “Vigília Lula livre”? As imagens produzidas no local são ótimas. E as discussões, que se dariam dentro do ônibus (entre a candidata feminista e o ator-empresário) resultariam calorosas.
Em outro momento surpreendente do filme, que se apresenta como um documentário mas, na verdade é um híbrido, um doc-fic, o grupo formado com artistas de classe média, todos brancos, lembra-se que há mais alguém dentro do ônibus, o motorista Jefferson dos Reis. Georgette, a “candidata”, vai trocar ideias com ele. O rapaz defende o bolsonarismo triunfante, pois acredita que o eleito vai acabar com a corrupção, entre outros males. Ducha de água fria na empolgada atriz, uma força da natureza, que fala sobre racismo, machismo, temas econômicos, problemas estruturais acumulados ao longo de nossa história. Para ser tachada, pelo provocador Steinbruch, de sonhadora e defensora de uma “utopia, a socialista, que nunca deu certo em lugar nenhum”.
Mas o momento mais luminoso e desconsertante do filme caberá a Vasco Pimentel. O engenheiro de som, que deveria estar cuidando dos microfones, vira um “ator” de mão cheia (aliás, já interpretara jornalista glauberiano no filme “Capitães de Abril”, de Maria de Medeiros). E, tal qual um Hamlet iluminista, faz seu reflexivo monólogo provocando as gentes que habitam a imensa “ex-colônia, nascida como empresa extrativista de Portugal”. Ou seja, os brasileiros.
A viagem da trupe nos mobiliza, porque as discussões são travadas sem amarras. Fadel questiona Caco Ciocler, confortável em sua condição de ator da Rede Globo. Ele, por sua vez, lembrará que ela também anda ciscando no terreiro da poderosa emissora, representando papeis em séries televisivas. Nenhum dos outros viajantes disputará o proscênio. Têm intervenções discretas e pontuais. Estrela mesmo só a incansável, às vezes amorosa, às vezes exasperada, Georgette Fadel. Caco Ciocler e Léo Steinbruch são coadjuvantes de primeira linha. Vasco revelou-se um rouba-cena, mas por breve instante. Afinal, reassume os seus microfones, por saber o quanto é difícil captar falas (discursos) em ônibus que trafega por estradas brasileiras (mesmo as do Sul costumam ter buracos).
A chegada ao Uruguai segue envolvente (o espectador descobrirá se a trupe foi ou não partícipe do Réveillon de Pepe Mujica e de sua companheira, a senadora Lucía Topolansky). Quando o road movie finda seu percurso, concluímos que Caco Ciocler evoluiu muito de “Esse Viver Ninguém me Tira”, seu longa de estreia, para esta “Partida”. Um filme generoso, que corre tranquilo ao longo de seus 93 minutos. Por sorte, o terceiro longa de Ciocler, em pré-produção, terá seu inesperado “ator-revelação” como protagonista absoluto.
Chegou a hora e a vez de Vasco Pimentel ter um filme para chamar de seu.
Partida
Brasil, 93 minutos, 2020
Direção: Caco Ciocler
Elenco: Georgette Fadel, Léo Steibruch, Caco Ciocler, Vasco Pimentel, Sarah Lessa. Fotografia de Julia Zakia e Manoela Rabinovitch (câmara adicional de Wilssa Esser)
Montagem: Tiago Marinho
Trilha Sonora: Arthur de Faria
Produção: Caco Ciocler e Beto Amaral (Cisma Produções)
Distribuição: Pandora Filmes
FILMOGRAFIA DE CACO CIOCLER
Carlos Alberto Ciocler (São Paulo, 27 de setembro de 1971)
Como diretor
2014 – “Esse Viver Ninguém me Tira”
2020 – “Partida”
Como ator
1999 – “Caminho dos Sonhos” (Lucas Amberg)
2001 – “Minha Vida em Suas Mãos” (José Antônio Garcia)
2002 – “Bicho de Sete Cabeças” (Laís Bodanzky)
2002 – “Xangô de Baker Street (Miguel Faria Jr)
2003 – “Desmundo” (Alain Fresnot)
2003 – “Avassaladoras” (Mara Mourão)
2002 – “Lara” (Ana Maria Magalhães)
2002 – “A Paixão de Jacobina” (Fábio Barreto)
2004 – “Sexo, Amor e Traição (Jorge Fernando)
2004 – “ Olga” (Jayme Monjardim)
2007 – “Inesquecível” (Paulo Sérgio Almeida)
2005 – “Quase Dois Irmãos” (Lúcia Murat)
2005 – “Quanto Vale ou É por Quilo?” (Sérgio Bianchi)
2011 – “Família Vende Tudo” (Alain Fresnot)
2012 – “Meu Pé de Laranja Lima” (Marcos Bernstein)
2012 – “Dois Coelhos” (Afonso Poyart)
2013 – “Um Dia de Ontem” (Thiago Luciano)
2013 – “De Menor” (Caru Alves de Souza )
2016 – “Um Namorado para Minha Mulher” (Júlia Rezende)
2016 – “Fica Mais Escuro Antes do Anoitecer” (T. Luciano)
2018 – “O Olho e a Faca” (Paulo Sacramento)
2018 – “João, o Maestro” (Mauro Lima)
2018 – “Elis” (Hugo Prata)
2019 – “Simonal” (Leonardo Domingues)
2019 – “O Banquete” (Daniela Thomas)
2020 – “Partida” (Caco Ciocler)
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