“Narciso em Férias” no Festival de Veneza
Por Maria do Rosário Caetano
Veneza, o primeiro festival de grande porte a realizar edição presencial em tempo da pandemia do Covid-19, terá o documentário brasileiro “Narciso em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil, em sua seleção oficial.
O filme documenta e relembra a prisão do cantor e compositor Caetano Veloso, em dezembro de 1968, catorze dias depois da edição, pela Junta Militar, do Ato Institucional número 5 (AI-5). Caetano e o amigo e parceiro Gilberto Gil foram detidos em suas casas, em São Paulo, por agentes à paisana. Sem saberem do que eram acusados, os dois baianos foram levados a um quartel no Rio de Janeiro e deixados em duas solitárias ao longo de sete dias. Depois, foram transferidos para celas coletivas. Permaneceram presos e, quando liberados sob condições preestabelecidas, tomaram o rumo do exílio (em Londres, na Inglaterra).
A censura prévia impediu que os jornais divulgassem o encarceramento dos dois compositores. Passadas mais de cinco décadas, Caetano relembra, nessa produção de Paula Lavigne, em parceria com a Videofilme, dos irmãos Moreira Salles, os 54 dias de cárcere. O autor de “Terra”, “Cajuína”, “Cinema Novo” e “Haiti” (estas duas em parceria com Gil) vê aquele período como o mais duro de sua vida. A hora para tal relembramento não poderia ser mais oportuna, já que, hoje, muitos jovens e adultos, eleitores de Jair Bolsonaro, defendem a volta da ditadura militar e de seu texto legal mais discricionário, o AI-5.
“Narciso em Férias” está na companhia de dez documentários de grandes realizadores. Um deles, “Hopper/Welles”, traz a assinatura de Orson Welles (1915-1985), autor do soberbo “Cidadão Kane” e do inacabado “It’s All True”, filmado no Brasil e no México. Destaque, também, para “La Verità Su La Dolce Vita,” de Giusepe Pedersoli (sobre a criação do clássico felliniano “A Doce Vida”), “Sportin’ Life”, do indócil Abel Ferrara, e “City Hall”, do mestre estadunidense Frederick Wiseman.
O título do documentário brasileiro (“Narciso em Férias”) foi retirado de capítulo do livro “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso (Companhia das Letras, 1997). O compositor baiano utilizou tal e irônica expressão inspirado pela leitura do romance “Este Lado do Paraíso”, de F. Scott Fitzgerald.
Terra e Calil lembram que “Narciso em Férias” traz a referência fitzgeraldiana por razão singular: Caetano passou quase dois meses sem se olhar no espelho, algo raro na vida de qualquer pessoa. Foi na prisão – registram no material de divulgação do filme – que o compositor, que não tinha espelho para se mirar, “recebeu de sua então esposa Dedé um exemplar da revista Manchete, com fotos inéditas da Terra vista do espaço, imagens que inspirariam a composição da música ‘Terra’, dez anos depois. Na cadeia, compôs ‘Irene’, lembrando a risada da irmã mais nova”.
Renato Terra e Ricardo Calil admitem que estrear “Narciso em Férias”, em Veneza, é “a realização de um sonho”. Terra agradece a duas pessoas que desempenharam papel fundamental no processo de realização do longa documental: João Moreira Salles e Paula Lavigne. Conheci o João há 12 anos e, por causa dele, convivi com Eduardo Coutinho. Cada decisão que tomei no projeto veio desse aprendizado com esses dois grandes documentaristas”. Já Paula Lavigne, que teve a iniciativa de produzir o filme, apoiou a dupla “em todas as decisões tomadas, confiou e nos deu confiança”. O cineasta e colunista da Folha de S. Paulo lembra que “Narciso em Férias” respeita “e amplifica cada palavra, memória, gesto, silêncio de Caetano. Agora, queremos mostrar isso para o mundo”.
Ricardo Calil, que aguarda a hora de lançar “Cine Marrocos”, melhor filme no Festival É Tudo Verdade 2019, lembra que o Festival de Veneza, o mais antigo do mundo, “é um evento histórico que pode apontar como será o cinema nessa nova realidade”. Para o cineasta e jornalista, “Narciso em Férias” é um filme que “fala do passado do Brasil, por meio das memórias de Caetano”. Memórias de “sua prisão na época da ditadura, que têm muito a dizer sobre o presente do país”.
No material de divulgação do filme, João Moreira Salles, coprodutor do documentário, lembra que sua beleza encontra-se “na maneira como Caetano, hoje com 77 anos, é capaz de nos levar de volta àquela cela e nos fazer partilhar da impotência do rapaz preso. A simplicidade da encenação – um homem sentado de pernas cruzadas diante de uma parede de concreto, nada mais – dá voz ao essencial, uma escolha ao mesmo tempo estética e moral. Diante da violência, qualquer excesso seria injustificado”. Por isso, “Narciso em Férias” é “um filme sobre o Brasil de antes e talvez de amanhã. Os fantasmas continuam entre nós”.
FILMOGRAFIA
Renato Terra e Ricardo Calil
Diretores, em dupla
2010 – “Uma Noite em 67”
2016 – “Eu Sou Carlos Imperial”
2020 – “Narciso emFérias” (2020)
Ricardo Calil (solo): 2019 – “Cine Marrocos”
Renato Terra (solo): 2013 – “Fla x Flu – 40 Minutos Antes do Nada”
OS SELECIONADOS DE VENEZA 77
Noite de abertura
“Lacci”, Daniele Luchetti (fora de competição)
Competição
“Nuevo Orden”, Michel Franco
“Lovers”, Nicole Garcia
“Laila In Haifa”, Amos Gitai
“Notturno”, Gianfranco Rosi
“Dear Comrades”, Andrei Konchalovsky
“Wife of a Spy”, Kiyoshi Kurosawa
“Sun Children”, Majid Majidi
“In Between Dying”, Hilal Baydarov
“Le Sorelle Macaluso”, Emma Dante
“The World to Come”, Mona Fastvold
“Pieces of a Woman”, Kornel Mundruczo
“Miss Marx”, Susanna Nicchiarelli
“Padrenostro”, Claudio Noce
“Never Gonna Snow Again”, Malgorzata Szumowska
“The Disciple”, Chaitanya Tamhane
“And Tomorrow the Entire World”, Julia von Heinz
“Quo Vadis, Aida?”, Jasmila Zbanic
“Nomadland”, Chloe Zhao
Fora de competicão (ficção)
“Lasciami Andare”, Stefano Mordini
“Mandibules”, Quentin Dupieux
“Love After Love”, Ann Hui
“Assandira”, Salvatore Mereu
“The Duke”, Robert Michell
“Night in Paradise”, Park Hoon-Jung
“Mosquito State”, Filip Jan Rymsza
Fora de competição (não-ficção)
“Narciso em Férias”, Renato Terra e Ricardo Calil
“Hopper/Welles”, Orson Welles
“La Verità Su La Dolce Vita”, Giusepe Pedersoli
“City Hall”, Frederick Wiseman
“Sportin’ Life”, Abel Ferrara
“Crazy, Not Insane”, Alex Gibney
“Greta”, Nathan Grossman
“Salvatore – Shoemaker of Dreams”, Luca Guadagnino
“Final Account”, Luke Holland
“Molecole”, Andrea Segre
“Paolo Conte, Via Con Me”, Giorgio Verdelli
Fora de competição (Sessão Especial)
“Princess Europe”, Camille Lotteau
“30 Monedas (Episode One)”, Alex De La Iglesia
“Omelia Contadina”, Alica Rohrwacher and JR
Mostra Horizonte
“Genus Pan”, Lav Diaz
“Listen”, Ana Rocha de Sousa
“Apples”, Christos Nikou
“La Troisieme Guerre”, Giovanni Aloi
“Gaza Mon Amour” , Tarzan Nasser e Arab Nasser
“Nowhere Special”, Uberto Pasolini
“The Best Is Yet to Come”, Wang Jing
“Yellow Cat”, Adilkhan Yerzhanov
“Milestone”, Ivan Ayr
“The Wasteland”, Ahmad Bahrami
“The Man Who Sold His Skin”, Kaouther Ben Hania
“I Predatori”, Pietro Castellitto
“Mainstream”, Gia Coppola
“Zanka Contact”, Ismael El Iraki
“Guerre e Pace”, Martina Parenti e Massimo D’Anolfi
“La Nuit Des Rois”, Philippe Lacote
“The Furnace”, Roderick Mackay
“Careless Crime”, Shahram Mokri
“Selva Tragica”, Yulene Olaizola
Venice Days (dois curtas e onze longas)
“In My Room”, Mati Diop (curta-metragem)
“Nightwalk”, Malgorzata Skumowksa (curta)
“Honey Cigar”, Kamir Aïnouz
“My Tender Matador”, Rodrigo Sepulveda
“The Stonebreaker”, Gianluca e Massimiliano Serio
“Mama”, Li Dongmei
“Residue”, Merawi Gerima
“Oasis”, Ivan Ilkic
“Conference”, Ivan I. Tverdovskij
“The Whaler Boy”, Philipp Yuryev
“200 Meters”, Ameen Nayfeh
“Saint-Narcisse”, Bruce LaBruce
“Preparations to be Together for an Unknown Period of Time”, Lili Horvat
Eu sempre soube e sempre sonhei em fazer este filme do Caetano, não como documentário, mas como ficção. E este título é do grande cara******!